Estive em Gaza. O que vi foi um Holocausto

Imagem: Efrem Efre
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Por SUSAN ABULHAWA*

Gaza tem sido descrita corretamente como “um cemitério para crianças”, mas Gaza também será o cemitério da hegemonia ocidental, junto com os slogans e instituições que a sustentam

A Resolução das Nações Unidas 3379 definia sionismo como “uma forma de racismo” porque no seu âmago é uma ideologia supremacista que busca privilegiar os judeus em prejuízo, mesmo em detrimento e morte, de não judeus (a resolução foi aprovada em 1975 e foi revogada em 1991 por pressão de Israel e dos Estados Unidos). Independentemente de como cada um define o sionismo, ele manifesta, entre uma miríade de outras formas, a sujeição ou o deslocamento da população nativa palestina.

Nos últimos 12 anos, Israel esteve implementando uma fantasia colonial de muito tempo de não apenas “terminar o trabalho”, mas tem feito isto com um alegre sadismo que ecoa as postagens das mídias sociais de Tzipi Navon, a mais próxima conselheira de Sara Netanyahu e chefe de gabinete, que pediu que os residentes de Gaza que participaram do massacre de 7 de outubro fossem torturados ao vivo em um programa de televisão: “Primeiramente removendo as unhas das mãos e pés… cortando fora [seus] genitais e deixando [-os] ver [seus testículos] fritando em óleo de canola e [forçando-os] a comê-los… Mantendo a língua até o fim, de modo a nos satisfazer com seus gritos, as orelhas de modo que [eles] possam ouvir [seus] próprios gritos e os olhos de modo que [eles] possam nos ver sorrir.”

Pesquisas de opinião do Instituto de Estudos de Segurança Nacional de Israel sugere que a maioria dos judeus israelenses não acha que os soldados acusados de torturar palestinos deveriam enfrentar processos criminais.

Em um raro momento de candura, o jornal The New York Times noticiou a descoberta da ONU de tortura sistemática, incluindo tortura sexual. De acordo com o relatório da ONU, soldados israelenses têm alegadamente mantido cativos palestinos em celas de prisões extremamente superlotadas, sujeitando-os a privações de sono e nudez forçada, ameaçando-os com estupro coletivo, penetrando ou eletrocutando os genitais e ânus de prisioneiros homens e mulheres com bastões e outros objetos.

Reféns palestinos libertados e civis palestinos em Gaza relataram ter sido atacados e sexualmente agredidos por cães treinados. Um advogado a quem foi garantido raro acesso a cativos palestinos dentro de um centro de detenção, relatou o acionamento de um extintor de incêndio dentro do corpo de um homem de 27 anos através de uma mangueira inserida em seu reto.

Muitos destes que foram sequestrados, incluindo médicos proeminentes como o Dr Adnan Al-Bursh, diretor do Departamento de ortopedia do Hospital de Al-Shifa, pode ter morrido depois da tortura. Alguns emergiram dos gulags israelenses com tanto trauma que ao que tudo indica sofreram perda de memória; alguns ficaram incapazes de falar; todos arrebentados por tormentos indizíveis no cativeiro israelense. E estes foram os que tiveram sorte de sair.

Dr. Mark Perlmutter, um ortopedista e cirurgião de trauma da Carolina do Norte que se voluntariou para ser médico de emergência em Gaza, disse que “todos os desastres que que tenho visto … 40 missões, 30 anos, Ground Zero [local do World Trade Center], terremotos, tudo combinado não se compara ao nível de carnificina que eu vi contra civis em apenas uma semana em Gaza … quase exclusivamente crianças. Nunca vi aquilo antes. Eu vi mais crianças incineradas do que já vi na minha vida inteira. Eu nunca vi crianças mais trituradas já na primeira semana”. Ele disse que as crianças estão “definitivamente” sendo alvejadas por atiradores.

A filmagem sem edição e os sons de carnificina são inegáveis – famílias inteiras enterradas vivas em massa nos escombros das suas casas, de novo e de novo; corpos retorcidos; corpos despedaçados; corpos quebrados; corpos queimados; corpos desmembrados em toda a parte; sangue e imagens violentas nas praças da cidade e nas ruas; corpos apodrecidos inacessíveis em ruas, devorados por cachorros desgarrados famintos, eles mesmos queimados e alquebrados; a intencional destruição de tudo na totalidade da Faixa de Gaza.

Ainda assim, o que eu presenciei no local, mesmo por um curto período de tempo em apenas uma pequena área de Gaza é infinitamente pior do que o pior vídeo transmitido mundo afora. A enormidade do mal é difícil de acreditar. Nós ainda não temos um idioma para descrever. Enquanto eu assistia famílias exaustas escaparem de lugar em lugar, famintas, com sede, sujas e desorientadas, eu ficava refletindo sobre as palavras do general israelense Rafael Eitan, que prometeu em 1983 que depois que a terra fosse colonizada: “Tudo o que os árabes serão capazes de fazer é dar voltas como baratas tontas em uma garrafa.” O estado atual dos palestinos em Gaza é esta visão manifesta de Israel.

A quase total degradação em meses de uma sociedade altamente funcional é impossível de compreender. A falta de alimentação adequada e saneamento, conjugada com incessante terror, a propagação de doenças (desde hepatites e pólio a misteriosas e doloridas pústulas de pele infantis), com o teste de novas armas e uma indústria da morte guiada por AI, fez de Gaza a mais macabra experiência imperialista.

Conduzi um estudo curto que estimou o verdadeiro número de mortos em Gaza porque eu sabia que a capacidade de continuar calculando foi dizimada. Meu estudo, publicado em Electronic Intifada, descobriu que o verdadeiro número estava entre 190.000 e 500.000. Incluía mártires diretamente dos ataques, bem como aqueles com doenças crônicas que morreram de falta de acesso a medicações; os mortos ou os que morriam de fome e desidratação; os desaparecidos; e os mortos pela propagação de doenças transmissíveis que surgiram devido à destruição por Israel do saneamento e serviços de tratamento de água.

Como é frequentemente o caso quando palestinos falam, meu artigo foi recebido com ceticismo e rejeição. Mas 10 dias depois de sua publicação, The Lancet, a venerada revista médica revisada por pares, publicava um número “conservador” de “até 186.000 ou até mais mortes”, corroborando a extremidade inferior da minha estimativa – o que considero uma subavaliação grosseira.

Israel lançou o equivalente a múltiplas bombas nucleares em explosivos de artilharia em uma área que era menos do que metade do tamanho de Hiroshima. Estatísticas em si são insondáveis. Mas o que é terrível é o prazer com que israelenses – atravessando quase todos os setores da sua sociedade – parecem ter em testemunhar a miséria, a dor e o terror inimagináveis dos palestinos. Seus soldados agregaram a seus atos de crueldade música e os postaram no Tik Tok. Famílias em toda Israel fantasiam-se de árabes para zombar de palestinos que velavam seus filhos mortos e ensanguentados. Pessoas em toda a sociedade israelense pedem por maior violência, ou até por um ataque nuclear para varrer todos os palestinos de Gaza.

Ram Cohen, um diretor de escola em Tel Aviv que discursou sobre a cultura israelense em relação à palestina descreve-a assim: “Árabes são inferiores a nós. Eis o porquê nós chutamos os palestinos e os esbofeteamos. Eis o porquê nós atiramos neles. Eles não são nada.” Em julho, muitos israelenses e alguns de seus próprios legisladores em sintonia se levantaram para exigir o direito de rasgar os corpos dos palestinos através de estupro coletivo em seus gulags nas instalações de tortura da base militar de Sde Teiman.

Israel está cometendo o holocausto da nossa época, e está fazendo isto diante da vista do mundo, aparentemente indiferente.

Gaza tem sido descrita corretamente como “um cemitério para crianças”, mas Gaza também será o cemitério da hegemonia ocidental, junto com os slogans e instituições que a sustentam – do mito da assim chamada “lei internacional” até o Comitê Olímpico que permitiu membros de um exército genocida e de um Estado de apartheid competirem, enquanto tolerava a proibição da França do uso do hijab por pioneiras mulheres muçulmanas.

*Susan Abulhawa é jornalista, escritora e ativista de direitos humanos. Autora, entre outros livros, de A cicatriz de David (Record). [https://amzn.to/4e3dLqz]

Tradução: Débora El-Jaick Andrade

Publicado originalmente no portal Novara Media.


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