Os concursos na USP

Imagem: Beyzanur K.
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Por LINCOLN SECCO*

A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária

No ano de 1952 a Congregação da FFCL da USP recusou a inscrição de candidatos à cadeira de Filosofia que não eram portadores de formação estrita na área de conhecimento de um concurso.[i] Os candidatos recorreram ao Conselho Universitário e se iniciou uma batalha judicial e política.

O espírito liberal-conservador daquela unidade se defrontava com o autodidatismo e propugnava a formação de uma “verdadeira vocação para as ciências puras e a investigação”.[ii]

A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é, portanto, uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária. No século XXI o Brasil assistiu a uma expansão da pós-graduação à qual se seguiu o represamento de contratações. Muitos editais tiveram que estabelecer uma prova eliminatória a fim de viabilizar a avaliação de outras provas mais específicas. Fez-se comum candidatos se insurgirem contra suas notas. Muitos são professores tarimbados de outras universidades julgados por bancas nem sempre com o seu tirocínio.

As bancas são formadas nos departamentos e aprovadas pela Congregação. O momento de definir o perfil do futuro contratado é na montagem do programa e da banca. Note-se que disse “o perfil” e não “a pessoa”.

A USP adota o julgamento de memorial com prova pública de arguição. Com todas as imperfeições, ele é melhor que outras modalidades. Um edital do Instituto de Matemática e Estatística (IME), por exemplo, previa para a arguição do memorial metade da nota global; e a outra metade dividida igualmente entre prova didática e projeto de pesquisa. Em alguns concursos há prova escrita eliminatória e na segunda fase o memorial tem peso 3 e as demais avaliações peso 1. Na prática o que acontece é uma votação em que é indicado o candidato que tiver a melhor média com pelo menos três dos cinco membros da banca.

O julgamento do memorial, segundo o edital padrão, leva em conta arguição e avaliação. Ou seja, a capacidade de bem responder às perguntas da banca e a de organizar numa narrativa coerente de sua trajetória acadêmica constituem uma parte importante da nota. A outra parte deve considerar produção, serviços à comunidade, experiência profissional, diplomas, prêmios etc.

Isso permite grande discricionariedade à banca e pode levar a erros; por outro lado, evita que predominem nos certames o produtivismo e a simples eleição de candidatos há muito estabelecidos na carreira. O modelo uspiano permite que a universidade decida se para aquela vaga específica é melhor um líder de pesquisa já consagrado ou um jovem que irá desenvolver seu potencial na USP por mais tempo. Ambas as escolhas são legítimas.

A questão principal, portanto, não está no julgamento do memorial, mas na primeira avaliação que elimina a maioria dos candidatos, inclusive os PPI. A única medida republicana que poderia ser implantada sem desestruturar a sistemática de concursos uspiana é determinar que nos certames que preveem a fase eliminatória as provas sejam corrigidas de forma anônima, sem a identificação do candidato, utilizando apenas um número de inscrição.

É urgente incluir isso nos editais. É algo que não eliminaria a subjetividade da escolha nas outras fases, mas diminuiria a arbitrariedade de muitas bancas que simplesmente reprovam candidaturas que não contemplam determinada linha de pesquisa ou grupos de interesse.

A Universidade não é o lugar da pura racionalidade. Cientistas são pessoas comuns com preconceitos e visão de mundo. As condições exteriores à ciência têm peso enorme nos concursos. O próprio Max Weber nos legou essas palavras sombrias para seus alunos: “A vida universitária está, portanto, entregue a um acaso cego. Quando um jovem cientista nos procura para pedir conselho, com vistas à sua habilitação, é-nos quase impossível assumir a responsabilidade de lhe aprovar o desígnio. Se se trata de um judeu, a ele se diz com naturalidade: lasciate ogni speranza. Impõe-se, porém, que a todos os outros candidatos também se pergunte. ‘Você se acredita capaz de ver, sem desespero nem amargor, ano após ano, passar à sua frente mediocridade após mediocridade?’. Claro está que sempre se recebe a mesma resposta: ‘Por certo que sim! Vivo apenas para minha vocação’. Não obstante, eu, pelo menos, só conheci muito poucos candidatos que tenham suportado aquela situação sem grande prejuízo para suas vidas interiores”.[iii]

Costumo dar este texto às minhas alunas e alunos quando querem iniciar uma pesquisa. Numa universidade importante, mas de periferia, as condições intelectuais refletem a carência de recursos, a falta de estímulos profissionais e muitas vezes a incompreensão da própria sociedade. Tudo isso se soma às disputas nem sempre justas do meio social interno acadêmico. No entanto, alguns de nós insistimos em viver apenas para nossa vocação.

*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê). [https://amzn.to/3RTS2dB]

Notas


[i]Histórico do Concurso da Cadeira de Filosofia. São Paulo: Seção de Publicações da FFCL da USP, 1952.

[ii]Associação dos Antigos Alunos da FFCL da USP. Em Defesa da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. São Paulo: USP, 1952, p. 10.

[iii]Weber, Max. Ciência e Política: Duas Vocações. Trad. Leonidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 2013, p. 24.


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