Por HENRI ACSELRAD*
A liberdade de deslocamento dos capitais na escala global deu-se de modo a pôr em competição os trabalhadores de todo o mundo
1.
Como a questão do clima foi construída como um problema público? Em fins do século XVIII, um precursor dos estudos de população, Jean-Baptiste Moheau, sustentava que o clima deveria ser objeto de governo: “Depende do governo mudar a temperatura do ar, melhorar o clima; dar curso às águas estagnadas e às florestas queimadas que tornam morbígenos os cantões mais sadios”.[i]
No início do século XIX, os efeitos da emissão de gases sobre a temperatura da atmosfera, em particular, passaram a ser discutidos por cientistas, porém sem maiores conexões com a esfera política. Foi após a II Guerra que o clima passou a ser visto como elemento estratégico para as grandes potências: nos EUA, pesquisas de geoengenharia atmosférica buscaram viabilizar usos militares do desencadeamento de chuvas e do desvio de furacões.
Avanços nas tecnologias da computação e satélites reforçaram a área dos estudos climáticos, favorecendo, nos anos 1970, que questões do clima fossem introduzidas no espaço público. A expressão mudanças climáticas passou a vir acompanhada de um repertório de termos relativos não apenas à climatologia, mas ao campo dos desastres, como risco, vulnerabilidade, emergência, alerta, resiliência. Evidências de rupturas nas relações socioecológicas foram associadas ao aumento da frequência e intensidade de eventos climáticos extremos; transformações graduais percebidas em biomas e territórios foram atribuídas ao aumento das temperaturas.
Embora em anos recentes a questão do clima tenha se tornado um eixo do debate ambiental, há que se observar, antes, o modo como ela foi propriamente “ambientalizada”, ou seja, inscrita no campo do debate ambiental. Nos anos 1970, movimentos ambientalistas levantaram temas como inverno nuclear, poluição química, chuvas ácidas e buraco de ozônio, integrando-os na questão dita “das implicações da ação humana sobre o clima e do efeito de retorno do clima sobre as condições de vida na Terra”.
Essa afirmação esconde o fato que os responsáveis pelas alterações climáticas não são, de forma alguma, os mesmos atores sociais que sofrem suas consequências. Desmatadores e indústrias fósseis são comprovadamente apontados como responsáveis maiores pela emissão de gases estufa, enquanto grupos sociais não-brancos de baixa renda são mais do que proporcionalmente atingidos pelos efeitos danosos destas emissões.
Desde uma outra perspectiva, que não descole a sociedade de seu ambiente, podemos dizer que o clima é “ambientalizado” quando é visto como mediador de efeitos cruzados das práticas espaciais dos diferentes sujeitos entre si. Ou seja, quando se percebe que certas práticas de apropriação do espaço produzem alterações climáticas que, por seus efeitos, comprometem as condições ecológicas de exercício das práticas espaciais de terceiros. Em seu texto sobre governamentalidade, Michel Foucault apontava como o Estado moderno, a partir do final do século XVIII, passou a governar coisas pela economia política e pessoas pela “biopolitica”.[ii]
Podemos dizer que a questão ambiental colocou em pauta um novo campo de ação: o do governo das relações entre os humanos mediadas pelas coisas; em particular, pelo ar, águas e sistemas vivos, dimensões compartilhadas e não mercantis do espaço material,[iii] com forte potencial, portanto, de politização. Isto porque tais relações não são passíveis de serem mediadas por transações de mercado e pelo sistema de preços.
Com este deslocamento analítico, podemos fazer aflorar três problemáticas: (a) da legitimidade das distintas práticas espaciais – classificadas, por meio de controvérsias, como ambientalmente benignas ou danosas –, (b) da responsabilidade desigual dos sujeitos, segundo seus poderes respectivos de ação sobre variáveis ambientais, neste caso, climáticas; e (c) da exposição desigual dos sujeitos aos efeitos danosos dos eventos climáticos.
Naqueles anos 1970, tais problemáticas não haviam aflorado porque a associação entre questões ambientais e sociais era ainda débil ou inexistente. E também porque quando a questão da desigualdade ambiental começou a se prenunciar, esforços de despolitização entraram em ação, fazendo com que expressões como desigualdade ambiental, justiça climática ou racismo ambiental, por exemplo, só se tornassem mais visíveis na cena pública na segunda década de nosso século.
2.
É esse deslocamento analítico – que introduz, na trama, os sujeitos políticos e que nos permite entender, por exemplo, o discurso de movimentos indígenas explicando que seu combate às mudanças climáticas é o combate contra os grandes projetos, contra os monocultivos que assoreiam os igarapés, extinguem a flora e a fauna, assim como contra a fumaça das termoelétricas que prejudicam as condições de vida nas aldeias.
Este é o caso dos porta-vozes do Conselho Indígena de Roraima, por exemplo, que assumem seu papel de sujeitos, desenvolvendo planos de enfrentamento das mudanças climáticas – dizem eles – “por eles sofridas nas terras indígenas”, apontando aqueles que eles acreditam estar em sua origem e recusando o discurso corrente da adaptação às mudanças por não se considerarem por elas responsáveis.[iv]
Em sendo ambientalizado, por sua vez, o problema climático foi construído, ao mesmo tempo, como um problema público global. Questões ambientais foram sendo, de fato, globalizadas desde os anos 1960, a partir de articulações em rede de cientistas, ONGs e instituições multilaterais. Alguns de seus marcos foram o Programa Biológico Internacional lançado em 1964, sucedido pelo programa Homem e Biosfera da Unesco, em 1971. Em meio ao discurso sobre Mudanças Ambientais Globais, o tema do clima ganhou destaque numa Primeira Conferência em Genebra, em 1979, e, em 1988, na Conferência “Atmosfera em Mudança: implicações para a segurança global” realizada em Toronto, que coincidiu, por sua vez, com a repercussão midiática do depoimento de um ex-diretor de pesquisas ligado à Nasa, oponente ao uso do carvão, diante do Senado dos EUA.
Esses momentos prepararam a criação do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas – IPCC, em 1988, e da Convenção da ONU sobre Clima em 1992. A partir de então, o discurso científico prevaleceu, ainda que sob o filtro exercido pelos Estados nos relatórios do IPCC e sob a pressão dos lobbies das petroleiras nas Conferências das Partes. Vimos então se desenrolarem estratégias de dramatização, por parte da ciência, de autolegitimação ambiental, por parte das corporações, e de despolitização por parte de Estados e instituições multilaterais.
O clima foi sendo assim incorporado às dinâmicas da chamada “modernização ecológica do capitalismo”, a saber, sobre o tripé proficiência técnica, eficiência energética e tecnologias verdes, com a adoção de abordagens pragmáticas, centradas no mercado de carbono e em mecanismos de compensação.[v] Podemos falar talvez de um processo de “modernização climatológica do capitalismo”, a saber, do modo pelo qual as instituições correntes internalizaram uma questão climática, celebrando a economia de mercado, o progresso técnico e o consenso político.
Ou seja, uma operação discursiva que vem buscando transformar o que é apontado como “/restrição técnica” à expansão do capital em um mecanismo motor da própria acumulação, construindo um consenso climático liberal e fazendo do clima uma oportunidade de negócios, de criação de ativos financeiros e de autolegitimação ambiental das corporações. A esta ambientalização do capitalismo, a que o antropólogo Alfredo Wagner chamou de “ilusão lexical”, Nancy Fraser de “alquimia discursiva” e Ève Chiapello de “financeirização dos motivos de indignação”,[vi] poderíamos acrescentar tratar-se de um procedimento de “assédio vocabular” pela apropriação empresarial que é feita do vocabulário crítico.
Toda esta trama se inscreve, como sabemos, no contexto do que se tem chamado de crise ecológica, uma ideia ora ancorada na matriz malthusiana do clube de Roma, “do crescimento exponencial em um mundo de recursos finitos”,[vii] ou seja de um capitalismo ao qual viriam a faltar insumos, ora na relação sociedade-natureza, por abordagens que perdem, por vezes, de vista, a discussão sobre a “natureza do sociedade”. Mesmo entre autores marxistas, a ideia de crise ecológica é evocada pela metáfora de um capitalismo canibal, que corrói as bases ecológicas de sua própria existência.
É essa autoevidência de uma crise ecológica do capitalismo que propomos aqui problematizar. Em tais abordagens parece faltar a consideração das relações socioecológicas que caracterizam a ambientalidade própria ao capitalismo; ou seja, o entendimento da questão ambiental como intrinsecamente relacional e conflitual, pondo em pauta as relações entre as diferentes práticas de apropriação do espaço e, em particular, o fato que certo conjunto de práticas é apontado como responsável por comprometer a continuidade do exercício das práticas de terceiros.
Isto posto, cabe perguntar: haveria mesmo elementos para a caracterização de um processo de instabilização e crise das condições ecológicas de reprodução das relações sociais que constituem o capitalismo contemporâneo? Apresentaremos a seguir alguns elementos para este debate.
3.
O uso algo corrente da terminología “desregulação climática” sugere poder entendermos a chamada crise ambiental como um tipo de crise “de regulação”. Certas correntes da Economia Política já assim o fizeram na discussão sobre as crises econômicas.[viii] No caso da economia de 1929, os montantes investidos na produção de bens de capital e bens de consumo, por exemplo, não teriam se mostrado compatíveis com o tamanho da demanda por estes bens, à falta de uma coordenação que gerasse correspondência apropriada entre estes montantes.
Tal desregulação sistêmica teria sido a causa do desemprego em massa de recursos – força de trabalho e capitais. A pergunta que caberia fazer no caso do clima é: os indicadores de mudança climática poderiam ser vistos como sintoma de uma desregulação sistêmica das bases socioecológicas do capitalismo – assim como a quebradeira de empresas e o desemprego em massa o foram para as crises econômicas? De que regulação efetivamente se trata?
Na biologia, onde surgiu, este conceito refere-se a um ajuste autoregulado das partes de um organismo a seu todo. Importada da biologia e aplicada pelas ciências sociais, em lugar da autoregulação das partes de um corpo orgânico guiada pela integridade de um todo, devemos considerar o ajuste em questão como uma ação histórica – política – assumida por instituições e sujeitos sociais.
Ou seja, aplicado às sociedades, a regulação seria “o processo de ajuste, conforme uma regra ou norma, de uma pluralidade de movimentos, atos e efeitos, em princípio estranhos entre si, que requerem uma coordenação para assegurar a estabilidade/integridade do todo social”[ix]. Desta perspectiva, a noção de crise regulatória designaria situações de instabilidade derivadas das dificuldades de se coordenar as partes de um todo – em nosso caso, socioecológico – de modo a manter sua integridade e reproduzi-lo no tempo.[x]
No caso da economia, as crises clássicas estudadas teriam refletido uma descoordenação entre os circuitos de produção, consumo e acumulação de capital (as comumente denominadas crises de subconsumo ou de superprodução). A descoordenação entre esses circuitos teria sido tal que ela teria ameaçado comprometer a própria reprodução do capitalismo. Analogamente, no caso do meio ambiente, poderíamos falar de uma crise da “ambientalidade” do capitalismo se ela afetasse as relações socioecológicas sobre as quais ele repousa; ou seja, se o ambiente – nele incluindo-se o clima – constituído por essas relações deixasse de “ambientar” materialmente os negócios[xi].
Isto viria a ocorrer, supostamente, em razão da insuficiência de coordenação entre as práticas espaciais dos diferentes agentes sociais, ou mais especificamente, quando as práticas espaciais das classes dominantes perdessem sua capacidade de reprodução, abalando-se umas às outras por uma multiplicação de desastres e eventos disruptivos das condições ambientais de realização dessas mesmas práticas.
É interessante lembrar que nos anos 1920, o economista liberal conhecido como professor Pigou, um intelectual orgânico do capital, havia sugerido que a ausência de coordenação entre as decisões das empresas individuais representaria, para o capitalismo, um problema crucial, inclusive em suas dimensões ambientais[xii]. Para ele, o cálculo econômico de cada unidade de capital, efetuado em separado, seria falseado pela intercorrência de efeitos materiais, no caso por ele exposto, efeitos corrosivos de uma determinada fábrica sobre os equipamentos das fábricas vizinhas.
Os gestores destas últimas seriam levados a se equivocar na previsão do tempo necessário à amortização de suas máquinas: estas ficariam, assim, inutilizadas antes do previsto e o preço das mercadorias por elas produzidas não arcaria com o custo efetivo de sua substituição/amortização. Tudo isso porque ocorreriam efeitos materiais – ambientais – dos atos econômicos que não são mediados pelos sistemas de preços e pelo mercado. Esses efeitos são mediados, de fato, pelo espaço compartilhado não-mercantil das águas, do ar e dos sistemas vivos.
Nesta perspectiva, podemos supor, uma crise “ambiental” – inclusive de natureza climática – ocorreria caso o impacto ambiental recíproco e indesejável das práticas espaciais das empresas, não coordenadas entre si, viesse a ocasionar uma infinidade de “microdesastres” capazes de afetar o ambiente material e a lucratividade geral dos negócios. A ausência de coordenação entre os capitais individuais geraria, assim, uma irracionalidade para o capital em general.
Ou seja, na lógica de Pigou, o capitalismo conteria em si os germes de uma espécie de “desastre progressivo e cumulativo” que ameaçaria a reprodução de suas próprias práticas. Não devemos excluir o fato que o exemplo de Pigou tenha visado apenas, heuristicamente, apontar a importância da esfera não-econômica para os bens públicos como educação e saúde – no caso que citamos, circunstancialmente, o usufruto compartilhado da atmosfera “pública” – para o funcionamento da própria esfera econômica.
Sob o nome de “segunda contradição do capitalismo”, por sua vez, o marxista ecológico James O´Connor sustentou que quando os capitalistas individuais rebaixam seus custos, externalizando os danos ambientais que produzem, com a intenção de manter seus lucros, o efeito não desejado destas decisões é o aumento dos custos para outros capitalistas, reduzindo, assim, os lucros do capital em geral.[xiii]
Para O´Connor o capitalismo dirige-se a uma crise econômica tendencial em função dos danos ambientais que ele produz sobre suas próprias condições de produção. Este autor supõe, assim, a passagem, ao que nos parece um tanto mecânica, do que chama de crise ecológica ao que constituiria uma crise econômica do capitalismo [xiv]. Ele desconsidera, por exemplo, a possibilidade de que os capitais recorram a expedientes que impeçam, dificultem ou atrasem a transformação da eventual crise das condições ecológicas de exercício de suas práticas espaciais em uma crise econômica, de fato, para o capital. Evocaremos mais adiante as formas assumidas por essa possibilidade.
Fato é que este tipo de irracionalidade constitutiva, situada no mesmo plano do que Marx chamou da “condições gerais coletivas da produção social”[xv] – elementos que, embora situados fora do circuito de valorização do capital, são para ele indispensáveis – nunca foi objeto de séria consideração pelos gestores do capital eles próprios. Não o foi nos anos 1920, com Pigou, como parece não sê-lo hoje.[xvi] Mas por qual razão? Há que reconhecer que no caso do debate climático – os resultados tidos por insatisfatórios da COP 29 não nos deixam mentir[xvii] – Estados, corporações e instituições multilaterais não dão sinal de ver na questão climática razão suficiente para abandonar o capitalismo fóssil e extrativista. Podemos nos perguntar, antes de tudo, se há elementos para dizer que estamos, de fato, diante de uma crise ecológica para o próprio capital.
4.
Avancemos em nossa questão: de que modo a reprodução das práticas espaciais dominantes poderia se ver ameaçada pelo suposto esgotamento dos recursos ambientais de que dependem? Podemos supor dois caminhos: um primeiro, pela ausência de coordenação autolimitativa entre os capitais, o que ocasionaria uma erosão da base de recursos das próprias práticas dominantes – em termos de solos, água, sistemas vivos, condições climáticas – gerando quedas do rendimento esperado dos capitais.
Teria, no caso, faltado uma suposta coordenação que estabelecesse limites aos processos expansivos gerais como aqueles baseados, por exemplo, na obsolescência programada e no estímulo ao consumismo. Um segundo caminho – eis o que parece faltar no debate corrente – na impossibilidade de que os agentes dominantes se apropriem da base de recursos de terceiros – de camponeses, povos indígenas, comunidades tradicionais e moradores das periferias urbanas.
Ou seja, por processos aos quais se tem chamado de acumulação primitiva permanente ou por espoliação; pela impossibilidade de transferir para terceiros – grupos sociais não-dominantes – os danos ambientais das práticas espaciais dominantes. Estes dois mecanismos – em separado ou combinados – poderiam levar a uma crise de reprodução das práticas espaciais dominantes da grande indústria, da agropecuária, mineração, petróleo e gás. Entretanto, não é isto que se tem visto ocorrer com o capitalismo extrativo.
Pelo contrário, na América Latina, assim como na África e na Ásia, são os grupos sociais não-dominantes que sempre estiveram expostos a “crises ambientais” que lhes são específicas, dada a dificuldade de levarem a cabo suas próprias práticas espaciais, por serem submetidos ao despejo dos produtos invendáveis da atividade capitalista em seus espaços de vida e trabalho, pela expropriação e cercamento territorial que inviabilizam o uso de suas terras, matas, águas e recursos de uso comum.
Ou seja, a reprodução do tipo de capitalismo hoje vigente nos países do Sul veio se efetivando, em grande parte, pelo exercício da capacidade dos poderosos assignarem os danos ambientais que geram aos mais despossuídos – seja a montante de suas práticas produtivas (via expropriação) ou a jusante (via poluição, ou seja, imposição à população de um consumo forçado dos produtos invendáveis da atividade capitalista).
As práticas espaciais dos grupos dominantes vêm, de fato, se reproduzindo através de uma fuga para adiante, pela qual elas se alimentam da inviabilização da reprodução das práticas espaciais não-dominantes. Essa configuração diferenciada e conflitiva, fortemente presente na experiência dos movimentos sociais, pequenos agricultores, indigenas, quilombolas e povos tradicionais do Sul global, não nos parece estar sendo devidamente considerada nas análises correntes da chamada crise ecológica.
Face à permanência e intensificação do conflito entre movimentos sociais territorializados e o capitalismo extrativo, as corporações têm adotado cada vez mais, ao lado das campanhas de maquiagem verde e de autolegitimação ambiental, estratégias destinadas a dividir as comunidades e os movimentos sociais, de modo a liberar espaço para a expansão das fronteiras de seus negócios. Os ruralistas, por exemplo – ao menos parte deles designados, em certos meios, como “o pessoal do agro” – não mostram assumir em nada, para si, os incêndios florestais, ao mesmo tempo em que centram fogo na aprovação do marco temporal, que pretende congelar os direitos indígenas a suas terras.
5.
Isto posto, voltemos à nossa pergunta inicial: seriam os indicadores de desregulação climática um sintoma de crise na coordenação entre as práticas espaciais dominantes? A falta de controle dos efeitos ambientais (no caso, climáticos) acumulados destas práticas espaciais dominantes estaria gerando dificuldades para a própria reprodução destas mesmas práticas?
Ora, se assim fosse, podemos supor que as instâncias de articulação global dos capitais teriam provavelmente entrado em ação para além da visível busca de autolegitimação via “extrativismo verde”, fetichização do CO2, discursos de “emissões líquidas zero”, descarbonização etc.[xviii] Se não o têm feito, isto poderia estar se dando, podemos supor, não por uma falta de coordenação, mas, ao contrário, por estar em vigor um determinado tipo de coordenação.
Senão vejamos. Às vésperas da conferência de Nações Unidas no Rio em 1992, o economista-chefe do Banco Mundial, Lawrence Summers, escreveu em um memorando interno ao Banco: “a racionalidade econômica justifica que as atividades que geram males ambientais sejam relocalizadas nos países menos desenvolvidos”[xix]. Vemos aqui a formulação do que poderíamos chamar de uma “norma regulatória”, uma forma – perversa por certo – de coordenar as práticas espaciais no espaço mundial – uma forma típica do capitalismo neoliberalizado, com grande liberdade de movimento internacional de capitais.
A lógica economicista e inigualitária de Lawrence Summers – aquela de uma economia que distribui desigualmente a vida e a morte através de uma relocalização das práticas que causam males ambientais em localidades habitadas pelos mais pobres – também se manifesta nos espaços nacionais e pelos próprios efeitos de eventos extremos ditos naturais como furacões, ciclones e outros. Mais que isso – é o que sustentam os movimentos de justiça ambiental – essa lógica discriminatória poderia explicar o fato de não se ter visto até aqui nenhuma ação substantiva em direção à mudança na “ambientalidade” do capitalismo por parte dos poderes políticos e econômicos, posto que os males ambientais que lhes são próprios – inclusive os climáticos – têm sido destinados “com regularidade” aos mais despossuídos, negros, indígenas, mulheres e vulnerabilizados das periferias.
Assim, a crise decorrente da ausência de coordenação autolimitativa da expansão capitalista estaria sendo sistematicamente resolvida, para o capital por suposto, pelos mecanismos da acumulação por despossessão – ou seja, pela transferência dos danos do regime de acumulação aos mais despossuídos; pela reprodução e agravamento da desigualdade ambiental. O capitalismo é, assim, “canibal”, por certo, por canibalizar as condições ecológicas de vida e trabalho de terceiros, por se alimentar da crise que ele projeta sobre aqueles atores sociais que protagonizam modos de vida e formas não capitalistas de produção.
Isto posto, a aquilo que Ulrich Beck havia chamado de “irresponsabilidade organizada” – segundo ele, um “sistema de interações sociais em que atores sociais produzem e distribuem riscos de modo a evitar que sejam por eles responsabilizados”[xx], poderíamos agregar: uma “irresponsabilidade organizada de classe, raça e gênero”, a saber, um mecanismo de autodefesa pelo qual o capitalismo busca evitar que se configure uma crise ambiental para si através da transferência dos efeitos danosos, intrínsecos a seu padrão expansivo, técnico e locacional, às práticas espaciais e modos de vida daqueles que são, por ele, despossuídos.
No caso das mudanças climáticas que ora ocupa a pauta global, se o senso comum parece convencido de que o impacto das emissões de gases estufa é percebido globalmente, falta ainda despertar para o fato – e suas implicações – que ele é sofrido desigualmente.
Sabemos que, com os processos de neoliberalização, a liberdade de deslocamento dos capitais na escala global deu-se de modo a por em competição os trabalhadores de todo o mundo. As reformas liberais permitiram que os capitais globalizados, através da chantagem de localização dos investimentos, operada em escala internacional, agissem implicitamente em prol do lema: “trabalhadores de todo o mundo desuni-vos”. Isto as reformas buscaram estimular através da competição instaurada entre as diferentes escalas nacionais onde se inscrevem as relações salariais – ou seja, uma concorrência pelo rebaixamento de salários e perda de direitos.
Mas o mesmo veio ocorrendo no campo das regulações ambientais, através de um dumping desregulatório, que pode inclusive se apresentar, hoje, em nosso país, como uma explicação para a constituição de certa base social para o antiambientalismo agrominero-exportador. A liberdade que as grandes corporações têm de produzir desigualdade em várias escalas seria, portanto, causa importante da manutenção do modelo espoliador de desenvolvimento. Ou seja, a predação – e a arquitetura espacial do capitalismo extrativo que a sustenta – tenderia a continuar enquanto os que estiverem sofrendo seus efeitos forem os menos representados nas esferas do poder.
Só que, ao mesmo tempo, em nome do combate às mudanças climáticas, instituições do capitalismo central vêm pressionando os países do Sul a desempenhar um papel subordinado, de novo tipo, numa espécie de “divisão internacional do trabalho ecológico”, pela criação das chamadas “zonas de sacrifício verde” a compensar a continuidade das emissões dos países do Norte. Assim é que comunidades indígenas e tradicionais dos países do Sul têm sido estimuladas a estabelecer laços de dependência com relação a empresas via mercado de carbono, atualizando o papel da expropriação das periferias na reprodução do capitalismo extrativo global.
Ou seja, enquanto no contexto do fordismo, no pós II Guerra, ao menos nas economias centrais, as lutas sociais tiveram como resposta um conjunto de instituições de regulação – seguro desemprego, negociações coletivas de salários etc. – no caso do capitalismo extrativo, a resposta às lutas sociais e territoriais tem assumido a forma de um novo discurso empresarial – o grande reinício diz o presidente do Fórum de Davos[xxi] – , de políticas sociais privadas voltadas à desmobilização de grupos atingidos, de processos judiciais e assédio judicial contra lançadores de alerta e pesquisadores que apontam irregularidades nos projetos empresariais.
O que tem ocorrido é, antes, portanto, uma resposta às críticas – com ampliação simultânea de mercados, ativos financeiros e criação de novos tipos de cercamentos – do que reação dos capitais e das instituições multilaterais a uma suposta crise. O que se poderia configurar como fator de uma futura crise para o capitalismo extrativo seriam, com efeito, as lutas territoriais e ambientais dos atores sociais que defendem o respeito a seus direitos, suas práticas espaciais e seus modos de vida ameaçados pelos grandes projetos extrativos.
*Henri Acselrad é professor titular aposentado do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ).
Notas
[i] Jean-Baptiste Moheau, Recherches et considérations sur la population de la France, Moutard Imprimeur, Paris, 1778.
[ii] M. Foucault, A Governamentalidade, in M. Foucault, Microfísica do poder, ed. Graal, 1979, RJ, p. 277-296.
[iii] Na transcrição de seu curso de 1976, Foucault fala da“acão à distância de um corpo sobre outro”, de um “espaço de ínterseção entre uma multiplicidade de indivíduos que vivem, trabalham e coexístem uns com os outros num conjunto de elementos materiais que agem sobre eles e sobre os quais eles agem de volta.” Michel Foucault, Segurança, território, população. Curso no Collège de France (1977-1978); São Paulo: Martíns Fontes. p. 29.
[iv] Amazad Pana’Adinhan; Percepções das Comunidades Indígenas sobre as Mudanças Climática, Região Serra da Lua – RR; Conselho Indígena de Roraima, Boa Vista, 2014.
[v] A. Dahan Dalmedico e H. Guillemot. Is climate change an environmental problem? Epistemological and political reflections. Social Sciences and Humanities facing Climate Change Challenges. Conférence Maison de la Chimie, Paris, September 22-23, 2008.
[vi] “Le capitalisme ne semble pas capable d’intégrer la critique écologique”, Entretien avec la sociologue Ève Chiapello, Philanomist, https://www.philonomist.com/en/interview/capitalism-seems-incapable-integrating-environmental-critique, acesso 10/11/2024.
[vii] Donella H. Meadows Dennis L. Meadows Jorgen Randers William W. Behrens Ill, The Limits to Growth, Universe Book, New York, 1972.
[viii] Entre os trabalhos que deram impulso a este debate citam-se o livro de Michel Aglietta, Régulation et crises du capitalisme, Calmann-Lévy, Paris, 1976 e o artigo de Robert Boyer, no número sobre crises, da revista Critiques de l´Économie Politique, n.7-8, de 1979.
[x] R. Di Ruzza, La notion de norme dans les théories de la régulation, Economies et Sociétés, R7, novembre 1993, pp. 7-19. Para Boyer, por sua vez, as normas de regulação, consistem em formas institucionais (leis, regras ou regulamentos – não necessariamente formalizados) “que impõem, pela coerção direta, simbólica ou mediada, um certo tipo de comportamento econômico a grupos e indivíduos concernidos”; R. Boyer, A Teoria da Regulação – uma análise crítica, Nobel, 1990, SP.
[xi] Aplicamos aqui, às práticas espaciais dominantes, a assertiva mais genérica de Latour-Schwartz-Charvolin, segundo a qual “fala-se de crise ambiental quando o meio ambiente não ambienta mais a sociedade”, B. Latour, C. Schwartz, F. Charvolin, Futur Antérieur, n°6, 1991, p. 28-56.
[xii] A.C. Pigou The Economics of Welfare. London: Macmillan, 1920. Este autor formulou tal problemática sem utilizar terminologia propriamente ambiental.
[xiii] J. O´Connor, ‘The second contradiction of capitalism’, in T. Benton (ed.) The Greening of Marxism. The Guilford Press, New York & London, 1996, First published in Capitalism, Nature, Socialism, Issue 1, Fall 1988.
[xiv] As estratégias analíticas deste subcampo não deixam de evocar, por caminhos, sem dúvida, completamente diversos, aquela adotada por Herman Daly e demais iniciadores da Economia Ecológica, cujo discurso tinha por alvo os próprios agentes do capital, quando buscava sensibilizá-los para o fato que “o capital consumia como renda o que devia ser considerado como capital natural.” Robert Costanza e Herman E. Daly, Natural Capital and Sustainable Development, Conservation Biology , Mar., 1992, Vol. 6, No. 1, pp. 37-46.
[xv] No Grundrisse, Marx evoca a « relação específica do capital às condições coletivas, gerais da produção social » K. Marx, Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858 – esboços da crítica da economia política. São Paulo/Rio de Janeiro. p. 376. Aos elementos constitutivos de tais condições, chamei, em texto anterior, de capital fictício desvalorizado, a saber, elementos que, embora situados fora do circuito de valorização do capital, são para ele indispensáveis; H. Acselrad, “Internalização de custos ambientais – da eficácia instrumental à legitimidade política”, in J. Natal (org.), Território e Planejamento, IPPUR/Letracapital, Rio de Janeiro, 2011, p. 391-414.
[xvi] “A maioria das empresas não percebe o quanto é dependente da natureza”, afirma a lider da área de mudanças climáticas de uma empresa de consultoria autoreferida como uma “comunidade de solvers”.Valor, 13/12/2024, P. F3.
[xvii] Entre analistas que manifestaram seu ceticismo quanto às possibilidades de sucesso da Conferência das Partes 29, alguns disseram tratar-se de um “instrumento natimorto”; outros, do “reflexo de um inepto regime multilateral improvisado pela apressada Convenção do Clima”.
[xviii] F. Furtado e E. Paim, E. Energia renovável e extrativismo verde: transição ou reconfiguração? . Revista Brasileira De Estudos Urbanos E Regionais, 26(1), 2024. https://doi.org/10.22296/2317-1529.rbeur.202416pt
[xix] “Let Them Eat Pollution.”, The Economist, February 8, 1992.
[xx] U. Beck, Ecological politics in an age of risk. Engl. tr., Cambridge, Polity Press, 1995.
[xxi] Klaus Schwab, Apresentação do relatório “O Futuro da Natureza e os Negócios”, Forum Econômico Mundial, Genebra, 17/7/2020
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