Philip Roth, muito além da imaginação

Imagem: Mustafa ŞİMŞEK
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Por SAMUEL KILSZTAJN*

O escritor era acusado de ser antissemita, de odiar a si mesmo. Por outro lado, era enaltecido pelos judeus por ser um dos escritores norte-americanos mais premiados de sua geração

A imaginação possui uma estrutura desvendável. Já o real é totalmente indecifrável e imprevisível, até que efetivamente ocorra e torne-se óbvio para os assinantes do jornal de amanhã e para os engenheiros de obras prontas.

Você pode ficar maravilhado com uma ficção e pode até ficar encafifado com a linguagem onírica de uma obra nonsense. Mas o susto que leva com a chamada realidade está muito além da imaginação. “Nunca vi isso!”, pois é, mas agora você está vendo. A maior parte dos escritores usa suas memórias para produzir ficção, mas Philip Roth é conhecido como o autor que, mais do que isso, confunde deliberadamente autobiografia e ficção.

Eu não escrevo ficção porque, para mim, soa como se eu estivesse escrevendo um monte de mentiras (embora eu adore ler ficção). Só escrevo memórias e, mesmo assim, filtro todas elas porque acho que sou responsável pelas palavras que saem da minha boca e, mais ainda, pelas palavras cravadas, isto é, gravadas ou grafadas. Evito expor as pessoas que me cercam, vivas, moribundas ou mortas. Não conto o que sei, sei o que conto. Alguém poderia dizer, então, que conto meias verdades.

Mesmo me abstendo de expor as pessoas que me cercam, minhas memórias põem a nu um monte de instituições e pessoas, sem nomeá-las, que se escondem atrás dessas instituições. Pode parecer contraditório, mas, nestes casos, estou assumindo a responsabilidade de denunciar condutas que me parecem perversas, vindas de pessoas e instituições acima de qualquer suspeita.

Goodbye Columbus

Goodbye Columbus marca a estreia do irreverente Philip Roth no mercado editorial. O que conhecemos como a revolução sexual dos anos 1960, nos Estados Unidos deu-se nos anos 1950, a ponto de ganhar espaço literário já no final dessa década. O livro Goodbye Columbus reúne cinco contos, além da história que dá título ao livro, que narra o relacionamento sexual entre dois jovens namorados, publicada originalmente em The Paris Review.

Na abertura do conto Goodbye Columbus, já no primeiro parágrafo, o rapaz tem uma ereção ao observar uma garota puxar, com os dedos, a parte de trás do maiô, de forma a colocar as suas carnes no devido lugar. Tive uma ereção, em inglês, seria I had an erection e, mais vulgarmente, I had a hard-on, pouco apropriado para uma obra literária. Philip Roth usou my blood jumped, meu sangue saltou.

O romance segue com a aproximação afetiva e sexual do casal. O rapaz pede para a namorada usar um diafragma como contraceptivo. A pílula anticoncepcional só foi introduzida nos anos 1960, mas o diafragma era amplamente utilizado pelas mulheres casadas norte-americanas desde os anos 1920. Nos anos 1950, vários ginecologistas começaram a disponibilizar o contraceptivo para mulheres solteiras. A garota, a princípio, recusou-se a providenciar um diafragma, mas depois cedeu. Eles estavam enamorados.

Por descuido, a garota deixou o diafragma na casa dos pais quando voltou para a universidade. A mãe, limpando as gavetas da menina, encontrou o artefato debaixo de uma de suas roupas e foi um escândalo. Quando o rapaz soube do ocorrido, não conseguiu desculpar a namorada pelo descuido e o romance terminou. Junto com o romance entre os dois enamorados, acabou a história também, em total desacordo com o sublime envolvimento do casal até esse ponto.

Ou seja, a história desanda no final. Mas o que valeu o tremendo sucesso de crítica e público foi a irreverente narrativa literária de uma relação amorosa e sexual entre dois jovens de classe média, não casados, já nos anos 1950.

Goodbye Columbus foi publicado em forma de livro em 1959. Em Epstein, um dos outros cinco contos que compõem o livro, a filha do protagonista também se relaciona sexualmente com o noivo. Até o sobrinho, em visita por uma só noite, aproveita a oportunidade para trazer a filha da vizinha, que acabara de conhecer, para uma relação sexual na casa do titio Lou Epstein.

Patrimony

Patrimony, que alguns escritores consideram a obra máxima de Philip Roth, foi publicado em1991 e narra a sua história com o pai. O pai, dissolvido em lágrimas, pediu para ele não contar a sua cagada (I beshat myself, eu me caguei) para os netos, nem para a esposa do Philip, e ele prontamente aquiesceu, “não vou contar para ninguém”. Mas, depois que o pai se foi, Philip contou a cagada dele para deus e para o diabo, a cagada que era a herança que seu pai lhe deixou e deu título a Patrimony, a true story.

“A merda estava por todos os lados, espalhada no tapete do banheiro, escorrendo pela borda do vaso sanitário e, ao pé do vaso, em uma pilha no chão. Estava borrifada pelo vidro do box do chuveiro de onde ele tinha acabado de sair; e as roupas descartadas no corredor estavam coaguladas com merda. Estava no canto da toalha com a qual ele tinha começado a se secar… ele tinha conseguido espalhar merda sobre todas as coisas. Eu vi que estava até nas pontas das cerdas da minha escova de dentes pendurada no suporte sobre a pia”.

So that was the patrimony… There was my patrimony… the shit.”

E Philip Roth teve ainda que viver com o peso de seu vaidoso pai, em sonhos, reclamar de ter sido enterrado nu, envolto em seu sagrado manto judeu, ele que queria partir para a eternidade vestido em um garboso terno.

Operation Shylock

Algumas pessoas valorizam histórias reais e romances históricos, principalmente se estiverem disponíveis em forma de filmes. Há pessoas que não se interessam minimamente por história, mas que se gabam quando assistem um romance histórico “real”, achando que estão adentrando a alta cultura.

Antes de partir para Israel em abril de 2023, para me acompanhar na viagem, uma amiga me presenteou com o Operation Shylock, que tem como foco a relação do irreverente Philip Roth com o sionismo e o Estado de Israel. Comecei a ler o livro ainda em São Paulo e achei instigante. Quando cheguei na altura da metade do livro, eu já estava completamente paranoico, pensando em desistir dessa minha viagem a Israel. Empreendi a viagem, mas sem a companhia do Philip, que deixei para terminar de ler na minha volta a São Paulo, quando redigi Jaffa.

Philip Roth era acusado de ser antissemita, de odiar a si mesmo. Por outro lado, era enaltecido pelos judeus por ser um dos escritores norte-americanos mais premiados de sua geração. Em Operation Shylock, publicado em 1993, em um jogo de espelhos, há três Philip Roth – o autor, o protagonista (que acumula a função de narrador) e o duplo do protagonista (e o protagonista, no meio da obra, também assume o papel do duplo, que então poderia até ser considerado um quarto Philip).

No romance, o protagonista, embora íntegro, depois de ser sequestrado pelo Mossad, decide colaborar com o serviço secreto, para poder, como queria acreditar, denunciar as formas de atuação do Estado de Israel. O cínico agente sênior, que convence Philip Roth a colaborar com o Mossad, afirma que “O que nós fizemos com os palestinos é perverso. Nós os tiramos de suas casas e os oprimimos. Nós os expulsamos, espancamos, torturamos e assassinamos. O Estado Judeu, desde que nasceu, se dedicou a eliminar a presença palestina na Palestina histórica e a desapropriar a terra de um povo nativo. Os palestinos foram expulsos, dispersos e dominados pelos judeus. Para criar um Estado Judeu, nós traímos nossa história – fizemos com os palestinos o que os cristãos fizeram conosco: nós os transformamos sistematicamente no desprezado e subjugado Outro, privando-os, desta forma, de sua condição humana. Independentemente do terrorismo ou dos terroristas, ou da estupidez política de Yasser Arafat, a verdade é esta: como povo, os palestinos são totalmente inocentes, e como povo os judeus são totalmente culpados”.

A estrutura da obra é perfeita, o autor suprime o último capítulo do romance porque foi rejeitado pelo Mossad, o capítulo que denunciava as formas de atuação do Estado de Israel, que havia sido a razão que tinha levado o protagonista e narrador a colaborar com o serviço secreto israelense, em uma ação que expôs e provocou a morte de seu amigo palestino de infância. O Mossad ameaçou arruinar a reputação de Philip Roth enquanto escritor e fazê-lo em pedaços, em uma operação de inteligência sem limites, acionada por uma coordenada, mas dissipada campanha articulando boatos, piadinhas infames, insultos, calúnias, denúncias de deficiências morais, superficialidade, vulgaridade, covardia, avareza, indecência, falsidade, traição, difamação…

Intimidado, Philip, o protagonista, suprime o último capítulo, mas, em nota ao leitor, o autor afirma que “Qualquer semelhança com fatos, locais e pessoas reais, vivas ou mortas, é mera coincidência. Esta confissão é falsa”.

*Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de Jaffa amz.run/7C8V.


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