Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES*
Considerações sobre o livro de Júlia Lopes de Almeida
1.
Memórias de Marta, de Júlia Lopes de Almeida, é um típico caso do romance burguês. A jovem protagonista nasce numa família de classe média pobre carioca que se vê desamparada com a morte do pai, causada pela febre amarela. A decadência é imediata: a jovem e a mãe vão morar num cortiço e passam a conviver com a ralé do tempo, entenda-se: pessoas que precisavam fazer trabalho braçal para sobreviver. O que move a trama é o desejo de Marta de superar os desafios impostos pela vida através do mérito individual e do trabalho.
Os sentimentos que ela descreve ao longo de sua narrativa memorialística são os típicos do herói do romance burguês: inveja e invectiva contra as injustiças sociais que precisam ser superadas. Seu talento individual para o estudo garante que ela consiga finalmente deixar a situação de precariedade em que vive com a mãe, primeiro como auxiliar de sua professora e, depois, como concursada.
O desejo de autonomia individual e de não dependência é expresso de forma explícita pela moça: “Alcancei uma posição independente; não precisarei do apoio de ninguém”.[i] A isso se soma sua ambição amorosa, que se expressa romanticamente. A jovem desenvolve uma fixação por um moço que a fica olhando um dia na escola e, depois, mais significativa, por um parente de sua professora, Luís, que conhece numa viagem para desestressar.
O segundo caso, mais desenvolvido, é um choque de realidade para a jovem e introduz na novela o tipo do galanteador romântico desautorizado pela perspectiva narrativa. O entrecho conjuga, assim, dois elementos fundamentais do romance burguês: o casamento por amor e o desejo de ascensão social pela força do mérito. Os dois aspectos estão conjugados: casar-se pelo próprio alvedrio e conquistar uma posição de proeminência no mundo são duas faces de uma mesma autoafirmação individual tão típica do século XIX.
Mas essa não é a história toda, como não poderia deixar de ser. Imitemos o argumento de Roberto Schwarz sobre o Senhora, de Alencar;[ii] ele pode nos ajudar a caracterizar o texto. Na periferia do drama central representado pela heroína burguesa está o mundo do favor, do compadrio e da sociabilidade brasileira. Mas como não se trata de um romance, mas de uma novela, a periferia é também o centro: o que parece ser a vitória da escolarização e do mérito é, também, fruto de relações de compadrio e favor.
Quem parece entender cabalmente essa dinâmica é a mãe da jovem narradora: ela sabe claramente que a posição da filha depende de sua vinculação com a professorinha D. Ana, e recorre a ela constantemente para ajudar com as questões de saúde física e mental da filha; ela sabe que o favor de alguém importante não é prescindível, como gostaria a filha, e insiste que ela vá a uma audiência com a Imperatriz em busca de proteção; ela sabe que, apesar da posição, um casamento adequado seria um que desse segurança à filha e correspondesse à sua posição social e não um delírio romântico de autoafirmação.
O que a narradora nos apresenta como uma espécie de labuta infindável em torno da superação social é, no conjunto, na fatura da forma, visto como parte da sociabilidade brasileiramente amoldada. Daqui algumas consequências importantes devem ser tiradas. A primeira é que a forma como a narradora nos apresenta seus dilemas, por mais que não possa ser tomado por seu valor de face, deve ser considerado no processo de interpretação do livro. Ou seja, considerar porque um conflito não-burguês aparece como um conflito burguês no processo de sua rememoração.
A voga das modas literárias seria uma explicação, assim como certa falsificação ideológica da própria heroína sobre si mesma é outra. Ambas verdadeiras, não me parecem fechar o problema porque esse entroncamento discursivo é um dado prático da vida brasileira. Se a elucidação pela filiação de textos é em parte verdadeira, ela não fecha o imbróglio. Dito de outra forma, a psicologia da heroína é um elemento que deve ser considerado por seu peso específico, porque, apesar da possível falsificação ideológica por meio da qual ela nos apresenta sua história, seu perfil é, ele próprio, parte do universo da sociabilidade brasileira.
A sensação de constante humilhação e suas somatizações são parte significativa de sua feição individual. A subalternidade social imprime em seu caráter, ao mesmo tempo, algo de quebradiço e de intimidador. Ela está a todo momento a ponto de se quebrar pelos desafios impostos pela sua situação, mas também insistindo em manter-se firme no combate necessário para sua superação, o que se realiza pela relação algo doentia que é descrita da personagem com os estudos, aos quais ele se dedica de maneira exacerbada, em parte para compensar sua inferioridade e em parte para engolir as humilhações do dia a dia.
Nada disso pode ser tomado de maneira abstrata, porque, no fundo, o que se está discutindo ali é a questão do trabalho. Tanto nossa heroína quanto sua mãe estão trabalhando todo o tempo e seu sofrimento é, nesse sentido, muito distinto da maioria dos heróis do romance burguês europeu. Primeiro porque, em parte, eles não estão, de fato, trabalhando, mas são sujeitos de classe média baixa que pretendem elevar-se socialmente.
Dois exemplos: tanto Raphael de Valentin quanto Rastignac, os heróis balzaquianos de A pele do onagro e de O pai Goriot, são sujeitos de classe média que pretendem ter uma posição de proeminência na sociedade e estão longe, para dizer o mínimo, do universo do trabalho degradante a que nossa heroína está sujeita. Segundo, mesmo nos casos em que esses heróis estão mais próximos do universo do trabalho, a sociedade representada não relega o trabalho braçal à condição de animalização escravizante que é típica da sociedade brasileira. Ou seja: mesmo quando trabalham, o trabalho não é tão degradante quanto o que vemos aqui.
Há também uma diferença nítida em relação ao universo de José de Alencar, uma vez que, se em seu romance existe o universo do trabalho braçal degradante em relação ao qual todos pretendem fugir, em seu entrecho não é o trabalho o elemento de ascensão social, mas o casamento ou a herança. O que espero estar destacando é certa especificidade da psicologia da personagem dado o caráter específico de sua posição social.
Embora não possa ser colocada na leva de textos naturalistas com facilidade, a novela de Júlia Lopes de Almeida já pertence ao universo da representação dos problemas que precisam trabalhar em condições de degradação de desumanização que fizeram época com os romances de Émile Zola. No caso brasileiro, a especificidade é ainda uma vez matizada, já que trabalho, por essas bandas, tem uma significação muito distinta daquela do mainstream naturalista da época. A psicologia da jovem Marta, assim como a natureza específica de sua falsificação ideológica, é a do pobre que encontra seu lugar ao sol, mesmo que isso dependa de sacrifícios e extenuação física e mental.
Retenhamos antes de tirar outra consequência. O que vimos é que o entrecho, que assume a forma do enredo burguês clássico, não é, na verdade, um enredo burguês, mas está apresentado assim pela narradora que mascara por seu intermédio as relações de favor que de fato impulsionam a sua ascensão social. Os sentimentos da narradora, apresentados como sentimentos burgueses, também não devem ser interpretados nessa chave – ou não simplesmente –, porque eles implicam um processo de superação num contexto de degradação que simplesmente não existe no caso do romance burguês e cujo aparecimento em nossa literatura era, então, inédito nos termos propostos.
A ideologia da autoafirmação do pobre batalhador tão em voga hoje pode nos ajudar a entender a psicologia de nossa heroína (ou o contrário, a depender dos interesses). O motorista de iFood que acredita ser um empresário de si mesmo, ou o Uber que se enxerga como um autônomo empreendedor são talvez uma chave para pensarmos o romance. De um lado, seu sentimento de autoafirmação individual vem da sensação – na maioria das vezes verdadeira – de completo abandono social: como as estruturas de proteção não o alcançam em suas demandas subjetivas e comunitárias, resta para ele apenas tomar sua vida nas próprias mãos. Embora a primeira frase da afirmação possa ser verdadeira na maioria dos casos, a segunda é falsa em todos eles. Mesmo que ele acredite em tal fantasmagoria, a rotina de trabalho exaustivo não o levará a lugar algum; pelo contrário, intensificará seu adoecimento social e sua necessidade de reafirmação pelo trabalho.
Aqui estamos já na vida interior de nossa personagem, socialmente adoecida e constantemente em necessidade de afundar-se no trabalho, tanto de um ponto de vista objetivo quanto subjetivo. Dito de forma simples, sua psicologia é ideologia pelo falseamento que promove (em literatura: aburguesamento da novela) e verdade de seu ser social (em literatura: o enquadramento pelo trabalho).
Diga-se, de passagem, que essa mistura está no conjunto da obra e pode ser jogada para a responsabilidade da autora. O livro tem algo de sondagem de processos psicológicos reais que envolvem o pobre em necessidade constante de afirmação em contexto hostil e defesa ideológica do trabalho e da escolarização como vias de emancipação. Vários argumentos poderiam ser feitos em relação a essa mistura, mas me parece que, como ela está configurada, se trata de um defeito, porque leva a obra a embarcar na falsificação da realidade e não em seu desvendamento crítico, o que lhe garantiria verdadeiro fôlego emancipatório.
A narrativa de sucesso relativo dá peso à ideologia liberal e industriosa que grassava na época, ao invés de desmascarar sua inefetividade prática. O final conciliatório é preciso quanto a isso: admite-se como solução satisfatória o simples reenquadramento da heroína no mundo do favor por meio do compadrio (mesmo que a custo de trabalho extenuante), ao invés de levar às últimas consequências os ímpetos de liberdade e independência da protagonista. O problema é que essa solução seria igualmente falsa, o que gera o curto-circuito que só o romance machadiano resolveu à época.
A falsidade das soluções não provém de talento ou de capacidade, mas da matriz prática a que a sociedade brasileira submete a potencialidade criadora: o que trava todas as soluções é, no fim, o fato de que não havia à época, nem estava no horizonte haver, uma sociedade do trabalho. As soluções são impróprias não por causa dos escritores, mas por causa da vida brasileira que, à época da publicação, ainda estava se vendo com o trabalho escravo e com as dificuldades da emergência de um mercado de trabalho que possibilitasse a ascensão social esboçada em termos burgueses.
Aliás, a saída encontra por Machado de Assis foi exatamente mudar a perspectiva da própria narração, evitando o problema em torno do qual não havia síntese possível. Não é de pouca importância o fato de que a uma retomada mais satisfatória para esse problema só se vá encontrar a partir da década de 1930, ou seja, quando a vida nacional finalmente se vê confrontada em termos práticos com o problema do pobre e de seu pertencimento na sociedade brasileira.
Outra consequência que é preciso tirar para essa contradição entre centro burguês e periferia (nem tão periférica assim) brasileiramente conformada é certa sensação de aleatoriedade do entrecho como um todo. Aqui o caráter ideológico do conjunto é evidente: a história que Marta nos conta não tem nenhum valor de tipicidade para a sociedade brasileira. O típico, para nossa heroína, é o destino de sua amiga de cortiço, Carolina. A única coisa que determina a centralidade dada ao enredo é, no fim, o desejo da própria autora de que aquela história seja contada. A sensação de que o enredo é aleatório vem, portanto, do pendor ideológico da narrativa pela afirmação dos valores do trabalho, da escolarização e da emancipação social dos pobres.
2.
Como uma espécie de reforço do caráter ideológico do entrecho está certa linguagem religiosa, moralizante ou monarquista que perpassa a narrativa e funciona como mecanismo de sua explicação. Um exemplo: “Com que orgulho eu penso na desvelada solicitude que tem em geral a mulher brasileira para o filho amado! Não o repudia nunca, trabalha ou morre por ele; coração cheio de amor, perdoemos-lhe os erros da educação que transmite, e abençoemo-la pelo que ama e pelo que padece”.[iii] Há algo disso também na expressão impressionada da narradora quando vê a Imperatriz vindo em sua direção: “Deus do céu, era ela!”.[iv]
A frase é interessante em seu contexto, porque ela deixa emergir de dentro da protagonista um substrato de sua formação social e individual que, conscientemente, como parte do trabalho ideológico da afirmação do trabalho e da educação como via de emancipação, ela procura negar: vai ao encontra da Imperatriz praticamente por obrigação da mãe. Esse tom do romance ainda se pode notar no caráter altruísta e sacrificial de Carolina.
O ambiente abafado e monarquista lembra, mais uma vez, algo de José de Alencar, mas atualiza a linguagem de forma a fazê-la conviver com os novos valores liberais das décadas de 1880-1890. A mistura é singular porque contraditória: a linguagem conformista da narradora transforma seu dilema propriamente burguês de dignidade e não de emancipação, mas os valores ideológicos que estão em movimento (trabalho e escolarização) apontam em outra direção.
Essa disjunção pode nos ajudar a entender a perspectiva da narração: Marta, estabilizada na vida como professora concursada que trabalha no Engenho Novo, casada com um homem bom e que lhe garante certa proteção, vê sua história do ponto de vista dos vencedores relativos, ou seja, daqueles que venceram não porque realizaram seus ímpetos de libertação e independência, mas porque souberam reencontrar seu lugar na ordem social.
Trata-se de uma narrativa do ponto de vista dos miseráveis incluídos que, como lembrou FHC em 1996, não constituem nem a totalidade nem a maioria.[v] O ponto de vista ideológico é a justificação da vitória individual e irrepetível, o que dá nova fisionomia à aleatoriedade: ela é uma necessidade de um mundo social em que o projeto é a cisão inviabilizadora da organicidade. A linguagem conformista do texto se casa bem com esse ponto de vista, que é uma mescla de autoindulgência e autoengano.
Na edição publicada no jornal a autora coloca uma página final que foi excluída da edição em livro e que, me parece, ilumina muita coisa: “Passaram-se dois anos e eu tive uma filha; foi o primeiro raio de luz a iluminar-me o lar, saudoso de minha mãe! A criança tinha incríveis parecenças com ela e, ao beijá-la, muitas vezes eu pensava como um consolo na teoria da transmigração das almas e dizia de mim para mim: – Quem sabe se neste corpinho adorado, pequenino e tenro, não estará aquela grande alma imaculada da santa que se foi embora? A minha filha absorveu-se inteiramente o espírito cansado de sofrer, foi o encanto, foi o enlevo dos meus dias. O pai a adorava, ela adorava o pai, e vivemos os três na mais doce harmonia: eu resignada, meu marido afetuoso, e a nossa filha, a nossa adorada Cecília, sempre alegre! Por ela e para ela escrevi estas páginas monótonas, mas profundamente sinceras. Nelas pus ao a minha vida; nelas notei todos os meus sentimentos bons ou maus; nelas lhe deixo um exemplo sublime, que não pude fazer ressaltar como devera, mas que é a melhor e mais sagrada das lembranças – a bondade da avó”.[vi]
A ambiguidade do trecho coloca em primeiro plano o caráter de revisão efetuado pela autora nos dois níveis diferentes de composição que identificamos. A situação da jovem Marta está agora mudada: ela tem uma filha e vive feliz com o marido. Sua situação, no entanto, é caracterizada pela resignação: ela se resigna exatamente por abandonar os ímpetos de libertação emancipatória da juventude.
Esses mesmos impulsos serão caracterizados abaixo como seus “sentimentos maus”: a inveja da menina rica e sua boneca, a indignação com a situação em que vivem, a humilhação de viver em situação de pobreza e exclusão, a raiva por ter sua situação econômica como claro impedimento para seus envolvimentos amorosos – tudo isso é visto agora como o conjunto de “sentimentos maus” que ela colocou junto dos bons. Ora, esses sentimentos são exatamente o que a levou para frente e a caracteriza como heroína burguesa, mas eles são agora renegados do ponto de vista de uma linguagem religiosa e moralizante.
Tudo isso está sintetizado na santificação da figura da mãe, que teria sacrificado tudo em nome da filha. Ela se sobrecarrega em vários momentos para poder dar à jovem Marta condições físicas e mentais de perseguir sua carreira como professora. Ela é abnegada, mas também sensata, como já vimos pela sua adesão prática e consciente ao universo do favor. Ela é, também, o custo verdadeiro do processo de recolocação da filha: ela se mata de trabalhar para que a moça possa alcançar sua posição na vida. À sua bondade cristã corresponde também a piedade da filha depois de sua morte.
Comparando ainda com os entrechos do romance europeu, pense-se na maldade intransigente de Rastignac em relação à situação de sua família, que se mata de trabalhar para que ele possa trilhar sua ascensão parisiense em O pai Goriot; pense-se, ainda, na jovem Pauline que se sacrifica em nome dos delírios intelectuais e amorosos de Raphael de Valentin em A pele do onagro. O herói burguês, no entanto, é impiedoso até o final; caso contrário, não teria a força para sua autoafirmação completa. É exatamente isso que falta à nossa heroína e que caracteriza o abafamento de seu ímpeto emancipatório. Certo sentimento de piedade está implicado no entrecho dos romances que citamos, mas ele não é dominante; pelo contrário, para que se realize a forma do romance, ele precisa ser suplantado pelos valores novos que marcam o mundo burguês.
Mas o trecho ainda pode e deve ser lido em outra chave: ele revela parte significativa daquela psicologia do pobre extenuado, embora vencedor. O sentimento de piedade filial se transmuta, ainda em linguagem religiosa, numa espécie de projeção da avó sobre a neta. Um senso peculiar de família se entrevê aqui, um que está baseado na comunhão dos suplícios. A relação entre mãe, filha e neta está balizada pelo compartilhamento dos sofrimentos; é verdade que ele aparece religiosamente interpretado, mas isso não altera o fato de fundo de sua contraparte material.
Pelo contrário: a própria indumentária religiosa que esse sentimento de família usa é própria das camadas populares. Isso não deve obnubilar o fato de que tal sentimento, se é cunhado nas relações práticas de compartilhamento do sofrimento, é parte significativa daquele mesmo polo da sociabilidade brasileira, que a engloba desde sua base material até seu aparecimento ideológico.
O demérito do texto é não o perspectivar adequadamente, ou seja, interpretar de forma uniforme e pouco profunda a psicologia da própria mãe. Ao simplesmente santificá-la, ao invés de problematizar suas motivações e suas ações, ao invés de incorporar de forma problemática a linguagem religiosa que esse sentimento familiar de partilha do suplício, o texto se “alencariza” e opta por uma solução que flerta com o atraso.
Vejamos a questão assim: o solicitador Miranda, com quem Marta se casará, é um homem de “quarenta e tantos anos”[vii] que se interessa pela filha da passadeira a partir de umas cartas suas que lê. A fala da mãe, na verdade, indica certa malícia na quebra da confiança entre as duas por ter mostrado a um estranho textos que eram dirigidos a ela: “(…) o meu orgulho de mãe aconselhava-me aquela indiscrição… Eu sabia de há muito que qualidade de homem é o Miranda: trabalho para ele há dez anos, bem vês… nunca me pagou mal, nunca fez reclamações nem queixas, foi sempre cavalheiro, como se adivinhasse em mim os princípios que tive”.[viii]
O orgulho que ela sentia da filha aconselhava a indiscrição, mas, nas frases seguintes, o orgulho é logo reenquadrado pelo interesse de juntar a filha com um cliente que, se era considerado um “cavalheiro”, era também bom pagador e nunca fora reclamão. A própria mãe indica a inadequação da idade: “é talvez velho para ti, mas havia de ser um excelente marido, sério, honesto, e delicado…”[ix]. Na sua racionalização da situação, a narradora nos informa que ele se apaixonou pelas cartas que escrevera sob o influxo do amor de Luís (seu verdadeiro envolvimento romântico) e que a leitura delas “lhe despertaram a ideia de que a Marta valeria alguma coisa em um lar doméstico…”.[x]
A mãe continua a pesar os prós e os contras do casamento, vendo, de um lado, a idade inadequada de um homem de quase cinquenta anos para sua filha no início dos vinte, mas pondera que, além das qualidades já indicadas, ele haveria de ser “delicado”. O que o adjetivo aponta é a possibilidade da violência num casamento em que a inadequação fosse maior do que a que ela conseguia averiguar. A bondade da mãe, como se vê, é mais matizada: ela opera como uma espécie de casamenteira da filha, procurando e aliciando o noivo que acha adequado pelas circunstâncias.
Existem indícios de uma zona cinzenta em seu comportamento; ela age à revelia da fidelidade da filha quando mostra suas cartas íntimas, e que pondera de forma mais ou menos aberta a possibilidade de mitigar violências às quais a moça estaria submetida. Isso para não dizer nada sobre o fato de que o solicitador Miranda, muito provavelmente, a conquista por tratá-la com alguma distinção, adivinhando os princípios não miseráveis daquela mulher miserável.
A frase coloca ainda outra possibilidade: teria o solicitador Miranda aliciado a confiança da mãe para eventualmente conquistar a filha vinte e cinco anos mais nova que ele para um casamento? O texto não nos autoriza a dizer que sim, e talvez não nos deixe nem fazer a pergunta com um nível tão forte de crueza, mas é exatamente nessa impossibilidade que reside o travamento, a “alencarização” do livro: os interesses reais, as movimentações efetivas dos sujeitos não estão figuradas, construídas por um confronto entre a sua forma ideológica (no caso, a dignidade e a bondade religiosamente concebidas) e a dinâmica concreta da sociedade.
A própria referência a José de Alencar aqui é injusta com o cearense: sua narrativa costuma ser muito mais direta e ambivalente em relação ao desejo dos personagens do que se dá numa novela de Júlia Lopes de Almeida.[xi] Se há “alencarização”, ela é rebaixada em tensão psicológica e social.
3.
Como deve estar evidente, a leitura que estou fazendo não é “culturalista”, ou seja, não está interessada em entender como se constroem imagens estereotipadas de grupos subalternos para depois proceder à desconstrução desse conjunto de imagens redutoras, oriundas de uma sociedade autoritária, colonialista etc. O que me interessa é a maneira por meio da qual a autora tenta dar forma artística a um conteúdo social e, mais especificamente, o significado dos erros cometidos no processo.
O conteúdo, como tentei mostrar, não é óbvio, mas diz respeito a uma determinada configuração psicológica, própria de uma sociedade escravocrata. Retenhamos ainda uma vez o argumento: Marta é uma mistura de certo heroísmo necessário para vencer na vida em circunstâncias tão adversas e certo caráter quebradiço que vem dos golpes quase sempre intransponíveis que recebe do destino. O movimento do romance gira em torno desses dois termos, não numa espécie de alteração, mas de entrecruzamento autoimplicado.
A obstinação para vencer na vida é contrabalanceada pelas circunstâncias e as circunstâncias são alteradas pela obstinação de vencer na vida, num circuito que, por óbvio, termina sem alterações sociais mais significativas, mas com uma mudança da posição relativa da narradora dentro do universo por ela criado. Esse conteúdo é novo em relação ao conjunto do romance romântico brasileiro e, salvo engano meu, do próprio romance machadiano.
O que parece haver é um conteúdo em busca de uma forma. Digamos assim. A feição social da personagem está bem caracterizada, assim como seus traços psicológicos mais marcantes; o que falta é uma forma capaz de dar vazão adequada a esse conteúdo, ou seja, de não reduzi-lo à ideologia. Vamos tentar caracterizar a tentativa da autora para dela tirar consequências.
O livro de Júlia Lopes de Almeida é uma novela. A novela é um gênero curto que coloca no centro da representação um único conflito, certado num único núcleo de personagens, sem a necessidade de caracterização social ampla. Em tudo o oposto do romance. György Lukács nos diz que a forma da novela costuma aparecer nos casos do surgimento de uma sociabilidade nova (início do desenvolvimento do mundo burguês: Boccaccio) ou nos casos de esgotamento de determinadas formas sociais (caso da decadência do mundo capitalista a seu tempo: Ernest Hemingway e Joseph Conrad).[xii]
É uma forma de extremos para expressar aquilo que ainda não é, mas pode vir a ser ou, então, aquilo que não pode ser mais. Exatamente por ser uma forma de extremos, a novela seria sempre caracterizada pela redução dos elementos narrativos ao essencial. O caso da caracterização expansiva do universo social é exemplar: ela não pode acontecer, no primeiro caso, porque esse mundo, que ainda pode vir a ser, não existe e, no segundo caso, porque o mundo que de fato existe não possui significação humana.
O texto de Júlia Lopes de Almeida almeja ao caráter novelístico, mas ele é imperfeito em quase todos os seus termos. O conflito é centralizado na história de Marta e sua mãe, mas há certo contraponto entre o destino da moça e o de sua companheira de cortiço, Carolina; o universo do favor aparece como caracterização do mundo social em que o conflito se desenvolve; o conflito da ascensão social aparece desmembrado e espelhado, pelo menos, na questão amorosa.
O problema é que, para ser caracterizado como um romance, tudo o que no caso da novela representa desenvolvimento de mais passará a significar desenvolvimento de menos: o mundo social não está completamente desdobrado, o conflito da personagem não está matizado em outros destinos possíveis e típicos etc. Trata-se, portanto, de uma novela imperfeita.
A imperfeição da novela, que caracteriza o aspecto informe assumido pelo conteúdo, deve ser pensada por sua significação positiva: nem há uma sociedade que termina nem outra que começa, embora a necessidade seja de ambos os processos – que termine a sociedade escravocrata do favor e que comece uma sociedade do trabalho. Nenhuma das duas coisas se está processando: a sociedade do trabalho está se instituindo sem suplantar o mundo do favor, o que, é claro, altera os dois termos da relação. É exatamente para isso que aponta a forma da novela imperfeita, que passa a ser, além de um defeito da forma, um mecanismo de compreensão da própria sociabilidade enformada.
Caracterizando mais a imperfeição, poderíamos dizer que, correspondendo ao aspecto de quase-romance (o outro lado da quase-novela), está exatamente a ideologia liberal que parece conduzir a narrativa. A perfeição da novela seria, nesse sentido, o desvelamento de um mundo que não pode ser mais, o que demandaria uma visão muito mais mordaz do universo do favor do que a cristalizada na obra.
Isso porque, dadas as condições históricas, a forma social nova não estava, de fato, no horizonte, o que deixaria à novela a possibilidade de revelar a desumanidade do passado. Isso implicaria, por óbvio, em retirar da narradora toda visão edulcorada da própria vida, o que transformaria o texto em algo que não o efetivamente escrito. Esse outro texto, de fato, nunca foi escrito nos termos em que a autora colocou o problema, restando como solução artística máxima a ironia machadiana que, ciente da impossibilidade, dirige seu olhar sarcástico para o que de fato está acontecendo, ou seja, para o polo das elites sociais que eram verdadeiramente ativas no sentido da manutenção da ordem social.
À novela imperfeita corresponde, portanto, a forma perfeita do deslocamento machadiano do romance de seu tempo para os problemas da periferia. Mas isso é apenas uma meia verdade, porque o conteúdo específico, a psicologia do pobre configurada pela autora, salvo engano meu, não tem par no romance machadiano, ou seja, constituiriam figura nova para além de seu universo ficcional.
As ascensões sociais em Machado de Assis são ou fruto do casamento (Capitu) ou da sorte (Nóbrega) ou da manipulação (Palha), mas nunca do trabalho ou do excesso de trabalho. Em Artur Azevedo, temos a brutalização animalizante pura e simples com graus diferentes de significação (João Romão). O caso figurado, salvo (provável) engano meu, é único: não a ascensão social no sentido do enriquecimento e da proeminência social (João Romão), mas simples estabilização mediana da vida realizada pelo trabalho extenuante.
Ao invés do delírio de grandeza, que por vezes aparece nas visões de injustiça da mãe contra um passado de proeminência, a simples estabilização da vida. Muito provavelmente há algo de delirante no entrecho (seu caráter de simples e pura ideologia), mas não me parece que ele não tenha também seu momento de verdade, nem que seja na mera ambição projetiva: que um destino dessa ordem fosse possível. A imperfeição da forma coloca claramente o fato de que essa possibilidade está interditada, ou, pelo menos, que nada na direção de sua realização se está fazendo – a não ser, talvez, a escrita do romance.
*Filipe de Freitas Gonçalves é doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Referência

Júlia Lopes de Almeida. Memórias de Marta. São Paulo, Penguin/Companhia das Letras, 2024, 136 págs. [https://amzn.to/3D27qiG]
Bibliografia
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos (1750-1870). Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2013.
CARDOSO, Fernando Henrique. “O regime não é dos excluídos”. Folha de São Paulo, 13 de outubro de 1996. Disponível em: Folha de S.Paulo – “O regime náo é dos excluídos” – 13/10/1996.
LUKÁCS, George. Solzhenitsyn. Cambridge: The MIT Press, 1971.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor, as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo, Editora 34, 2012.
Notas
[i] Júlia Lopes de Almeida, Memórias de Marta, p. 106.
[ii] Roberto Schwarz, Ao vencedor, as batatas, cap. 2.
[iii] Júlia Lopes de Almeida, op. cit., p. 104.
[iv] Ibidem, p. 98.
[v] Fernando Henrique Cardoso, “O regime não é dos excluídos”. Folha de São Paulo, 13 de outubro de 1996. Disponível em: Folha de S.Paulo – “O regime náo é dos excluídos” – 13/10/1996.
[vi] Júlia Lopes de Almeida, op. cit., p. 125.
[vii] Ibidem, p. 106.
[viii] Idem, ibidem.
[ix] Ibidem, p. 107.
[x] Idem, ibidem.
[xi] Ver Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira, p. 540-548.
[xii] Ver George Lukács, Solzhenitsyn, p. 7-10.
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