Donald Trump – o Estado e a revolução

Imagem: Adrien Olichon
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Por BRANKO MILANOVIC*

O passeio selvagem de quatro semanas, que ainda não parece ter perdido o fôlego, confirma a ideia de que o novo Donald Trump governará de forma muito diferente do antigo

Dizer que Donald Trump, em sua nova encarnação, é diferente do Trump nº 1 é dizer o óbvio. O mundo e os Estados Unidos têm sido sujeitos a um dilúvio de decretos e decisões que têm mudado as coisas em âmbito internacional e interno. Foi um passeio selvagem de quatro semanas que ainda não parece ter perdido o fôlego e que confirmou a ideia de que o novo Donald Trump governará de forma muito diferente do antigo.

Há duas razões para esta diferença.

Serei muito breve sobre a primeira razão, que é menos importante e tem a ver com a personalidade de Donald Trump. Quando ele chegou ao poder em 2017, claramente não esperava sequer ganhar a nomeação republicana, muito menos ganhar a presidência. Por isso, não estava preparado e não sabia o que fazer. Sua ideologia era uma mistura de coisas aprendidas durante suas carreiras no setor imobiliário e no concurso de Miss Universo, e, nunca tendo trabalhado num governo em sentido amplo ou sido eleito, não fazia a mínima ideia de como implementar tecnicamente as coisas vagas em que acreditava.

A ideologia de Donald Trump pode não ter mudado desde então, mas como indivíduo ele amadureceu em oito anos. De fato, ninguém que tenha sido sujeito a oito anos de investigações contínuas, abusos por parte da maioria dos meios de comunicação, processos judiciais intermináveis, sendo forçado a sentar-se em tribunais durante dias e com seus delitos (reais e imaginários) expostos, sendo acusado duas vezes e estando perto de ser assassinado pelo menos uma vez, poderia sair dessa experiência uma pessoa inalterada.

Todas as tentativas de colocá-lo em seu lugar ou de livrar-se dele politicamente falharam. Agora ele deve pensar, como muitos em sua posição, que é um homem do destino. Como tal, ele deve perceber que precisa deixar algum legado duradouro.

A mudança mais importante e tempestiva em relação a Trump nº 1 é que ele agora tem Elon Musk e seu bando alegre de destruidores de convenções que procedem ao desmantelamento do aparato de Estado. O que eles estão fazendo sob o título de Departamento de Eficiência Governamental parece novo para as pessoas que não tiveram a experiência ou mesmo o conhecimento de qualquer mudança revolucionária.

A última mudança revolucionária deste tipo nos Estados Unidos foi efetuada por Franklin Delano Roosevelt nos anos 1930; que incluiu o esmagamento do velho Estado, a criação de um novo e a atribuição a ele de inúmeras funções novas, a maioria das quais perdurou por décadas. O marxismo diz que, quando se tem um movimento revolucionário, esse movimento, para sobreviver, tem que destruir o velho aparato de Estado e criar um novo.

Marx escreveu sobre isso a propósito da Comuna de Paris: “A próxima tentativa de revolução francesa [a Comuna] já não será, como antes, transferir a máquina burocrático-militar de uma mão para outra, mas esmagá-la [ênfase de Marx]” (Carta a Kugelman, 12 de abril de 1871). Vladímir Lênin implementou-a mais tarde, quando chegou ao poder. Sem o controle do aparato de Estado, qualquer revolução é incompleta e corre o risco de ser derrubada.

A revolução atual tem certas características (por assim dizer) americanas. O Estado americano tornou-se uma enorme máquina que, em grande parte, não está relacionada com quem está no poder. Isso foi percebido pelos ideólogos da revolução trumpista: o aparato do Estado continuou funcionando e produzindo os mesmos resultados, independentemente de quem estava no poder.

Embora isso aconteça em muitos países, foi exacerbado nos EUA pela especificidade americana, onde grande parte da tomada de decisões foi “terceirizada” ou retirada dos poderes executivo e legislativo. O Departamento do Tesouro é dirigido por Wall Street (Paulson, Rubin, Mnuchin, Brady, Summers e tutti quanti), tanto sob o comando de democratas quanto de republicanos, a Reserva Federal é juridicamente independente, e os Estados Unidos ficaram conhecidos no século XIX, e voltaram a ser, um “sistema de tribunais e partidos” em que o poder judiciário toma de fato muitas decisões políticas que, nos sistemas parlamentares, são tomadas pelos políticos.

Quando se juntam estes elementos, rapidamente se percebe que o escopo do poder executivo é bastante limitado, não só por aquilo que é convencionalmente considerado como os limites impostos pelo Congresso e pelo poder judiciário independente, mas também pelo fato de que grandes segmentos da tomada de decisões (política monetária e fiscal ou política regulatória) são feitos pelos “apparatchiks”, que são independentes do partido no poder e prestam pouca atenção a este.

Os ideólogos da revolução trumpista (e aqui tenho em mente especialmente N. S. Lyons, que produziu vários textos ideologicamente muito claros, em particular The China Convergence e American Strong Gods) notaram outro fenômeno que limita o escopo de sua revolução. O aparato de Estado tem sido, ao longo dos anos, povoado por liberais extremos que, obviamente, não compartilham a visão de mundo dos revolucionários trumpistas. O aparato de Estado tornou-se assim adicional e ideologicamente isolado do executivo trumpista.

Os revolucionários acreditam que o aparato de Estado tem sido preenchido por liberais porque seu domínio na esfera intelectual, através do controle das principais universidades americanas, do mundo dos think tanks e das instituições quase governamentais. O ponto de vista liberal passou a dominar todos aqueles que integram o aparato de Estado ou participam em atividades paraestatais. (Obviamente, as pessoas que povoam o aparato selecionarão pessoas com opiniões semelhantes para ajudá-las ou substitui-las).

Os ideólogos atribuem a ascensão de uma liberal classe profissional de gestão (PMC) a seu domínio na produção de conhecimento. Eu não acho esta explicação particularmente persuasiva porque considera que o local do conflito é a ideologia, afastada da “infraestrutura” ou do local de reprodução social onde as ideologias mais materialistas tendem a ver expressas as principais contradições. De qualquer modo, o domínio da produção do conhecimento intelectual traduz-se, através dos funcionários, no controle do aparato de Estado.

Se este diagnóstico se mantiver, então é evidente que os revolucionários têm que assumir o controle e/ou destruir o aparato de Estado existente. Isso significa que o expurgo tem que ir muito além das mudanças habituais quando os novos presidentes chegam ao poder, as quais estão limitadas ao topo e afetam apenas as nomeações políticas. Se o aparato de Estado for tomado de assalto, então o expurgo deve ser muito mais completo e as nomeações políticas devem ser efetuadas de modo muito mais profundo, mesmo em posições técnicas comuns.

Dado que muitos instrumentos governamentais estão, de qualquer modo, isentos do controle do executivo, que a “hegemonia” ideológica da direita levaria décadas (se é que alguma vez o faria) para tornar-se real, e diante de um aparato governamental inimigo, os revolucionários trumpistas concluem que, mesmo que ganhassem uma eleição atrás da outra, pouco conseguiriam fazer. A “espuma” no topo mudaria, mas nada além disso.

Penso que este fato fornece uma explicação lógica para o zelo dos revolucionários em tornar a mudança mais duradoura. Por vezes, afirma-se, de forma desdenhosa, que os revolucionários querem destruir o “Estado profundo” e depois argumenta-se que esse Estado profundo não existe na América. Trata-se de uma objeção ingênua que toma o significado de “Estado profundo” da forma como foi originalmente definido no Paquistão e na Turquia (establishment militar não controlado pelo governo). Este de fato não existe, ou certamente não existe na sua totalidade, nos EUA.

Por outro lado, a tentativa de tomar o controle do Estado é atribuída ao partidarismo. Trata-se de uma crítica sem sentido, pois o partidarismo é, por definição, compartilhado por todas as convicções políticas e todas as ideologias políticas. Só aqueles que vivem num mundo etéreo de fantasias podem pretender que as decisões econômicas nacionais e internacionais são uma pura questão de execução técnica. Este é o argumento utilizado pelas elites para afirmar que possuem um conhecimento técnico especial que os torna apartidários e que, por conseguinte, devem ser deixadas em paz para fazerem o que quer que estejam fazendo.

Ambas as críticas à ação dos revolucionários não compreendem o essencial. O objetivo dos revolucionários é assumir o controle do aparato de Estado, o que, nas condições específicas dos EUA, significa o expurgo dos funcionários (como aconteceu durante a Revolução Cultural chinesa ou nas transições pós-comunistas na Europa do Leste). Esse objetivo não tem nada a ver com a existência ou não de um “Estado profundo” do tipo turco ou de partidarismo político. Tem a ver com o poder.

A batalha a que assistimos entre Elon Musk e seus apoiadores e diferentes partes do Estado norte-americano são as batalhas habituais a que assistimos quando um movimento revolucionário quer deixar uma marca mais profunda no futuro.

*Branko Milanovic é professor de economia na Universidade da cidade de Nova York. Autor, entre outros livros, de Capitalismo sem rivais (Todavia).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Publicado originalmente nas redes sociais do autor.


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