Por MARCOS DANTAS*
Considerações a partir de “Ensaios de Tectologia” , de Alexander Bogdánov.
Com cerca de 100 anos de atraso, foram afinal publicados no Brasil, os Ensaios de Tectologia, de Alexander Bogdánov. Ainda é apenas o primeiro volume, traduzido por Jair Diniz Miguel, com apresentação de Rodrigo Nunes.
Bogdánov, nome de guerra de Alexander Alexandrovich Malinóvski (1873-1928), é pouco conhecido entre nós, quase sempre citado a partir de desairosas e injustas palavras de Vladimir Lênin, nuns poucos parágrafos de Materialismo e empiriocriticismo. No entanto foi, junto com Lênin, co-fundador da fração bolchevique do Partido Social-democrata russo. Participou ativamente da revolução de 1905; não esteve à frente mas não esteve ausente da revolução de 1917.
Foi um dos fundadores da Academia de Ciências da URSS; criou, junto com Anatóli Lunatchárski (1875-1933), o movimento “Cultura proletária” (Proletkultur) que visava educar as massas trabalhadoras nos novos ideais da revolução; e fundou o primeiro instituto de hematologia do mundo, à frente do qual, no correr de experiências com seu próprio sangue, acabaria falecendo. Em necrológio publicado no Pravda por Nikolai Bukharin (1888-1938), Bogdánov foi definido como um “dos teóricos mais eminentes do marxismo” e o homem “mais culto de nossa época”[i].
As polêmicas com Lênin que se acentuariam na segunda década do século XX, tinham, como pano de fundo, suas disputas pelo comando do Partido. Entre eles estabeleceram-se divergências políticas sobre a tática e a estratégia revolucionária, também quanto à filosofia e teoria marxistas. Entre os dois, porém, havia uma muito importante, não desprezível, diferença: Bogdánov era médico, formado na Universidade de Kharkov, em 1888. Detinha por isso um conhecimento científico e competência para leitura de livros e artigos sobre Física, Biologia, Química, outras ciências, que nem Lênin, nem outros líderes políticos de sua época possuíam.
Foi com base nessa competência que propôs atualizar o pensamento marxista conforme os avanços das ciências nas últimas décadas do século XIX e primeiras do século XX. Esse seu propósito dá origem ao projeto de uma nova ciência que integrasse o conhecimento então disperso por aqueles diferentes ramos de saber. A essa ciência deu o nome de Tectologia – do grego “construir”.
Infelizmente as ideias de Bogdánov foram reprimidas na URSS até começarem a ser revisitadas a partir dos anos 1970. A publicação, agora, dos Ensaios no Brasil, permitir-nos-á conhecê-lo diretamente sem os filtros das críticas enviesadas. Este artigo tem por objetivo principal apresentar alguns tópicos dos Ensaios visando demonstrar sua importância teórica e filosófica, em diálogo com autores mais contemporâneos. Veremos que Bogdánov foi um autor marxista à frente do seu tempo.
Contexto histórico
Bogdánov nasceu em Tula, onde desde cedo começou a militar junto ao operariado local. A influência da cultura popular marcará não somente sua visão política como até o estilo de suas obras mais teóricas. Desde depois de formado, começa a publicar seus primeiros livros articulando seus conhecimentos científicos com seus esforços iniciais para dar a eles tratamento dialético. Continua suas atividades políticas até ser preso pela polícia czarista e, finalmente, exilado em 1904. Junta-se na Suíça a várias outras lideranças exiladas, entre elas Vladimir Lênin (1870-1924) e Georgi Plekhanov (1856-1918). Envolve-se nas polêmicas que dividiam o Partido Social-democrata russo, aliando-se a Lênin junto com quem fundará o Partido bolchevique.
Em 1905, Bogdánov participa ativamente dos levantes na Rússia. Depois, estando todos novamente no exílio, as diferenças políticas e teóricas começam a aflorar. Bogdánov, junto com Lunatchárski, defende a necessidade de se avançar um programa de educação junto às massas trabalhadoras, fundando, para isso, em 1909, em Capri, Itália, uma “escola social-democrata de altos estudos”. Lênin, enquanto isso, priorizava a organização da “vanguarda do proletariado”. É nessa época, também, que emergem os debates teóricos e filosóficos que marcarão a relação entre Bogdánov e Lênin na história do marxismo: em 1904-1906, Bogdánov publicara os três volumes de seu Empiriomonismo.
O menchevique Plekhanov, a quem devemos a expressão “materialismo dialético”, critica a obra, em “carta aberta”, em 1907. Dois anos depois, Lênin publica o seu Materialismo e empiriocriticismo, uma catilinária dirigida principalmente contra o pensamento de Ernst Mach (1838-1916) e de Richard Avenarius (1843-1896) mas que não deixa de fora, embora em poucos parágrafos e superficialmente, a proposta “empiriomonista” de Bogdánov.
Em 1908, Bogdánov publica A Estrela Vermelha, romance no estilo de ficção cientifica, no qual descreve a sua visão de uma futura sociedade comunista, por óbvio com base em sua concepção filosófica, traduzido e publicado no Brasil, em 2020, pela Editora Boitempo[ii]. Em 1913, começa a publicar a sua obra mais importante: Tectologia: a organização universal a ciência – Parte I. Em 1917, publica a Parte II. Essa obra ganharia ainda uma Parte III e algumas reedições, com revisões, entre 1925 e 1929, já na União Soviética. Uma versão por ele mesmo resumida foi publicada, também na União Soviética, em duas partes, nos anos 1919-1921: os Ensaios. É essa versão que agora a Editora Machado lançou no Brasil. Por enquanto só o primeiro volume.
Não é possível entender a real natureza das grandes polêmicas nas quais se envolveram as maiores lideranças políticas e teóricas do movimento social-democrata europeu no início do século XX, sem buscar conhecer e compreender, inicialmente, as profundas transformações pelas quais passava o capitalismo europeu e, daí, mundial, àquela época. Vivia-se – mas não se percebia – a segunda revolução científico-técnica do capitalismo industrial moderno[iii]. Lideranças teóricas como Lênin, Rosa Luxemburgo, Eduard Bernstein, Bogdánov, captaram aspectos dessas transformações mas nenhum, exceto Bogdánov, trouxe para o debate também as revelações científicas “disruptivas” (para usar um termo atual) da época.
De um ponto de vista industrial-tecnológico, as soluções então encontradas por Thomas A. Edison (1837-1931), Ernst von Siemens (1816-1892), George Westinghouse (1846-1914), Lorde Kelvin (1824 – 1907), entre outros, para o emprego disseminado da força elétrica na indústria, nos transportes, nos lares, produziria uma transformação nos processos produtivos, logo em aspectos importantes da lógica capitalista de acumulação, e ainda na vida cotidiana, comparável às transformações que vivenciamos hoje em dia com a digitalização da sociedade. Junto com a eletricidade, também apareceu o motor a explosão e, daí, novas fronteiras de exploração das fontes de combustível fósseis e consequentes mudanças nos tempos e espaços de trabalho e de vida cotidiana.
Em 1872, Eugen Baumann (1846-1896) inventa o PVC. Em 1894, Charles Frederick Cross (1855.-1935) inventa o nylon. Estavam inaugurando o que viria a ser uma das mais poderosas indústrias do século XX: a química. E com ela, a introdução na vida cotidiana de um novo material, de mil e uma utilidades, inteiramente artificial: o plástico. Por fim, mas não por último, não podemos ignorar a invenção e disseminação na sociedade, do telefone, do rádio, do cinema, dessas tecnologias e indústrias do imaginário, com todas as suas consequências que só começariam a ser percebidas, mesmo assim muito intelectualmente, a partir das teorizações da Escola de Frankfurt.
Será muito difícil encontrarmos na literatura política da época, referências aos impactos sociais e econômicos das rupturas provocadas por essas então revolucionárias tecnologias e pelas empresas e suas indústrias que delas nasciam e com elas se desenvolviam – tão novas e inovadoras àquela época quanto hoje o são Amazon, Microsoft, Apple, Google… Um desses impactos seria a expansão, na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, de uma nova camada assalariada de trabalhadores, porém separada do chão de fábrica: indivíduos com formação universitária (engenharia, economia, sociologia etc.), recebendo melhores salários, gozando de melhores condições de vida, exercendo poder de gestão e mando nas empresas, podendo até mesmo sonhar em ascender às classes superiores, que não se viam e nem foram vistos como parte também do proletariado: viriam a ser conhecidos como “colarinhos brancos”, em oposição aos “colarinhos azuis” dos macacões dos operários fabris[iv].
Apenas Bernstein percebeu o fenômeno e entendeu sua importância política – o que não significa dizer que tenha corretamente compreendido em termos teóricos a sua natureza e suas implicações. Não era necessário – e não é nunca necessário – romper com a dialética para entender novas realidades. Apenas é necessário ser… dialético.
Bogdánov foi outro que, por sua formação científica, soube perceber aspectos então pouco evidentes das realidades então emergentes – no seu caso, na ciência. Nessa mesma época e contexto, os físicos haviam feito importantes revelações a respeito da estrutura da matéria que punham em questão “verdades” estabelecidas desde o século XVIII, dentre essas a mecânica newtoniana. A descoberta, por exemplo, do raio-X por Konrad von Röntgen (1845-1923), em 1895, uma forma de energia aparentemente invisível, silente, inodora, isto é, imperceptível aos sentidos, que, ainda por cima, podia atravessar corpos materiais, deixara os físicos no mínimo atônitos[v].
Em seguida, Antoine Henri Becquerel (1852-1909), Henri Poincaré (1854-1912), Marie Curie (1867-1934), Ernest Rutherford (1871-1937) – e sequer ainda chegamos a Einstein – vão acrescentar mais elementos paradoxais ao conhecimento até então estabelecido, demonstrando que o átomo pode ser dividido em partículas ainda mais imperceptíveis, como pode ter, por isso mesmo, comportamentos um tanto inexplicáveis nos termos dos paradigmas físicos ainda dominantes à época. Max Planck (1858-1947) resolveu essas duvidas, em 1899, sugerindo que a energia é constituída por corpos – ou fótons – descontínuos (ou “discretos”) sendo produto das atividades desses corpos num intervalo de tempo por uma constante que recebeu o nome de seu descobridor.
A teoria de Planck abriu caminho para a teoria da relatividade de Einstein e para a física quântica de Max Born (1882-1970) e Werner Heisenberg (1901-1976). Para ter-se idéia do que significava a teoria de Planck, basta saber-se que até então a energia era considerada alguma forma contínua de onda[vi].
Tamanha revolução na Física, acompanhada também por outras tantas na química teórica e na biologia, haveria de provocar questionamentos epistemológicos, até ontológicos. Os físicos são cartesianos, ou mesmo positivistas, por formação e treinamento. A prática e vivência atomizada em seus laboratórios faz parecer que o cientista é um indivíduo distinto dos objetos que manipulam, ignorando que ele mesmo é conduzido por suas crenças e finalidades, socialmente determinadas, e tanto modifica como é modificado nessas suas experiências, desde as novas conexões neurológicas que se formam em seu cérebro, até os conhecimentos que, registrado nessas novas conexões, elabora sobre os objetos mesmos, e a realidade maior nos quais estão inseridos.
O físico Ernst Mach (1838-1916) e o filosófo Richard Avenarius (1843 -1896) buscaram repensar o positivismo diante daquelas novidades, inaugurando a corrente de pensamento que ficou conhecida como empiriocriticismo. Como sabemos, a penetração das suas ideias nas lideranças e militância da social-democracia foi combatida por Lênin, em seu famoso ensaio filosófico. Também foi combatida por Bogdánov em Empiriomonismo. Mas, ao contrário de Lênin, Bogdánov entendeu que também a dialética materialista precisaria se atualizar ante os novos paradigmas da Física, da Química, da Biologia.
A palavra chave aí é “monismo”. A Filosofia ocidental debate-se entre dois grandes troncos epistemológicos desde os tempos de Platão e Aristóteles: dualismo vs. monismo. Santo Agostinho vs. S. Thomaz; Descartes e Kant vs. Espinoza e Hegel. De um lado, a separação entre “espírito” e “corpo”, “sujeito” e “objeto”. Do outro, a unidade (de contrários) “espírito/corpo”, “sujeito/objeto” – o “sujeito-objeto idêntico”, nos termos de Lukács[vii].
Na prática, o reconhecimento que ao agir modificando a realidade, o agente também é modificado por essa realidade. Ele está inserido nela, ela é componente dele. Este foi o recado básico, em síntese, de Bogdánov no seu Empiriomonismo, aceitando os pontos de partida de Mach e Avenarius pois se apoiavam nos últimos avanços da Física, mas rumando para bem distinto ponto de chegada pois, no caminho, apoiava-se na dialética materialista marxiana. Cabe observar que, nos debates dessa mesma época, também Lukács e Korsch vão reivindicar o monismo como fundamento essencial da dialética materialista. Para estes pensadores “o materialismo histórico é monista”, afirma Sochor[viii]. Há controvérsias se assim o seria para Engels e, sobretudo, Lênin.
A Tectologia
A Tectologia e os Ensaios dela extraídos são produtos de uma etapa mais madura da vida e pensamento de Bogdánov. A maior parte da obra agora publicada no Brasil é “corte-e-cola”, digamos assim, da Tectologia. Algumas poucas partes não se encontram nesta, outras poucas estão até melhor desenvolvidas ou são exclusivas dos Ensaios.
Da Tectologia foi feita uma tradução para o alemão, publicada entre 1926 e 1928 e seu primeiro volume foi traduzido do russo para o inglês, numa edição coordenada pelo professor Peter Dudley, do Centro de Estudos Sistêmicos da Universidade de Hull, em 1996[ix]. Dos Ensaios há também uma tradução do russo para o inglês, de George Gorelik, publicada nos Estados Unidos em 1984[x]. Pela ficha catalográfica da edição brasileira, onde o título original aparece em alfabeto cirílico, somos levado a crer que a edição da Machado foi também traduzida direto do russo.
Bogdánov abre os Tectologia afirmando: “Todas as atividades humanas são essencialmente tanto organizadoras quanto desorganizadoras. Significa que a atividade humana, seja técnica, seja cognitiva, ou estética, pode ser entendida como material da experiência organizacional, e investigada a partir de um ponto de vista organizacional.” (p. 1)[xi] [xii]
Em 1982, Jean-Pierre Dupuy, um dos mais importantes intérpretes do pensamento contemporâneo relativo às teorias de sistemas, cibernéticas, cognitivas, informacionais e afins, publicou um livro intitulado Ordres e désordres: enquête sur un nouveau paradigme[xiii]. Este “novo paradigma” já estava anunciado e pioneiramente investigado há mais de 60 anos. Só que…
O primeiro parágrafo dos Ensaios é diferente: “Em toda a luta da humanidade contra os elementos, a tarefa é dominar a natureza. O domínio é a relação do organizador com o organizado. A humanidade pouco a pouco, adquire e conquista esse domínio; isto significa que, pouco a pouco, organiza o mundo – organiza para si, de acordo com os seus próprios interesses. Este é o significado e o conteúdo de sua obra milenar.” (p. 45).
Nos dois enunciados, o conceito central é a organização. A essência do ser humano é ser organizador. Mas diante dele está uma natureza também organizada. No oitavo parágrafo de a Tectologia aparecerá um enunciado similar àquele primeiro dos Ensaios: “Geralmente, o processo abrangente da luta humana com a natureza, de conquista e exploração das forças naturais espontâneas, é nada mais do que a organização do mundo para a humanidade, para a sua sobrevivência e desenvolvimento. Este é o significado, o sentido objetivo do trabalho humano (p. 2).
Nesses enunciados observa-se total similaridade do pensamento de Bogdánov com o do filósofo dialético materialista brasileiro, Álvaro Vieira Pinto (1909-1987). Em O Conceito de Tecnologia, escrito nos primeiros anos da década 1970 mas somente postumamente publicado em 2005, Vieira Pinto parte da mesma idéia: a principal contradição do ser humano, fundante de todas as outras, é com a natureza pois é dela, transformando-a, que retira os seus meios de sobrevivência e evolução histórica[xiv]. Este processo de transformação da natureza para atender suas necessidades é definido por Vieira Pinto como trabalho. Em Bogdánov, trabalho é o ato que organiza.
Em Vieira Pinto é o ato de projetar e executar o projeto. Vieira Pinto muito dificilmente terá tido sequer conhecimento da obra de Bogdánov, talvez apenas soubesse da sua existência por alguma leitura de Materialismo e empiriocriticismo (livro que, se leu, tudo indica, não levou muito a sério…). Mas não é nada casual que dois autores tão separados no tempo, no espaço e nas condições sócio-culturais nas quais estavam objetiva e subjetivamente inseridos, tenham partido da mesma abordagem básica para construir o restante de suas teorias: estavam ambos embasados na dialética materialista de Karl Marx.
Como os Ensaios iniciam com uma afirmação tão peremptória sobre a relação ser humano/natureza, e também considerando o tanto de questionável, ao menos de um ponto de vista marxiano, se tem dito, em tempos recentes, sobre essa mesma relação, inclusive na “Introdução” de Rodrigo Nunes à edição brasileira, é preciso dar uma maior atenção a este ponto. Vamos esquecer, por um instante, as realizações da ciência e tecnologia capitalistas nos últimos dois a três séculos. Vamos nos lembrar, pois muita gente esquece ou não aprendeu, que o milho ou o trigo que comemos não são aqueles originais da natureza mas espécies híbridas que nossos antepassados conseguiram produzir a cerca de 10 mil anos atrás. Isto é modificar a natureza.
Vamos nos lembrar, pois muita gente esquece ou não aprendeu, que, do século V a.C. ao VII d.C, sucessivos governantes chineses construíram um canal, hoje com 1,7 mil quilômetros de extensão ligando as bacias dos rios Yang Tsé e Huang Ho. Isto é modificar a natureza. Vamos nos lembrar dos terraços que as populações incaicas pré-colombianas construíam nos contrafortes dos Andes, assim criando espaços, antes inexistentes, para a agricultura. Isto é modificar a natureza. Vamos nos lembrar que o ser humano é o único animal capaz de dominar o fogo. Também cabe lembrar que a roda não existe na natureza mas, tendo dominado o fogo e inventado a roda, para só ficarmos nestes radicais exemplos, o ser humano pôde modificar-se a si mesmo com os recursos neurológicos, logo cognitivos, que a natureza lhe deu para modificá-la, modificando-se. Uma clareira que um grupo indígena abra na floresta para nela levantar suas malocas, é modificar a natureza.
Por tudo isso ensinou Marx: “A natureza é o corpo inorgânico do homem, a saber, a natureza enquanto ela mesma não é o corpo humano. O homem vive da natureza significa: a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem de ficar num processo contínuo para não morrer. Que a vida física e mental do homem está interconectada com a natureza não tem outro sentido senão que a natureza está interconectada consigo mesma, pois o homem é uma parte da natureza”.[xv]
Se é destino do ser humano tr/ansformar a natureza, Engels já sabia que não deveríamos “nos deixar dominar pelo entusiasmo em face de nossas vitórias sobre a natureza”[xvi]. São muitos os exemplos, ao longo da história, de transformações cujos resultados, positivos para algum povo no curto prazo, produziu o que hoje seria denominado “desastre ambiental” no longo prazo. No entanto, o conhecimento científico desenvolvido a partir dos séculos XVI e XVII, estava permitindo à humanidade “compreender melhor as leis da natureza”, logo poder antecipar as consequências positivas e negativas de suas intervenções nela.
“E quanto mais isso seja uma realidade, mais os homens sentirão e compreenderão sua unidade com a natureza, e mais inconcebível será essa idéia absurda e antinatural da antítese entre o espírito e a matéria, o homem e a natureza, a alma e o corpo, idéia que começa a difundir-se pela Europa sobre a base da decadência da antiguidade clássica e que adquire o seu máximo desenvolvimento no cristianismo.” [xvii].
Em suma, a natureza, nas suas muitas transformações, acabou constituindo uma espécie animal que para sobreviver precisa evoluir, e para evoluir precisa intervir na, e fazer evoluir também a natureza. Nisto, por princípio, esse animal não pode destruí-la pois isto seria sua própria destruição. Mas também não pode “preservá-la” pois isto seria sua própria negação enquanto o animal “organizador”, ou construtor, que efetivamente o é – por criação da natureza.
Este dilema, Bogdánov propõe em A Estrela Vermelha. A sociedade comunista se implanta em Marte como solução para uma crise ecológica, isto é, como necessária à gestão mais rigorosa e racional de recursos naturais cada vez mais escassos, dilapidados pelo capitalismo também lá antecedente. Mas quando, mesmo numa sociedade sem luxos e consumo ostentatório, esses recursos acabam praticamente esgotados, impõe-se buscar novas fontes fora do planeta: os comunistas marcianos pensaram encontrá-las primeiro na Terra, mas percebendo que teriam muitas dificuldades para negociar algum acordo com esses atrasados terráqueos, optam por montar bases exploratórias em Vênus, apesar de sua inóspita atmosfera.
Novos desafios para serem resolvidos pelo engenho humano, vá lá, marciano, através da ciência e da tecnologia. A diferença dessa solução extra planetária e aquela que, dizem, Elon Musk estaria imaginando para os seus problemas aqui na Terra, é que, na ficção de Bogdánov, os marcianos já tinham se livrado dos seus plutocratas há alguns séculos…
Níveis de organização
Com sua teoria de organização, Bogdánov busca integrar num sistema totalizante, os conhecimentos dispersos e fragmentados em diferentes ramos de saber. Sua crítica vai nessa direção: o desenvolvimento da humanidade e seus projetos futuros estariam demandando uma ciência das ciências. Propô-la foi a tarefa intelectual à qual se impôs e na qual acreditou até o fim da vida. Deixa claro que a Tectologia não é filosofia, mas ciência. Ele não tem nenhuma dúvida que na sociedade real em que vivia, cada grupo social, até mesmo cada indivíduo, especializava-se de tal modo na realização das tarefas que lhe diziam respeito que não apenas perdiam maior visão do todo como, pior, passavam a entender algum todo apenas pelos antolhos de suas próprias especializações. Nisso, de novo, Bogdánov converge com Lukács que igualmente faz uma crítica à fragmentação do sujeito na sociedade burguesa e sentencia: “É o ponto de vista da totalidade e não a predominância das causas econômicas na explicação da história que distingue de forma decisiva o marxismo da ciência burguesa”[xviii].
A natureza em seu conjunto, incluindo o Universo, os seres vivos nela e os seres humanos dentre os seres vivos, é constituída por “elementos” que interagindo entre si, constroem “organizações” que se afetam mutuamente. Esses elementos, integrados nas “organizações”, ou sistemas, como dizemos hoje em dia, estão em permanente atividade, ou movimento, nisto, porém, enfrentando “resistências”. “Atividade” e “resistência” são dois aspectos não só correlatos como, melhor dizendo, são atividades em sentidos contrários. O que seja resistência para um elemento, é atividade para o outro elemento percebido por aquele como resistente. Antes que os latourianos se animem, o que temos aqui é reconhecimento, por Bogdánov, do princípio dialético da ação recíproca, embora não chegue a enunciá-lo explicitamente.
“Nesse sentido não há diferenças fundamentais na natureza, entre o vivo e o inanimado, o consciente e o espontâneo etc. Anteriormente, havia um conceito na ciência sobre resistência que não é uma atividade, sobre a ‘inércia’ que caracteriza a matéria. Atualmente, essa ideia se tornou obsoleta. A matéria, com toda a sua inércia, é apresentada como o complexo de energias mais concentrado, ou seja, exatamente como uma atividade; seu átomo é um sistema de movimentos fechados, sua velocidade é superior a todas as outras na natureza. Consequentemente, os elementos de qualquer organização, qualquer complexo estudado do ponto de vista organizacional, são reduzidos a atividades-resistências.” (p. 103).
Logo em seguida, Bogdánov relativiza o próprio conceito de “elemento”:“O próprio conceito de ‘elementos’, para a ciência organizacional, é inteiramente relativo e condicional: são simplesmente aquelas partes nas quais, de acordo com a tarefa de pesquisa, foi necessário decompor seu objeto; elas podem ser arbitrariamente grandes ou pequenas, podem ser divisíveis ou não se dividir – nenhuma estrutura para análise pode ser colocada aqui. Os elementos dos sistemas estelares devem ser considerados como sóis gigantes e nebulosas; os elementos da sociedade são empresas ou indivíduos; os elementos de um organismo são células; o corpo físico são moléculas ou átomos ou elétrons, dependendo da tarefa […] Mas como é somente no decorrer de uma pesquisa que alguns desses elementos precisam ser mais decompostos, na prática ou apenas mentalmente, só então determinado elemento começa a ser considerado um ‘complexo’, ou seja, como sendo composto por conexões, combinações de quaisquer elementos de ordem seguinte etc.” (p. 103-104).
Bogdánov descreve aqui um sistema como Henri Atlan (1931- ) ou Gregory Bateson (1904-1980) o descreveriam. O sistema é uma totalidade de níveis de organização agindo-se uns em relação a outros. Porém, os limites de algum desses subsistemas relativamente a outros não estão dados por si mesmos, mas pelos propósitos e condições do observador. O observador, ele mesmo, é também um elemento do sistema, nele agindo e por ele sendo agido. É o contrário do que imagina o cientista positivista. Nessa abordagem que entende o sistema como um todo orgânico, para um médico especialista – um cardiologista, por exemplo –, o sistema é a relação dele com o coração e o sistema venoso do paciente. O resto do corpo pode estar mais ou menos, embora nunca inteiramente, posto fora do seu objeto de observação. É um nível “englobante”.
Por outro lado, os hábitos, saudáveis ou não, de seu paciente devem ser também “englobados” no seu objeto de observação, assim como os seus conhecimentos médicos, sua competência e suas orientações são igualmente “elementos” dessa relação. Aqui temos outro exemplo de identidade sujeito-objeto numa relação que dada a diferença original entre as duas partes, ao cabo conformam alguma unidade. Temos também um exemplo claro da antecipação por Bogdánov do que, hoje em dia, denomina-se cibernética de segunda ordem: aquela desenvolvida por Von Foerster (1911-2002), Atlan, Bateson, entre outros: uma cibernética que não isola um sistema de seu “ambiente”, nem, por extensão, dos “ruídos” próprios desse “ambiente”, mas antes considera a totalidade dos elementos postos em alguma determinada relação (natural, social), inclusive a totalidade das interações entre esses elementos (ou “ruídos”) que afeta, positiva ou negativamente, pondo em movimento, a relação mesma.
Termodinâmica do equilíbrio… e longe do equilíbrio
As leis da termodinâmica sempre foram um problema para o marxismo dito “ortodoxo”. Estabelecidas por Nicolas Sadi Carnot (1796-1832), aprimoradas por Rudolf Clausius (1822-1888), James Clerk Maxwell (1831-1879) e Ludwig Boltzman (1804-1906), entre outros, elas estabelecem que, num sistema isolado, isto é, que não troca energia, matéria e informação com o seu exterior, a energia em seu interior nem aumenta, nem decresce, apenas se transforma (Primeira Lei), dando-se essa transformação sempre numa mesma direção, do mais quente para o mais frio; ou do mais ordenado, com forma, para o menos ordenado, ou disforme; ou ainda, do não equilíbrio para o equilíbrio (Segunda Lei). O sistema, neste ponto, é dito em estado final de equilíbrio, ou entropia máxima, porque, neste estado, todos os seus elementos estariam nele igualmente distribuídos no seu espaço interno. Então, para os físicos, dá-se a “morte térmica” do sistema, implicando que a energia nele contida já não pode fornecer trabalho.
Se o Universo for considerado um sistema fechado, inexistindo algum outro universo com o qual pudesse trocar energia e informação, seu futuro seria a “morte térmica”, fim de tudo. Hoje sabemos que o Universo ainda se encontra em expansão, porém, por outro lado, o Sol, daqui a alguns bilhões de anos começará a “morrer” num processo em que sua massa crescerá, “engolindo” todos os planetas, inclusive a Terra, que orbitam à sua volta. Para a crença no progresso permanente da humanidade que dominava as idéias no século XIX e justificava a militância revolucionária empenhada em acelerar esse progresso, uma tal perspectiva podia ser frustrante, desanimadora. Além do mais, esse determinismo linear parecia estar em contradição com a “lei da ação recíproca”, uma das três “leis dialéticas” fixadas por Engels, devendo, por isso, ser liminarmente rejeitado. Tais preconceitos seriam ainda mais reforçados após a publicação, em 1925, na União Soviética, de anotações fragmentárias de Engels reunidas em Dialética da Natureza. Em algumas passagens, Engels se mostra incomodado com possíveis ilações teológicas que derivariam da Segunda Lei mas também observa ser ela, àquela época, ainda muito recente, daí que haveriam questões então não respondidas: “é tão certo que ela será resolvida quanto é certo que na natureza não sucedem milagres e que o calor original da nebulosa não lhe foi transmitido de fora do cosmo por milagre”[xix].
Não poucos autores, críticos do marxismo ou, pelo menos, da sua versão leninista, sobretudo os que, em tempos mais recentes colocaram na agenda a crise ecológica, concordam que Engels “pautou” a rejeição à Segunda Lei, a exemplo de Bensaid[xx], também de Martinez-Alliez, Stanley Jaki, outros e outras, citados por Foster e Burkett[xxi]. Esses autores porém observam que, profundos conhecedores da ciência de seu tempo, seria difícil a Marx e Engels negarem a tendência universal à entropia. Mais provavelmente, se a doutrina “oficial” consagrou essa posição, deve-se a uma má leitura em trechos que não passam de anotações fragmentárias e escritas em datas distintas.
O fato é que ao longo do século XIX e primeiros anos do século XX, nenhum cientista sério contestaria o paradigma dominante da tendência dos sistemas para o “equilíbrio”. Se ocorresse “desequilíbrio”, como os fatos facilmente demonstravam, a própria constituição do sistema ou, no limite, a Segunda Lei da termodinâmica, o faria retornar ao “equilíbrio”. Von Bertalanffy popularizaria a expressão homeostase para definir esse processo. A teoria econômica neoclássica formulada por Williams Jevons (1835-1882) e Léon Walras (1834-1910) adotaria o princípio para explicar o funcionamento dos mercados: o equilíbrio seria próprio da concorrência perfeita; as situação de “não equilíbrio” seriam provocadas por “perturbações” (intervenção do Estado, monopólios etc.) que, de um modo ou outro, poderiam e deveriam ser “corrigidas”.
Na psicanálise ou na medicina, equilíbrio significava a cura “homeostática” do paciente. Para Bogdánov, pois, contido nesse paradigma, a organização buscava o equilíbrio, embora pudesse ser alvo de forças desequilibradoras que a própria organização deveria ter meios de conter e retornar ao equilíbrio. Ele se apóia no físico Henri Louis Le Chatelier (1850-1936) que considera autor da “lei do equilíbrio”, embora, como vimos, o princípio já fora antes anunciado por Carnot, Maxwell e outros.
Ora, se os sistemas se regulam de tal modo a se manterem em equilíbrio, de onde poderia vir a mudança?
Essa questão era também posta nas críticas à teoria de Bogdánov.
Após discutir vários casos físicos ou químicos que confirmariam a “lei do equilíbrio”, Bogdánov afirma que “tudo isso se aplica especificamente a sistemas em equilíbrio, com sistemas desequilibrados a situação é completamente diferente. Neles, as mudanças ocorrem simultaneamente em duas direções opostas, então um dos dois grupos é mais estável e, portanto, o todo é transformado, passo a passo, em sua direção. Que resultados são obtidos com a ação externa em tais complexos?” (p. 214).
Na natureza viva ocorrem processos que contrariam a “lei de Le Chatelier” pois esta só se aplica aos “processos internos de sistemas” capazes de, por sua própria constituição, retomar o equilíbrio após alguma desequilibradora interferência externa. Animais ameaçados reagem, podendo nessa reação manterem-se em equilíbrio diante da ameaça ou tomarem decisões que só favorecem o elemento ameaçador – cresce o desequilíbrio. O corpo humano equilibra-se ante o calor ambiente, suando. Mas a pessoa pode abrir as janelas, abanar-se com um leque, produzindo nesses movimentos ao mesmo tempo mais agitação para o corpo, porém mais refrigeração para si e seu ambiente.
“Disso fica claro que, em relação às atividades motoras neuromusculares, o organismo é um complexo desequilibrado. E devemos lembrar que, em geral, um mesmo sistema pode ser sempre, do lado de algumas das atividades incluídas em sua composição, um sistema de equilíbrio, e do lado de outras, evidente ou dissimuladamente desequilibrado.” (p. 217-218).
Para Bogdánov, “as naturezas que gravitam para o equilíbrio, não podendo desenvolver a sua resistência ao meio até ao seu esgotamento, passam naturalmente à degradação” (p. 219). Em outras palavras, tendem à entropia crescente. Entre elas, no ser humano, encontram-se os indivíduos contemplativos, pacientes, humildes, submissos. Mas nem todo ser humano é assim. Recordando que “todas as definições da Tectologia são relativas” (p. 219), os indivíduos, para Bogdánov, também podem ser cheios de “iniciativa e impetuosamente militantes” (E, pg. 221; T, pg 273). Num “país atrasado”, um “movimento progressista” também pode romper o “equilíbrio” diante da reação estatal, “aprofundando seus slogans, mudando para formas mais radicais de luta”, o que “caracteriza essas organizações como sistemas do segundo tipo”, isto é “desequilibrados” (p. 222).
Nos complexos de equilíbrio sempre existem atividades antagônicas que se neutralizam mutuamente em algum nível […] Se tal complexo é exposto, isso significa que novas atividades entraram nele vindas do ambiente externo, correspondendo a um ou outro desses grupos antagônicos (p. 223).
Neste caso, tratam-se de “complexos desequilibrados porque uma nova influência muda o curso de uma transformação estrutural já em curso” (E, pg. 223; T, pg. 276, itálicos no original).
Bogdânov parou aqui, nos volumes 1 dos Ensaios e da Tectologia. Nos volumes seguintes, ele desenvolverá mais suas idéias a respeito dos sistemas em “crise”, sistemas que se modificam devido a condições que rompem o equilíbrio. Ele parou, pois, exatamente no limiar de descrever os sistemas longe do equilíbrio, prenunciados por Brillouin ao exorcizar o “demônio de Maxwell”[xxii]; anunciados por Henri Atlan ao elaborar o princípio da “organização pelo ruído”[xxiii]; consagrados por Ilya Prigogine e Isabelle Stenghers, que responderam, embora sem nem terem idéia, àquele questionamento de Engels à formação das nebulosas[xxiv]. Se algum sistema tende à entropia, em algum momento, por óbvio, ele teria que estar organizado longe do equilíbrio: neguentropia, expressão cunhada por Brillouin. Por fatores talvez ao acaso, elementos se agregam e, a partir daí, tornam-se uma força crescentemente agregadora, organizadora, até algum limite termodinamicamente determinado. As nuvens, por exemplo, explicam Priogogine e Stenghers, formam-se para, depois, se dissolverem em chuvas devido a forças naturais permanentes de ordem e desordem, neguentropia e entropia. Foi necessário aguardar a segunda metade do século XX para o paradigma do equilíbrio dar lugar ao do não equilíbrio. Talvez não tivesse sido necessário aguardar tanto tempo, se o pensamento de Bogdánov, ao invés de reprimido e silenciado, tivesse sido melhor estudado, compreendido, desenvolvido, aperfeiçoado, também corrigido em alguns pontos, na URSS de Lênin e Stálin.
A necessidade histórica da Tectologia
“As sociedades baseadas na divisão do trabalho e na troca de mercadorias, que não dispõem de algum sistema integral de trabalho, só podem expressar as suas tarefas em alguma escala parcial”, afirma Bogadánov em Tectologia (p. 52). Isso explicaria a especialização fragmentada do conhecimento ao longo da história e a necessidade de surgir um “novo modo de pensar”, à medida em que o capitalismo engendrava grandes e integradas organizações produtivas e, nelas, uma classe social que por suas “relações de vida, a atmosfera de trabalho e de luta” teria que originar esse “modo de pensar que faltava” (p. 89): o proletariado industrial.
Partindo do princípio básico que a atividade humana, na sua relação com a natureza e nas suas relações sociais, é organizativa, Bogdánov entende que, ao longo da história, os seres humanos se dividem em dois grandes grupos: os organizadores do trabalho e os que executam o trabalho. Essa generalização do princípio de luta de classes viria a ser um dos pontos mais atacados pelos seus críticos pois aparentemente desaparecia com conceitos opostos política e ideologicamente fortes e de fácil compreensão, como escravocrata/escravo; nobre/servo; capitalista/operário. Mas para Bogdánov, na lógica monista da unidade de contrários, “a separação mais profunda no âmbito da cooperação era aquela que separava o organizador do executor, o esforço mental do esforço físico. Nas técnicas científicas, a labuta do trabalhador abrange os dois tipos. O trabalho do organizador é a gestão e o controle sobre o executor; o trabalho do executor é o impacto físico sobre os objetos de trabalho. Na produção mecanizada, a atividade do trabalhador é a gestão e o controle do seu ‘escravo de ferro’ – a máquina –, por meio da influência física sobre ela. Os elementos da força de trabalho, aqui, são tanto aqueles que eram exigidos apenas para a função organizacional, como a competência técnica, o conhecimento, a iniciativa em caso de avarias; quanto aqueles que caracterizavam a função de execução – destreza, rapidez e habilidades dos movimentos. Essa combinação de tipos […] aparece mais nítida e definitivamente à medida que a máquina é aperfeiçoada, torna-se mais complexa e se aproxima cada vez mais do tipo de mecanismo ‘automático’, de autoativação, no qual a essência do trabalho está no controle vivo, na interferência proativa e na atenção ativa constante. A combinação será totalmente completa quando uma forma ainda mais elevada de máquinas for desenvolvida – os mecanismos autorreguladores. Isso, é claro, é uma questão para o futuro […]” (p. 90).
Essa passagem vai ao encontro das projeções de Marx, nos Grundrisse, embora, sabidamente, Bogdánov não possa ter tido qualquer acesso a esses rascunhos, publicados pela primeira vez em 1939. Na medida em que avançasse a mecanização e a automação industrial, escreveu Marx, o trabalho não apareceria mais “tão envolvido no processo de produção quando o ser humano se relaciona ao processo de produção muito mais como supervisor e regulador”[xxv]. Burawoy, numa crítica teórica e empírica a Braverman, demonstra como, numa indústria altamente mecanizada, os operários podem ter, ao menos no nível da máquina, algum comando ativo e consciente do processo[xxvi]. Dantas, também em pesquisa empírica, acrescentou outros elementos ao mesmo argumento[xxvii].
É claro que muito haveria a debater neste ponto, impossível, porém, nos limites de espaço e objetivos deste artigo. Importante, aqui, é anotar que, para Bogdánov, tratava-se de educar a classe operária do seu tempo para tomar consciência desse seu papel não só executor, também organizador como consequência mesma do desenvolvimento das forças produtivas do trabalho e, claro, do papel dirigente que ela deveria assumir em uma futura sociedade socialista. Em outras obras, ele não deixa de registrar já estar em formação aquela camada intermediária de trabalhadores “técnico-intelectuais” (que viriam a ser os “colarinhos brancos”) que vinham assumindo as funções de organização em nome dos capitalistas. Daí a grande importância que ele daria à luta cultural e ideológica antecedente e coincidente com a própria luta revolucionária. Este ponto, não aprofundado neste artigo, viria a ser um outro decisivo pomo de discórdia dele com Lênin[xxviii].
Para concluir
Num plano rasteiro, da realpolitik, Bogdánov e sua obra foram derrotados e apagados da história, assim como muitos outros líderes bolcheviques, pelas lideranças que melhor compreenderam e souberam operar as circunstâncias da época: destacadamente, Lênin e Stálin. Mas suas ideias, buscando a compreensão do todo, talvez fossem mesmo de difícil apreensão e compreensão subjetiva, por parte de quadros social-democratas revolucionários, depois bolcheviques, adiante soviéticos, e também pelos trabalhadores e trabalhadoras comuns, geralmente gente especializada e educada, intelectual e praticamente, em fragmentos de saber. Nem mesmo Lênin poderia ser considerado um polimata.
Outro obstáculo diante de Bogdánov, estaria na própria dificuldade que o marxismo, conforme sistematizado e codificado, pelo último Engels, por Kautski, Plekhanov, Lênin, dentre outros e outras, teria com ideias, mesmo as rigorosamente científicas, que poderiam pôr em questão a crença iluminista, via Hegel ou Saint Simon, no progresso determinista da humanidade, daí, no inquestionável futuro comunista. Se a ciência estava abandonando o determinismo newtoniano pela relatividade que culminaria em Einstein e Heisenberg, a ciência da História também precisaria admitir que a necessidade pode ser função de arranjos probabilísticos, o “que subtraía ao marxismo a sua força profética”, conforme observa Rodrigo Nunes na sua apresentação à edição brasileira[xxix].
A partir dos anos 1970, não por acaso em seguida à relativa abertura que se seguiu à morte de Stálin, as obras e o pensamento de Bogdánov começaram a ser redescobertos e revisitados. Um crescente número de cientistas, dentro e fora da União Soviética, pôs-se a publicar artigos sobre suas teorias, não raro ainda enfrentando reprimendas do establishment acadêmico soviético. Nessa retomada, ficaria claro que as idéias de Bogdánov haviam antecipado a teoria geral dos sistemas de Von Bertalanffy (1901-1972) e a cibernética de Norbert Wiener (1894-1964).
Para alguns desses novos estudiosos do pensamento de Bogdánov, ele teria sido não apenas o real criador da teoria de sistemas como seria muito difícil o biólogo austríaco Ludwig von Bertalanffy, em seus anos de formação na década 1930, não ter tido conhecimento da tradução alemã de Tectologia[xxx]. Porém teria se “esquecido” de citá-la, levando todas as “glórias” da revolução teórica que daí se iniciou. Cabe observar que enquanto Wiener, para definir sua ciência, foi buscar uma palavra grega que se traduz por “controle”, Bogdánov buscou outra palavra grega mas que se traduz por “construção”. A diferença é significativa.
Mas faltava a Bogdânov o conceito ontológico, epistemológico e teórico de informação, elaborado somente a partir – e criticamente – do artigo pioneiro de Claude Shannon, em 1948[xxxi]. Não há organização sem informação, conforme Rapoport: “A energia tinha sido o conceito unificador subjacente a todos os fenômenos físicos que supunham trabalho e calor. A informação tornou-se o conceito unificador subjacente ao funcionamento dos sistemas organizados, isto é, sistemas cujo comportamento era controlado de modo a atingir alguns objetivos preestabelecidos”.[xxxii]
As relações que Bogdánov descreve como “atividades” ou “resistência” podem ser atualizadas no conceito de informação – ação orientada a uma finalidade. As “novas atividades” que afetam a “organização” são “ruídos”, no conceito de Foerster ou Atlan, criticando Shannon, que tanto podem desorganizar quanto organizar, aprimorar, fazer crescer a organização. Através da informação, demonstrou Brillouin, a organização pode manter seu grau de neguentropia, ainda que, como também sabia Bogdánov, “exportando” entropia para algum outro nível do sistema em seu conjunto. No balanço geral, a sustentação do não equilíbrio a um nível acresce tendência ao equilíbrio a outro nível.
Esse balanço é inerente à sobrevivência e evolução das espécies vivas. Nunca foi, também, algum problema maior para a humanidade, cuja sobrevivência e evolução sempre se deu através da transformação neguentrópica da natureza orgânica e inorgânica à sua volta, sabendo também como se organizar, no sentido bogdanoviano, para suportar ou superar os eventuais efeitos entrópicos de seu trabalho em seu ambiente. Até que, no seu processo histórico evolutivo, a humanidade liberou forças produtivas extraordinárias que a levaram a um modo de vida muito longe do equilíbrio: o capitalismo. A solução para a gigantesca entropia que em contrapartida o capitalismo está, por isso, também gerando, e não pode deixar de também gerar, seria aquela marciana, da utopia de Bogdánov. Ou marxiana…
*Marcos Dantas é professor titular aposentado da Escola de Comunicação da UFRJ. Autor, entre outros livros, de A lógica do capital-informação (Contraponto). [https://amzn.to/3DOnqFx]
Notas
[i] Juta Scherrer (1984), Bogdânov e Lênin: o bolchevismo na encruzilhada, in Hobsbawn, Eric (Org.) História do marxismo, Vol. 3, Rio de Janeiro: Paz e Terra, pgs. 189-243.
[ii] Alexandr Bogdánov, Estrela Vermelha, São Paulo: Boitempo, 2020. Ver também, Marcos Dantas, A Estrela Vermelha, A Terra é redonda, 19/09/2021, disponível em https://aterraeredonda.com.br/a-estrela-vermelha/, acesso em 07/03/2025.
[iii] J. D. Bernal (1965 [1954]). Science in History, Cambridge, EUA: The MIT Press, vol. 3; David Noble (1977). America by Design, Oxford/New York: Oxford University Press
[iv] C. Wright. Mills (1969 [1951]). A nova classe média (White Collar), Rio de Janeiro: Zahar.
[v] Bernal, op. cit., pg 731-732
[vi] Bernal, op. cit. pg 736-737; Ian Stewart (2013). 17 equações que mudaram o mundo, Rio de Janeiro: Zahar, pgs 294-297.
[vii] Georg Lukács (1989 [1922]), História e consciência de classe, Rio de Janeiro: Elfos.
[viii] Lubomir Sochor (1987), Lukács e Korsch: a discussão filosófica dos anos 20, inEric Hobsbawm (Org.), História do marxismo, vol 3, pgs. 13-69, pg. 21.
[ix] Alexander Bogdanov (1996 [1913-1917]), Bogdanov’s Tektology, Peter Dudley (editor), Hull, U.K.: Centre for Systems Studies Press.
[x] A. Bogdanov (1984, 2ª ed.), Essays in Tektology: the General Science of Organization, George Gorelik (tradutor), Seaside, EUA: Intersystems Publications.
[xi] Todas as citações extraídas da edição inglesa da Tectologia foram traduzidas para o português por mim – MD.
[xii] Para simplificar, não ficar repetitivo, todas as referências citadas da edição inglesa da Tectologia, serão identificadas pela letra T. As referências aos Ensaios, na sua edição brasileira, serão identificadas pela letra E. Nos muitos casos em que as citações podem ser encontradas em ambas as edições, o texto exibido é o da edição brasileira, indicando-se a página correspondente na inglesa.
[xiii] Jean-Pierre Dupuy (1982). Ordres et désordres: enquête sur un nouveau paradigme, Paris: Seuil.
[xiv] Álvaro Vieira Pinto (2005), O conceito de tecnologia, Rio de Janeiro: Contraponto, 2 vols.
[xv] Karl Marx (2004 [1982]). Manuscritos econômico-filosóficos, São Paulo: Boitempo, pg. 84, itálicos no original.
[xvi] Friedrich Engels (1961 [1896]) Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem, in K. Marx & F. Engels, Obras escolhidas, Vol. 2, pgs 270-281, Rio de Janeiro: Ed. Vitória, pg. 279.
[xvii] idem, ibidem.
[xviii] Lukács, op. cit., pg. 41.
[xix] Friedrich Engels (2020 [1985] [1925]). Dialética da Natureza, São Paulo: Boitempo, pg. 306
[xx] Daniel Bensaid (2003). Marx intempestivo: grandezas y miserias de uma aventura critica, Buenos Aires: Herramienta, pgs. 483-487.
[xxi] J. B. Foster e P. Burkett (2008). Classical marxism and the second law of thermodinamics, Organization & Environment, v. 21, n. 1, pp. 3-37.
[xxii] Léon Brillouin (1988 [1956]). La science et la Théorie de l´Information, Paris: Éditions Jacques Gabay.
[xxiii] Henri Atlan (1992 [1979]). Entre o cristal e a fumaça, Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar
[xxiv] Ilya Prigogine. e Isabelle Stengers (1984). A nova aliança, Brasília, DF: Editora UnB
[xxv] Karl Marx (2011 [1982]). Grundrisse, São Paulo: Boitempo, pg. 588.
[xxvi] Michael Burawoy (1979). Manufacturing consent, Chicago: The University of Chicago.
[xxvii] Marcos Dantas (2007). Os significados do trabalho: produção de valores como produção semiótica no capitalismo informacional, Trabalho, Educação e Saúde, v. 5, n. 1, pgs. 9-50, disponível NESTE LINK, acesso em 09/03/2025
[xxviii] Zenovia A. Sochor (1988). Revolution and Culture the Bogdanov-Lenin Controversy, Ithaca/London: Cornell University Press.
[xxix] Ricardo Nunes (2024). Do ponto de vista da organização: Bogdánov e a esquerda agostiniana, in Alexander Bogdánov, Ensaios de tectologia: a ciência geral da organização, vol. 1, Rio de Janeiro: Machado, pg. 11.
[xxx] Vadim N. Sadovsky e Vladimir V. Kelle (1996). Foreword: Alexander Alexandrovich Bogdanov and “Tektology”, in Bogdanov’s Tektology, cit., pags. iii-xxix.
[xxxi] Claude Shannon (1948). A Mathematical Theory of Communication. The Bell System Technical Journal, v.27, n. 3: pgs. 379-423.
[xxxii] Anatol Rapoport (1976). Aspectos matemáticos da análise geral dos sistemas, in Anohin, P. K. et alii, Teoria dos sistemas, Rio de Janeiro, RJ: Editora FGV, pg. 29.
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