Por HOMERO SANTIAGO*
O episódio no terminal Pinheiros, na capital paulista, reacende medonhas lembranças de bancas de jornal que vão pelos ares, carta explosiva na OAB, em 1980, e o Riocentro, em 1981
1.
O terminal Pinheiros, na capital paulista, abriga 41 linhas de ônibus urbanos e com ele se entroncam as linhas 4 amarela do metrô e a 9 esmeralda da CPTM; centenas de milhares de pessoas o utilizam diariamente, sobretudo nos horários de pico, provindo de todas as partes e indo para todos os cantos da cidade.
No último dia 12 de março, conforme o registro das câmeras de segurança, por volta das 5h30 um homem deixou duas sacolas perto da fila do ponto da linha 209P-10 (Cachoeirinha – Terminal Pinheiros) e foi embora. Cada sacola continha uma bomba; uma explodiu pouco depois, outra seria desarmada, mais tarde, pelo esquadrão antibombas da polícia.
Junto aos artefatos se encontraram panfletos com os seguintes dizeres, conforme o noticiado na grande imprensa: “Abaixo os generais golpistas! Morte aos fascistas! Viva o Maoísmo! Viva a Guerra Popular! Viva a Revolução Democrática! Partido Comunista do Brasil – P.C.B.”
Nessas breves linhas, dois detalhes convocam imediatamente a atenção. Em primeiro lugar, a confusão cronológica, pois a uma referência aparentemente atual (“generais golpistas”) segue uma fila de fórmulas típicas do mundo de meados do século passado (“guerra popular”, por exemplo) que já não possuem sentido algum (nem o PC chinês proclama mais “viva o maoísmo!”); no conjunto, o embaralhamento temporal deixa a dúvida: os referidos “generais” são os de hoje ou os de ontem?
O segundo dado chamativo está na firma que assume a autoria do panfleto e por extensão do atentado: “P.C.B.”, que na realidade é a sigla do Partido Comunista Brasileiro, e não da agremiação cujo nome vem por extenso: o Partido Comunista do Brasil, PC do B; como acreditar que o dedicado militante que realizou a ação trocou as bolas, isto é, essas benditas letras que na história determinam uma diferença política nada desimportante?
Quando menos, esses pormenores nos metem uma pulga atrás da orelha. As bombas serão obra de um lobo solitário entre aloprado e ignorante ou a ponta de uma operação maior (ainda que mal executada por falha) de disseminar o medo? Com efeito, o que mais objetivava senão aterrorizar, deixando duas bombas ao lado de uma fila de ônibus?
2.
O episódio reacende medonhas lembranças de bancas de jornal que vão pelos ares, carta explosiva na OAB, em 1980, e o Riocentro, em 1981, quando dois militares desajeitados se explodiram acidentalmente ao cometer um ato terrorista contra um show nas comemorações do Dia do Trabalho (um morreu no ato; o outro, além dos gravíssimos ferimentos, perdeu a língua e nunca falou nada sobre).
Ora, a quem interessa propagar o medo?
Na história da extrema direita brasileira, tanto civil quanto militar, tradição sempre foi partir para a porrada por meio de atos terroristas, ao sentir-se ameaçada ou demasiado debilitada na correlação de forças políticas do momento. Foi assim ao protestar contra a “abertura” de Ernesto Geisel, foi assim no curso da redemocratização ou enquanto trabalhava a Assembleia Constituinte; foi assim até quando não se conseguia impor reivindicações menores como o soldo, e não custa lembrar que Jair Bolsonaro teve seus dias de fogueteiro nos anos 1980, ao planejar explodir bombas-relógios em unidades militares do Rio de Janeiro (foi condenado e depois absolvido).
Em virtude da tradição, a pergunta não cala: algo do tipo estaria recomeçando? O vocabulário antiquado faz desconfiar de cabeças assombradas pela guerra fria e pela ameaça comunista; mentes que eram a dos militares de 1964, continua sendo a do capitão Jair Bolsonaro e que não devem diferir muito daquelas dos aloprados que tentaram explodir um caminhão-tanque perto de aeroporto de Brasília em dezembro de 2022 e da dos vândalos golpistas de 8 de janeiro de 2023.
Invariavelmente, trata-se de impor o pânico e assim confundir a população; de maneira particularmente medonha, atribui-se inclusive a autoria das ruindades a um adversário político. Embora o expediente de alastrar o medo e demonizar os adversários não seja inédito, nunca deixa de surpreender a mesquinharia, a falta de senso (para nem falar de conhecimento básico) dessa gente.
Mas a quem interessa propagar o medo bem neste momento?
Esforcemo-nos um pouco em entender o funcionamento da ação no terminal Pinheiros, que talvez sem nenhum acaso tenha ocorrido precisamente nos dias mesmos que antecedem uma decisão do STF sobre se o capitão ex-presidente será ou não réu, e no bojo de investigações sobre a tentativa de golpe de Estado em 2022, estando na prisão um general ex-vice-presidente e em curso uma campanha em prol anistia aos responsáveis pelo lamentável 8 de janeiro.
Ora, não é muito difícil conceber o seguinte: se a população se convencer que os que desejam a punição dos golpistas são violentos e buscam pressionar a opinião pública mediante atos terroristas, não será impossível que a população afetada pelo medo vá paulatinamente se erguendo contra os amedrontadores que querem acuá-la.
3.
Esquematizemos da seguinte forma a sordidez: P causa V; X sofre com V;
logo, X põe-se contra P.
Em consonância com os panfletos encontrados no terminal Pinheiros, P deve-se ler como um partido; porém, também podemos ler, sob a referência superficial, uma posição política que defende a punição aos golpistas de 22-23 (ou também de 64, pois como dito acima a confusão cronológica é enorme). Já V remete à violência, no caso as bombas e o seu efeito potencial, causada sobre X, sob o qual se pode subsumir qualquer um que, sofrendo violência e padecendo o medo, tenda a pôr-se justificadamente contra P, o qual funciona no contexto como a fusão de um agente terrorista e uma posição favorável à punição de golpistas.
Contas feitas, em termos políticos o terror serve para demonizar justamente a causa que o panfleto quer dar a entender que defende e o partido (leiamos, todo o espectro político da esquerda) que pretensamente o assina. Pelo contrário, os golpistas (de hoje e de ontem, cabe dizer) é que, no frigir dos ovos e no detonar de bombas, parecem lucrar mediante toda a farsa. Só eles.
Não é impossível que o raciocínio aqui desenvolvido contenha um considerável tanto de fantasia conspiratória. Sinceramente, espero que sim. Do contrário, o dia de 12 de março terá sido o marco da abertura de um tempo negro para a democracia brasileira, a repetição de atos que já a fizeram muito sofrer e que prenunciam coisas ruins, péssimas.
N’O 18 de brumário Marx sugeria, na esteira de Hegel, que grandes fatos e personagens da história são encenados duas vezes; ressalvava apenas que “a primeira vez como tragédia, a segunda cono farsa”. Pois bem, o que dizer das besteiras, ruindades e brutalidades repetidamente praticadas por nossos personagens medíocres e execráveis, como aqueles “generais de dez estrelas”, que premonitoriamente lastimou nos anos 1980 a Legião Urbana, em Faroeste caboclo, que mandavam botar “bomba em banca de jornal” enquanto se escondiam atrás das mesas “com o cu na mão”?
Parece que descaímos para uma comédia de erros grosseiros e risíveis, em que os personagens erram siglas, pensam fazer desaparecer textos movendo-os para a lixeira do computador, agarram-se nas cabinas de caminhão para derrubar o regime, e por aí vai. Pena que não ficamos só nesse pastelão. O incontido riso se faz acompanhar da preocupação séria com os rumos da nação; não é impossível estarmos igualmente a assistir às cenas iniciais de um teatro de revista que vem proclamar más notícias, anunciar arrepiantes dias vindouros.
O ocorrido recentemente no terminal Pinheiros pode revelar e antecipar muita coisa terrível, assim como pode não significar nada. Tomara que seja isto mesmo, enviando aquelas sacolas explosivas para o saco de gatos dos fatos insignificantes de nossa história. Todavia, seja como for, resta ativo o bichinho roedor. Será que, tão comum quanto esquecer o guarda-chuva no balcão de um bar, especialmente quando a garoa parou, é sair de casa com duas bombas e esquecê-las num ponto de ônibus, daquele jeito meio sem querer querendo só porque a mão pesou?
Arre, que sacolas intrigantes!
*Homero Santiago é professor no Departamento de Filosofia da USP.
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