Por AFRÂNIO CATANI*
Comentário sobre o livro de Pierre Bourdieu e Alain Darbel
Publicado originalmente em 1966, revisto e ampliado, e com nova edição em 1969 – que é a base da tradução brasileira –, O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público é fruto de pesquisa dirigida por Pierre Bourdieu (1930-2002), com colaboração de Dominique Schnapper (1930). Alain Darbel (1932-1975), por sua vez, construiu o plano de sondagem e elaborou o modelo matemático destinado à análise da frequência das visitas aos museus (p. 13).
O trabalho, envolvendo grande equipe de pesquisadores e auxiliares, recebeu o financiamento parcial do Serviço de Estudos e Pesquisas do Ministério das Questões Culturais da França, e resultou da aplicação de questionários em amostras selecionadas de museus na França, Espanha, Grécia, Itália, Holanda e Polônia, em 1964 e 1965.
O amor pela arte organiza-se a partir de um curto preâmbulo, breve introdução, capítulo dedicado aos procedimentos da pesquisa, conclusão, cronologia das pesquisas efetuadas, detalhados apêndices, breve bibliografia e em três grandes partes, a saber: “Condições sociais da prática cultural”, “Obras culturais e disposição culta” e “Lei da difusão cultural”.
Quando o livro foi editado, Pierre Bourdieu era um intelectual em ascensão, com 36 anos, diretor de estudos na École des Hautes en Sciences Sociales, diretor associado do Centre de Sociologie de l’ Éducation et de la Culture, além de já ter publicado sete livros – quase todos com colaboradores (Alain Darbel, Jean-Paul Rivet, Claude Seibel, Abdelmalek Sayad, Jean-Claude Passeron, Luc Boltanski, Jean-Claude Chamboredon. Monique de Saint Martin): Sociologie de l’ Algérie (1958); Travail et travailleurs en l’ Algérie (1963); Le déracinement, la crise de l’agriculture traditionnelle en Algérie (1964); Les étudiants et leur études (1964); Les héritiers. Les étudiants et la culture (1964); Un art moyen, essai sur les usages sociaux de la photographie (1965) e Rapport pédagogique et communication (1965) – , além de alguns capítulos de livros e mais de uma dúzia de artigos em conceituadas revistas acadêmicas (Études Rurales, Sociologie du Travail, Revue Française de Sociologie, Les Temps Modernes).
Nas orelhas da edição brasileira, José Carlos Garcia Durand escreve que a partir das pesquisas realizadas através de questionários com milhares de visitantes de museus em seis países da Europa, o livro “revela que o modo como as pessoas descrevem e justificam seus hábitos culturais jamais pode ser aceito pelo seu valor nominal. Tomar por realidade as crenças e os discursos das pessoas (mesmo as ricas e cultivadas), a respeito de arte e cultura, significa converter em princípio de explicação o que está pedindo para ser explicado. E aí entra a sociologia”.
Pierre Bourdieu entende que os museus abrigam tesouros artísticos que se encontram ao mesmo tempo – e paradoxalmente –, abertos a todos e interditados à maioria das pessoas. Aqueles pertencentes a qualquer classe social e com distintos graus de escolarização podem frequentar museus, não é verdade? Sim e não; ou melhor, em termos: para se poder viver a plenitude desse amor, sem condicionamentos ou limitações, é preciso que os amantes possuam determinadas disposições que foram sendo adquiridas lentamente, envolvendo dedicação, perseverança e o cumprimento de uma gama de obrigações.
Não existe nem pecado nem perdão, tal amor surge de maneira “natural”, após a assimilação do princípio do prazer culto, produto artificial da arte e do artifício, que vem a ser “a verdade oculta do gosto oculto”. Os autores se perguntam se a prática obrigatória pode conduzir ao verdadeiro deleite ou se o prazer cultivado é irremediavelmente marcado pela impureza de suas origens.
Ao longo de O amor pela arte mostra-se como o coração obedece à razão, pois são desvendadas as condições sociais de acesso às práticas cultivadas, fazendo ver que a cultura não é um privilégio natural, mas bastaria que todos possuíssem os meios para que pudessem dela tomar posse para que pertencesse a todos.
A frequência dos museus em todos os países pesquisados aumenta de maneira considerável à medida que se eleva o nível de instrução, correspondendo quase que exclusivamente a um modo de ser das classes cultas (p. 37). A “necessidade cultural” é produto da educação, da ação da escola. Acho que talvez não seja por outra razão que a epígrafe da parte 3 do livro, “Leis da difusão cultural”, foi extraída do filósofo e matemático alemão Leibniz: “a educação consegue tudo: faz dançar os ursos”. A ação escolar, bastante desigual – em razão de atuar sobre indivíduos previamente dotados, pela ação familiar, com distintos níveis de competência artística -, envolve jovens já “iniciados” neste domínio cultural.
A escola, ao inculcar disposições duradouras à prática culta, auxiliando decisivamente na transmissão do código das obras de cultura erudita, transforma as desigualdades diante da cultura em desigualdades de sucesso. Fecha-se o círculo que faz com que capital cultural leve ao capital cultural (p. 111). Os indivíduos assimilam parte das disposições cultas, produto de uma educação distribuída de forma desigual, tratando “as aptidões herdadas como se fossem próprias da pessoa [‘dons’], ao mesmo tempo naturais e meritórias” (p. 169).
Os questionários aplicados correlacionam, com detalhe, uma série de variáveis, tais como categoria socioprofissional, nível de escolaridade, profissão, renda, sexo, local de residência, faixa etária, museu visitado, dia e horário em que ocorreu a visita, tempo médio da visita, correlação entre a(s) visita(s) segundo o nível cultural, juízos sobre os museus e as exposições, tipo de arte preferido, motivo(s) declarado(s) da visita, nome(s) de pintor(es) e de escola(s) etc.
A pesquisa em tela possui caráter pioneiro, procurando evidenciar a dimensão eminentemente social dos meios de apropriação dos bens culturais existentes em museus – dimensão essa que se constitui em privilégio apenas daqueles dotados da faculdade de se apropriarem das obras. O texto dos pesquisadores franceses foi concluído há mais de 50 anos e, de lá para cá, o quadro sofreu alterações significativas. O turismo cultural e a visita a museus, por exemplo, experimentaram transformações de monta, não mais se beneficiando apenas das categorias socioprofissionais munidas de diplomas, isto é, o público já tradicional que os frequentava.
Pode-se dizer o mesmo do estágio relativamente amador em que se encontrava a “museologia” – hoje consideravelmente alterada –, ou ainda quando fala dos conservadores de museus, pertencentes aos estratos superiores pouco afeitos a questões que envolviam gama relativamente ampla de papéis (homem de ciência, comerciante, diretor administrativo, educador): hoje equipes com quadros diversificados participam desse circuito, encarregando-se de projetos referentes a ações educativas, à busca de patrocínios, à utilização de leis de incentivos fiscais, à edição de catálogos, à maior divulgação em geral.
Em 1969, cético com relação aos limites que a ação do conservador impunha-se a qualquer tipo de incitação direta à prática cultural, Pierre Bourdieu escrevia: “quem acredita na eficácia milagrosa de uma política de incitação para visitar museus e, em particular, de uma ação publicitária pela imprensa, rádio ou televisão – sem se dar conta de que ela limitar-se-ia a acrescentar, de forma redundante, informações já fornecidas em abundância pelos guias, postos de turismo ou cartazes afixados à entrada das cidades turísticas – assemelha-se às pessoas que imaginam que, para serem mais bem compreendidas por um estrangeiro, basta gritar mais alto” (p. 149).
Em suma, pela leitura de vários textos de Pierre Bourdieu é possível compreender os mecanismos pelos quais apenas parte dos indivíduos consegue obter as chaves para a plena fruição das obras de arte – ou, para falar como Max Weber, gozam “do monopólio da manipulação dos bens de cultura e dos signos institucionais da salvação cultural” (p. 169). Ou, em palavras mais claras, o cronista Rubem Braga (1913-1990), visitando Jean Cocteau (1889-1963) em Paris em 1950, escreveu que o escritor em determinado dia estava com Pablo Picasso (1881-1973), e o pintor perguntou a um rapaz, restaurador de quadros, o que achava de certa pintura. “O rapaz confessou que não podia dizer nada porque não compreendia aquele quadro. E o espanhol: Você compreende chinês? O rapaz disse que não. Pois chinês se aprende; isso também” (Braga, 2013, p. 38-39).
*Afrânio Catani é professor titular aposentado da Faculdade de Educação da USP e, atualmente, professor sênior na mesma instituição. Autor, entre outros livros, de Origem e destino: pensando a sociologia reflexiva de Bourdieu (Mercado de Letras).
Referência

Pierre Bourdieu & Alain Darbel. O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. Tradução: Guilherme João de Freitas Ferreira. Porto Alegre, Zouk, 2016, 216 págs. [https://amzn.to/43QCb59]
Bibliografia
Afrânio Mendes Catani. A cultura não é um privilégio natural. Apresentação. In: Pierre Bourdieu e Alain Darbel (com a colaboração de Dominique Schnapper). O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. São Paulo: EDUSP; Zouk, 2003, p. 7-11.
Rubem Braga. Visita a Jean Cocteau. In:_________. Retratos parisienses. Seleção e apresentação: Augusto Massi. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013, p. 37-40 (Escrito originalmente para o Correio da Manhã (19 de março de1950).
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