Estados murados

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Por LUIZ MARQUES*

Mulheres, pessoas negras, LGBTQIA+, indígenas, quilombolas. Empoderar a população por meio da participação cidadã é a condição para qualificar serviços/espaços republicanos e materializar o conceito de “soberania popular”

“Sem cuidado nenhum, sem respeito nem pesar,
Ergueram à minha volta altos muros de pedra.
E agora aqui estou, em desespero, sem pensar
noutra coisa: o infortúnio me depreda.
E eu que tinha tanta coisa para fazer lá fora!
Quando os ergueram mal notei os muros, esses.
Não ouvi vozes de pedreiro, um ruído que fora.
Isolaram-me do mundo sem que eu percebesse.”
(Konstantinos Kaváfis, poema Muros na tradução de José Paulo Paes).

1.

O livro premiado pela Associação Americana de Ciência Política, Estados murados: soberania em declínio, de Wendy Brown, discorre sobre a função e a ficção do “muro”. Conforme a autora, professora do Instituto de Estudos Avançados de Princeton, os muros escapam da mera funcionalidade para atingir níveis simbólicos de organização identitária e psíquica. O assunto é atual; pois remete à xenofobia.

Desde fins de 1910, os Estados Unidos possuem na fronteira a barreira física com arame farpado, então para conter a Revolução Mexicana iniciada em novembro daquele ano e encerrada em 1920. Em 2016, Donald Trump fez do tema o centro da campanha na cruzada contra os “invasores”, o tráfico de drogas, a violência e a conjuntura econômica. Os adjetivos “grande, alto, impenetrável, sólido, poderoso, bonito” rechearam a demagogia do falastrão sobre o muramento para vincular a rejeição da imigração hispânica à globalização. Pudera, “America First. A subespécie que se lixe.

A fragilidade dos Estados nacionais em face das decisões transnacionais e das megacorporações explica a profusão de câmeras, sensores e paredões. No Brasil, o mais extenso circunda o bairro da Grande São Paulo, Alphaville, que detrás da murada abriga os preconceitos das elites. A urbanidade se reduz aos condôminos, porteiros, guardas, síndicos. A reclusão desperta o sentimento de unidade e segurança. Em A cidade na história, Lewis Mumford cita “a comunidade de pesquisas atômicas de Oak Ridge / Tennessee, onde os habitantes passaram a dar valor à vida ‘segura’ no interior, livre de invasão estrangeira ou aproximação não autorizada”. O Grande Irmão decide quem entra ou sai.

Para Wendy Brown, o espetáculo da cortina de concreto restaura no imaginário a soberania perdida do Estado-nação. A erosão estatal cria o anseio de fechamento para materializar a Weltanschauung no modo amigo vs inimigo, em que penetras e mesmo visitantes são malvistos. Na dinâmica do capitalismo, a aporofobia e a eugenia transferem o problema para os migrantes pobres. A extrema direita é produto da fragilização do “Leviatã”, da crise da democracia e da involução da cidadania.

2.

O documentário audiovisual de Roberto Cabrini, O coiote, mostra a aventura no deserto dos que vão do México à potência do Norte. Na jornada, o movimento ilegal é guiado pelos traficantes de pessoas que submetem os clandestinos a condições insalubres e opressivas. Para não mencionar os Yankees voluntários que vigiam a fronteira imperial e atiram com rifles nas atrevidas cucarachas que ousam atravessá-la. Levantam as mãos aos céus os que sobrevivem à destituição da esperança.

Em 2021, 57 mil brasileiros foram detidos na travessia aos EUA, três quartos deles compostos por famílias inteiras. Indagado, o inelegível opinou: “a maioria não tem boas intenções”. Não contente em caluniar o sistema eleitoral, o golpista insultou os compatriotas. “As intrigas do trapaceiro são desleais, ele maquina desígnios criminosos para enganar os humildes com mentiras” (Isaías 32:7).

A nomenclatura dos muros assume distintas conotações. Para os estadunidenses, é o “marcador de fronteira”; para os israelenses, é a “cerca de segurança”. Mas grafites e murais de protesto destroem os eufemismos; o real significado é a exclusão. As subjetividades reacionárias vêm na esteira do desmonte do Estado de direito democrático. Reminiscências de castelos, reis, exércitos, fossos não se encaixam na era das bombas inteligentes e tablets digitais. Não impede a mão de obra estrangeira em serviços subalternos, na superexploração da mais-valia sob o olhar hipócrita das autoridades.

Os muros constituem a tela para a projeção de fantasias sobre a vida digna, do outro lado. Mesmo ao falhar, intensificam os conflitos que vão do crime organizado ao triste colapso dos ecossistemas. Apesar de ineficazes cumprem um papel na manipulação das massas. Foram levantados mais de cinquenta, após a queda do Muro de Berlim. O fenômeno não para de progredir, sob os aplausos. A propósito, ler o artigo “Muros que nos separam” publicado na revista Carta Capital (12/03/2025).

3.

Na Europa, com a recessão de 2009 a questão se resume em: (a) atrair investidores internacionais e; (b) repelir os imigrantes indesejáveis. Essa é a agenda que a comunidade europeia universaliza para dissimular a responsabilidade pelo crescente azedume. As entidades financeirizadas – e o Estado – buscam a confiança do mercado e das agências de avaliação do crédito e títulos da dívida pública.

O arcabouço de contenção de gastos e as chantagens sobre os governos nascem do financismo que sufoca a autodeterminação do país e as lutas para um Estado de bem-estar social e ambiental. Vale o princípio da Gestalt, o todo é maior do que a soma das partes; sendo que o todo é o próprio mercado e, em vez de os cidadãos, os consumidores são as partes no simulacro neoliberal da modernização.

Não é fácil desconstruir a sedução dos muros para o empreendedorismo autofágico, sob o tacão da desindustrialização e da precarização dos trabalhadores. A exposição de estatísticas sobre as vitórias contra o desemprego não bastam. Hoje importa mais a redução da jornada de labor para conviver com a família e os filhos, na dimensão da reprodução social, do que a produção econômica em si. Afinal, o coração se nutre de afetos para alcançar a felicidade que merecem as criaturas de Deus.

É preciso combater o discurso demagógico de legitimação dos ajustes fiscais com vistas à abolição de aposentadorias, bens e indústrias públicas, salários e o negociado por sindicatos à revelia do legislado. A “austeridade” tem longa trajetória de servidão aos interesses das classes dominantes, amparados pela mídia corporativa para disfarçar a hecatombe, disseminar a pós-verdade e abrir o caminho ao fascismo. Para mais informações, consultar a A ordem do capital, de Clara E. Mattei.

4.

Compreende-se a força da agenda identitária anticapitalista: mulheres, pessoas negras, LGBTQIA+, indígenas, quilombolas. Empoderar a população por meio da participação cidadã é a condição para qualificar serviços/espaços republicanos e materializar o conceito de “soberania popular”. Wendy Brown revela as circunstâncias a que estamos sujeitos, sob a patrola do medo e também da ilusão conservadora que propõe um futuro para exaltar o passado idealizado. O desafio está em superar as contradições estruturais para aproximar o futuro do socialismo democrático – sem ódios ou muros.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.


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