Porto das Caixas

Sergio Sister, 1970, ecoline e crayon sobre papel, lápis e caneta hidrografica, 32x45 cm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ROBERTO NORITOMI*

Comentário sobre o filme de Paulo César Saraceni

Toda a esperança deve ser abandonada ao entrar no vilarejo de Porto das caixas. Paulo César Saraceni faz o alerta logo no começo de seu filme. O encontro entre Lúcio Cardoso e Oswaldo Goeldi, sob o olhar de Mário Carneiro e os acordes merencórios de Tom Jobim, não podia ser diferente. O travelling inicial desvela, na escuridão brumosa, os traços da imobilidade e do desalento. A vida coagulada para sempre nos utensílios e adornos enfileirados contra a parede gasta; a pequena e deserta estação de trem submersa nas sombras. A luz exígua mal acompanha aquele ser solitário, que caminha curvado ante o frio. Uma condenação pesa sobre ele.

Do porto, nada se vê, nem o rio. As ruínas cobertas de musgo e tomadas pelos arbustos são testemunhas de alguma bonança de dias idos. Agora Porto das caixas é um lugar caído do tempo, encerrado sobre si mesmo; estagnado, doentio como a água parada. Não há histórias, não há nomes. Não importa se algo aconteceu ou deixou de acontecer. As coisas se arrastam. O presente é um cativeiro sem justificativas ou perspectivas. Todos estão aprisionados na letargia. O trem passa periodicamente, mas nada se sucede. A estação opera no vazio. Aliás, tudo ali opera no vazio. Não se vê a engrenagem econômica nem a luta política. Aquilo já não é um dado da realidade. É um estado de espírito.

Imiscuído nessa modorra, vive um casal mísero e mal acertado. Ela sai furtivamente com o amante; ele é rudimentar e violento. A relação é ríspida, sem afeição. Mas não há culpa nem piedade; o julgamento moral está ausente. Não interessa saber o que os levou a essa deterioração. O fato, no entanto, é que algo de tenso ronda o casebre em que moram. O marido é a própria encarnação da fixidez; ele se confunde com o vilarejo e com aquele clima doentio. O amante também. A esposa, ao contrário, é a nota destoante. Ela anseia por liberdade e mudança. Seu intuito é romper o círculo e ir embora.

Numa ordem eminentemente masculina, patriarcal, aquela mulher desponta como figura ativa e altiva. Sua posição é de resistência e enfrentamento àqueles homens movidos pelo instinto e pela tradição. “Não sou de ninguém”, reitera ela diante das aspirações de posse que sofre por parte do marido e do amante. Esse desacordo ganha amplitude imagética numa cena da segunda sequência, quando, intimidada, a esposa se aproxima do marido e, impassível, crava o olhar contra o dele. Enquadrados face a face, ele desvia o olhar para baixo e se retira para a cozinha, como um exército em fuga, enquanto ela segue atrás e posta-se na porta, a observá-lo vitoriosa.

Essa postura de confrontação vai se repetir ao longo do filme, em cenas cujas “marcações” são dadas pelos deslocamentos da esposa dentro do campo visual.  No fundo, é ela quem arma e conduz a narrativa. O ponto de vista é sempre o dela. É ela quem faculta o prazer. E mesmo quando tentam submetê-la, pela violência, como nas duas cenas em que é estapeada, ela se recoloca diante da câmera e reassume o protagonismo. O gozo de seu corpo não lhe é tomado. Do mesmo modo, sua consciência é insubmissa; é ela que põe a questão fundamental e perturbadora para o marido (e para todo aquele mundo): “por que você não me deixa?”. Ante o apelo da razão, a investida bestial se insurge como resposta. Não fica a dúvida, com o marido, e com todos os demais, não há possibilidade de argumento. Somente à esposa cabe o controle das instâncias do desejo e da racionalidade.

E não havendo argumento, resta apenas o ato fatal, conclusivo e liberador, resultante da ira e do cálculo. Para ela não bastava fugir, era necessário romper em definitivo. Daí o recurso extremo ao machado, que lhe permitirá cortar pela raiz aquele jugo arcaico e decrépito. Num único golpe, o mais lacerante e ousado que a história do cinema brasileiro já vira até então, a mulher, não mais a esposa, abre seu caminho para a luz e para a vida pulsante. Seu destino é para fora, pois só há esperança ao se partir de Porto das caixas e daquela clausura sombria. E é nessa sequência derradeira, em que Irma Alvarez diz um inapelável “eu vou” e segue equilibrando-se sobre os trilhos, que Saraceni se desvencilha de Goeldi e de Lúcio Cardoso, e salta de um certo realismo poético para um cinema de nova matriz.

Porto das caixas foi um importante passo na construção do Cinema Novo, que trouxe, naquela primeira metade dos anos 1960, tantas outras figuras femininas fortes e inquietantes.

*Roberto Noritomi é doutor em sociologia da cultura pela USP

Referência

Porto das Caixas

Brasil, 1962, 115 minutos

Direção: Paulo César Saraceni

Elenco: Irma Álvarez, Reginaldo Faria, Paulo Padilha

Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=iDn_kBpn6yA

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Remy José Fontana Samuel Kilsztajn Anselm Jappe Denilson Cordeiro André Márcio Neves Soares André Singer Valerio Arcary Valerio Arcary Eduardo Borges Gilberto Lopes Fernão Pessoa Ramos Berenice Bento Jean Pierre Chauvin Alexandre Aragão de Albuquerque Tales Ab'Sáber Mariarosaria Fabris Antonino Infranca Eugênio Trivinho Walnice Nogueira Galvão Bernardo Ricupero João Feres Júnior Annateresa Fabris Elias Jabbour Marcelo Guimarães Lima Otaviano Helene Chico Whitaker Marcus Ianoni Gerson Almeida Chico Alencar Salem Nasser José Geraldo Couto Renato Dagnino Alysson Leandro Mascaro Ricardo Musse Alexandre de Freitas Barbosa Paulo Capel Narvai Marjorie C. Marona Eleutério F. S. Prado Dennis Oliveira Daniel Afonso da Silva Ricardo Fabbrini Juarez Guimarães Bruno Fabricio Alcebino da Silva Daniel Costa Marilena Chauí Benicio Viero Schmidt Luciano Nascimento Slavoj Žižek Francisco Fernandes Ladeira Vanderlei Tenório Lincoln Secco Lucas Fiaschetti Estevez Everaldo de Oliveira Andrade Paulo Sérgio Pinheiro Celso Favaretto Dênis de Moraes Marcos Silva Leonardo Avritzer Boaventura de Sousa Santos Vinício Carrilho Martinez Liszt Vieira Fábio Konder Comparato Leonardo Boff Michel Goulart da Silva Antonio Martins Luiz Bernardo Pericás Heraldo Campos José Micaelson Lacerda Morais Ronald León Núñez Kátia Gerab Baggio Manuel Domingos Neto José Costa Júnior Milton Pinheiro Osvaldo Coggiola Maria Rita Kehl Priscila Figueiredo Luiz Renato Martins Paulo Fernandes Silveira Luis Felipe Miguel Airton Paschoa Érico Andrade Bento Prado Jr. Andrés del Río Marcelo Módolo Flávio Aguiar Flávio R. Kothe Atilio A. Boron Armando Boito Michael Löwy Lorenzo Vitral Rubens Pinto Lyra Leonardo Sacramento Claudio Katz Rodrigo de Faria Henry Burnett João Sette Whitaker Ferreira Matheus Silveira de Souza Fernando Nogueira da Costa Julian Rodrigues Henri Acselrad Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Jean Marc Von Der Weid Sergio Amadeu da Silveira Igor Felippe Santos Ronaldo Tadeu de Souza Jorge Luiz Souto Maior Francisco Pereira de Farias José Raimundo Trindade Luiz Werneck Vianna Marilia Pacheco Fiorillo Luiz Roberto Alves Paulo Martins Thomas Piketty José Machado Moita Neto Carlos Tautz Plínio de Arruda Sampaio Jr. Marcos Aurélio da Silva Yuri Martins-Fontes Vladimir Safatle Caio Bugiato Ronald Rocha Francisco de Oliveira Barros Júnior João Carlos Loebens Eleonora Albano Manchetômetro Gilberto Maringoni Luiz Eduardo Soares Rafael R. Ioris Paulo Nogueira Batista Jr Andrew Korybko Luiz Marques Ladislau Dowbor Luís Fernando Vitagliano José Dirceu João Lanari Bo Eliziário Andrade Jorge Branco Sandra Bitencourt Antônio Sales Rios Neto Bruno Machado João Paulo Ayub Fonseca Ari Marcelo Solon Celso Frederico João Adolfo Hansen João Carlos Salles Luiz Carlos Bresser-Pereira Eugênio Bucci Alexandre de Lima Castro Tranjan Michael Roberts Tadeu Valadares Mário Maestri Daniel Brazil Ricardo Antunes José Luís Fiori Leda Maria Paulani Tarso Genro Gabriel Cohn Ricardo Abramovay Carla Teixeira Afrânio Catani

NOVAS PUBLICAÇÕES