Socialismo democrático

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Por JUAREZ GUIMARÃES*

As esquerdas brasileiras e a soberania popular: por um novo paradigma programático

O centro do programa da tradição neoliberal é a destruição da soberania popular e a transferência direta do exercício do poder de Estado, sem mediações, para as classes capitalistas tais como elas se apresentam na economia financeirizada e globalizada contemporânea. Este poder político, exercido de forma autocrática pelas classes capitalistas, tem exatamente como objetivo fundamental a destruíção dos direitos de cidadania das classes trabalhadoras.

Compreender esta centralidade é fundamental e decisivo para uma elaboração programática: o norte do programa anti-neoliberal é exatamente o da construção, para além de uma democracia liberal, de um poder de Estado fundamentado na soberania popular; são os direitos cidadãos das classes trabalhadoras que devem estar no centro da refundação da soberania popular.

Mas o que é mesmo o princípio da soberania popular? Qual é sua origem e seu sentido fundamental? Como ele se relaciona centralmente com a fundação do marxismo e da tradição do socialismo democrático? Como a tradição liberal historicamente lidou com este fundamento da soberania popular? Como avaliar a experiência do PT a partir do princípio da soberania popular? E como este princípio da soberania popular pode dar unidade e fornecer o sentido de um programa de futuro, de superação do processo de destruição em curso no Brasil?

Estas não são perguntas banais e a dificuldade histórica em respondê-las está no cerne das dificuldades das esquerdas contemporâneas e, em particular, do PT. Ao longo da história das grandes derrotas do século XX, está a negação do princípio da soberania popular (cristalizado na tradição stalinista) ou da adaptação liberal deste princípio (cristalizado nas várias tradições sociais-democratas). O cerne das razões que levaram às derrotas recentes das esquerdas brasileiras tem como centro a perda de referência deste fundamento democrático e republicano de poder, levando a uma sequência de adaptações programáticas, estratégicas, de alianças e de formas de governabilidade a uma democracia liberal profundamente limitada, condicionada e parcial. O golpe neoliberal de 2016 e o processo muito rápido de destruição da Constituição de 1988 que se seguiu veio exatamente destruir esta soberania popular limitada, condicionada e parcial, unificando uma vontade de construir um novo estado autocrático neoliberal no Brasil.

Assim, hoje no Brasil a disputa central é sobre a soberania do poder. O grau de sucesso das esquerdas em conquistar, através de sua capacidade de resistência e luta, a democratização do poder condiciona todo o programa de transformações que ela se propuser. Sem esta democratização do poder, todo governo estará inevitavelmente compelido a se adaptar, negociar e transigir com a nova ordem estatal neoliberal autocrática.

Origens e fundamentos da soberania popular

Compreender a origem da soberania popular é fundamental para desembaraça-la do mito de uma Modernidade escrita apologeticamente pelos liberais, que procuram associar a liberdade moderna e a própria noção de direitos presentes hoje nas democracias univocamente a esta tradição. Na verdade, na maior parte de sua história o liberalismo não aceitou o princípio da soberania popular e quando a incorporou, sob pressão, foi para relativizá-la e restringir de modo estrutural o seu alcance e âmbito democráticos. Uma análise do século XIX mostrará como o liberalismo, desde o princípio, confrontou o universalismo e o sentido democrático dos direitos humanos a partir de um viés classista, colonial, racista e patriarcal.

O conceito de soberania popular, que vai encontrar a sua primeira síntese parcial porque limitada aos homens e contra a cidadania das mulheres, na obra Do contrato social de Rousseau, é um momento decisivo de sistematização da tradição política do republicanismo democrático que funda a chamada Modernidade ocidental através das revoluções democráticas do século XVII inglês, das revoluções francesa e norte-americana do século XVIII. Nesta teoria, a liberdade é pública, depende da participação ativa dos cidadãos e se baseia em uma relação livre entre iguais do ponto de vista social, isto é, estão completamente deslegitimadas a escravidão e a desigualdade estrutural. Só há república democrática quando os cidadãos decidem sobre as leis fundamentais que organizam o Estado e controlam o exercício do poder e a própria economia a partir do interesse público. Sem o princípio da soberania popular, ainda concebido em chave patriarcal em Rousseau, não há república e todo Estado será ilegítimo porque baseado principalmente na força e não no direito explicitamente acordado por quem se submete a ele.

Mas a sua origem vem decerto das tradições do republicanismo clássico greco-romano, em geral marcados por uma concepção elitista e não democrática de república, atualizado decisivamente no chamado humanismo cívico renascentista, em particular por Maquiavel.

Já na revolução inglesa do século XVII, John Milton havia defendido o direito de resistência contra regimes tirânicos ou usurpadores do poder, a liberdade de impressão e o sentido ascendente da legitimidade do poder, ou seja, a origem da legitimidade do poder não deveria ser concebida de cima para baixo mas associada à deliberação ou concessão em confiança pelos cidadãos. James Harrington, em Oceania, vincula a possibilidade da república à distribuição não concentrada da propriedade e propõe, além do rodízio na representação do poder com mandatos curtos, uma lei agrária que impedisse a concentração fundiária. Os niveladores, a ala esquerda desta revolução, associavam novos direitos, inclusive de ordem econômica, à extensão democrática do direito de voto, mas ainda sem incorporar as mulheres.

Um terceiro momento decisivo desta tradição foi, sem dúvida, a obra Reivindicação dos direitos das mulheres, de Mary Wollstonecraft, que faz a crítica radical dos limites da obra de Rousseau, reivindicando a plena liberdade das mulheres como cidadãs. Esta primeira grande filósofa do feminismo moderno era republicana democrática, frequentava os circuitos do radicalismo republicano inglês e participou da revolução francesa. Não se tratava de incorporar as mulheres à ordem patriarcal mas de por abaixo toda esta ordem, tal como se propusera fazer com o absolutismo monárquico, tanto na esfera pública como na esfera privada. Ela tinha consciência de que se tratava de uma revolução de tempos longos contra ordens de raízes patriarcais milenares.

Um quarto momento decisivo foi certamente o da revolução haitiana, com escravizados – chamados de jacobinos negros – proclamando a sua liberdade e fundando um novo Estado, duramente guerreado pelas potências ocidentais da época. É importante lembrar que a revolução norte-americana havia mantido a escravidão e que a revolução francesa havia decidido durante o período jacobino abolir a escravidão nas colônias, mas esta emancipação foi anulada no período termidoriano.

Um quinto momento decisivo desta tradição do republicanismo democrático está na obra de Thomas Paine, um inglês plebeu que foi o autor do panfleto mais importante da revolução norte-americana, atuou na revolução francesa e teve que se exilar da Inglaterra por querer lá fundar uma república. Em sua obra Os direitos do homem, o autor que era antirracista e tendencialmente feminista, defende já os fundamentos de um Estado Previdência que assegurasse políticas públicas distributivas aos pobres baseadas no imposto progressivo sobre os ricos. O historiador do movimento operário inglês, Thompson, considera este livro o fundador do moderno movimento socialista de seu país.

Marx, o socialismo democrático e a soberania popular

Durante todo o século XIX até o século XX depois da Segunda Guerra Mundial, quando foi aceito nas chamadas democracias liberais, o princípio da soberania popular foi duramente confrontado pelos liberalismos hegemônicos. Pelo argumento da renda ou de propriedade (que privava os trabalhadores do direito de voto), da educação (o argumento capacitário que eliminava da condição de cidadania ativa aqueles sem instrução), pelos preconceitos patriarcais (que não admitiam a cidadania das mulheres, consideradas mortas para o direito a ter direitos) e racistas (que admitiam o pleno direito de cidadania políticas apenas aos brancos). Mas mesmo no período do pós-guerra, como se verá, ele foi aceito com severas restrições, limites e condicionamentos, que buscavam mediar, limitar e, no limite, anular a vontade soberana popular.

De modo inverso, o conceito de soberania popular esteve sempre no centro da tradição do socialismo democrático, que atualizou o republicanismo democrático para a época da crítica ao liberalismo hegemônico, com sede na Inglaterra do século XIX, e à própria formação social do capitalismo. É a partir dele que Marx faz a crítica inicial do Estado prussiano, a defesa da liberdade de imprensa de um ponto de vista não liberal, que inscreve o direito à revolução como direito de resistência à opressão, que vai distinguir o socialismo democrático dos socialismos sectários ou autoritários que faziam a crítica do capitalismo não a partir de um ponto de vista da auto-emancipação. A própria crítica de Marx ao entendimento dos “direitos humanos” liberais, a partir do princípio da propriedade, não universalista e hierarquizado como supremo e organizador do acesso aos direitos, deve ser compreendida a partir do universalismo de Marx que tem sua raiz na soberania popular.

À diferença do republicanismo democrático do século XVIII, que continua a se manifestar no século XIX, inclusive misturando-se em vários contextos a liberalismos mais avançados, Marx pensa o desafio da formação das maiorias a partir do núcleo oprimido da sociedade de classes – o proletariado – e faz a crítica da economia política liberal, atualizando a crítica da desigualdade social a partir da crítica do capital. Não era mais possível conceber a igualdade social, fundamento da liberdade, apenas a partir de uma repartição da propriedade da terra mas sim fundando uma nova economia social democraticamente planejada. O conceito de humanidade que aparece nas tradições republicanas democráticas é atualizado para o internacionalismo proletário.

É neste sentido que nas revoluções de 1848 na Europa, Marx apresenta os comunistas como vanguarda da democracia, que chama a Comuna de Paris de uma “república social” e que nos comentários críticos ao Programa de Gotha estabelece a decisiva distinção entre sufrágio universal e soberania popular. O primeiro é necessário, mas não suficiente para estabelecer o segundo. Esta distinção marxista nos leva a pensar como o liberalismo democrático lidou com o princípio da soberania popular.

Liberalismo democrático e soberania popular

Há cinco maneiras, historicamente conformadas na tradição liberal, que relativizariam, limitariam e, no limite, neutralizariam o princípio da soberania popular no século XX. O que a tradição neoliberal faz, diferenciando-se fortemente do chamado liberalismo social ou keynesiano do pós-guerra que buscava compatibilizar e mediar os princípios liberais e a defesa da ordem capitalista com a aceitação de uma vigência formal da soberania popular, é atacar centralmente o fundamento da soberania popular e a tradição de direitos humanos, em especial do trabalho, a ela relacionados.

O primeiro deles – e fundamental – é separando o princípio da liberdade do princípio da igualdade que, no republicanismo democrático, apareciam mutuamente configurados. Isto se fez através da cisão liberal entre a liberdade política e a liberdade econômica, encaminhando a segunda para o reino da desigualdade genética e estrutural do capitalismo. No liberalismo democrático, o núcleo do poder do capital é preservado da soberania da política, concebido como esfera autônoma ou apenas regulada, mais ou menos, no seu exercício pelo Estado.

O segundo modo foi o de entender a sociedade moderna como fundamentalmente complexa e incapaz de auto-governo, através do chamado elitismo democrático. Este, nascido diretamente da chamada “teoria das elites”, que concebia o poder como ontologicamente sempre de dominação das elites, formulava a noção de que o cidadão comum não tem tempo, interesse ou capacidade para formar juízos equilibrados e, muito menos, decidir sobre a coisa pública. Daí deriva inevitavelmente um conceito de representação política que deixa de ser expressiva ou democraticamente controlada, e passa a ser de tipo autorizativo. Os “políticos”, concebidos como dotados de uma vocação própria e profissionalizados, deveriam ser os agentes ativos da política. Não deixa de ser paradoxal o fato de que esta linguagem elitista ter sido absorvida por muitas esquerdas, que empregam o termo “elites” para designar as classes dominantes, sem atentar que o contrário de elite é povo-massa, isto é, amorfo e sem autonomia política.

A terceira maneira deste liberalismo democrático neutralizar o princípio da soberania popular é através de um conceito de opinião pública formada no chamado “mercado de ideias”, de forma mais ou menos plural, de todo modo não dialogal ou discursivamente concebida de modo democrático. A formação do mass mídia moderno, das grandes redes privadas empresariais de comunicação, das pesquisas de opinião em que se afere a opinião individual, do próprio conceito de “formador de opinião”, revela que o cidadão comum foi posto em uma situação de não direito à voz pública, que é sempre o direito de falar e ser ouvido na democracia.

O quarto caminho de neutralização do princípio da soberania popular, já presente na formação das tradições norte-americanas é o da judicialização da democracia, isto é, a atribuição de um poder decisório supremo às instâncias jurídicas, preservadas de um controle democrático sobre o seu exercício e sua interpretação das leis. A concepção da democracia como estado de direito, sem o princípio vivo de legitimação de sua origem e de sua reprodução nas democracias, transfere para fóruns não eletivos a decisão suprema nas democracias.

Por fim, o quinto caminho de negação da soberania popular foi o fundamento patriarcal e racialista da formação do poder e de sua reprodução, nunca, de fato, plenamente superado nas democracias liberais. Estes modos de dominação patriarcal e racialista, sempre atualizados e renovados em suas combinações com a dominação do capital, são uma forma contemporânea de erodir o princípio da formação ativa e deliberativa das maiorias, que formam o núcleo do conceito de soberania popular. Neste sentido, não há como lutar hoje pela soberania popular sem colocar no centro um programa não apenas classista de defesa dos trabalhadores, mas também feminista e antirracista.

Soberania popular e economia do setor público

Neste contexto histórico de uma soberania popular limitada (no plano da economia), condicionada (pelas instituições liberais) e parcial (exercida em marcos constitucionais não sujeitos a uma atualização democrática a partir de sua fonte de origem), a forma por excelência deste liberalismo social ou keynesiano foi a chamada economia mista ou mix público-privado. Houve sempre uma disputa sobre o grau de estatização, sobre a regulação mercantil e, principalmente, sobre as dimensões distributivistas desta economia mista. Da mesma forma que colocou no centro o ataque à soberania popular, o neoliberalismo veio atacar o que havia de dimensões pública desta economia, seus setores estatizados e seus princípios de regulação, em uma dinâmica aberta de financeirização mundial.

O princípio socialista democrático da soberania popular, de modo alternativo e crítico, põe no centro a noção de economia pública, do setor público hegemônico, ou republicana democrática. É a partir desta hegemonia do público que se pode, de modo coerente, disputar com o liberalismo e seus modos de reprodução do capital um novo princípio hegemônico de civilização. Isto é, como afirma Gramsci, na disputa de qual economia as classes trabalhadoras formulam contra o núcleo da dominação capitalista, formulada e legitimada como paradigmática ou natural, um novo princípio de liberdade, de igualdade e de fraternidade social. É através dele que se põe um freio à dinâmica destrutiva da economia da predação que alimenta o mundo mercantil e sua dinâmica de ir subordinando cada vez mais o valor de uso ao valor de troca. Este fundamento público da economia é o caminho necessário para os sindicatos escaparem das culturas corporativas, estatais ou de mercado, que dividem, segmentam e fecham o caminho para uma disputa orgânica da construção de uma nova hegemonia socialista democrática.

Esta concepção de economia do setor público hegemônico ou de economia republicana não deveria ser confundida com um conceito social-democrata de economia, ou de economia do bem-estar, cujos limites derivam exatamente de não conseguir superar as dimensões estruturantes da economia capitalista liberal. Ela poderia ser formulada em seis dimensões, mutuamente configuradas.

A primeira delas é a questão da democracia, isto é, de ser auto-governada pelas formas institucionalizadas e reguladas pela soberania popular. Neste sentido, ela não se confunde nem com a planificação centralizada burocraticamente nem com a noção de “socialismo de mercado”. Ela se inicia na luta pela democracia no local de trabalho, pelo controle e regulação democrática das empresas públicas, fundamental no sentido de se evitar a corrupção sistêmica, e se conclui pelo planejamento democrático das prioridades da economia e da aplicação do orçamento público.

A segunda dimensão é a questão central e decisiva da propriedade. A tradição do republicanismo democrático e, mais ainda, aquela do socialismo democrático fundada por Marx, colocam os desafios muito além de uma perspectiva distributivista, da divisão dos ganhos do capital e dos trabalhadores. Uma economia formada por monopólios ou oligopólios capitalistas jamais poderá se compatibilizar com uma economia pública. Não é possível sequer regulá-las de um ponto de vista público, pois quem detém a propriedade do capital – na indústria, na finança, na propriedade agrária, no comércio – detém a direção da economia. As tradições operárias e do socialismo democrático vieram, ao longo do tempo, formulando e experimentando desde seus inícios um conjunto de formas coletivas e democráticas de gestão da propriedade – cooperativas, auto-gestão, conselhos diretivos com participação dos produtores, propriedades estatais com controle democrático, fundos públicos de gestão compartilhada – que deveriam ser recuperadas e atualizadas para uma economia do setor público.

A terceira dimensão é a questão de uma economia feminista. Trata-se de fazer a crítica aos limites dos Estados do bem-estar patriarcais – que se organizam com base no provedor masculino e privatizam toda a economia da reprodução social, jogando sobre as mulheres sua responsabilidade –, propondo alternativamente que toda a escala da reprodução social seja formulada a partir do princípio da liberdade e da igualdade feminista.

A quarta dimensão é a superação, em particular para os casos de Estados que vêm de uma história colonial, de dinâmicas de opressão e desigualdade que estão inscritas em geral nas dinâmicas mercantis prevalecentes. Nestes países, a chamada integração dos negros e dos não brancos na sociedade de classes sempre foi de ordem parcial, predatória e combinada com dinâmicas de barbárie. Integrando estes setores majoritários no cerne da soberania popular, as formas econômicas do setor público seriam, por excelência, o espaço de um novo protagonismo criativo dos não brancos.

A quinta dimensão essencial de uma economia hegemonizada pelo setor público é a construção de um sistema nacional de inovação que produza ciência, a partir das prioridades sociais definidas, e formule uma apropriação para fins públicos destas inovações. O controle da ciência pelo capitalismo, acompanhando os ciclos de destruição e inovação, reproduzem a cada período histórico dinâmicas de desigualdade social, bélicas e de predação da natureza.

A sexta dimensão fundamental de uma economia do setor público hegemônica é um processo amplo e universal de desmercantilização dos bens e serviços necessários a uma vida digna e culturalmente rica, a partir de uma alavancagem de um sistema tributário progressivo, que iniba desde o direito à herança até os ganhos especulativos, passando pela escala do imposto sobre a renda, sobre os lucros e sobre o rentismo.

A dinâmica de lutas parciais e por reformas, condicionadas pelo legado e pela correlação de forças políticas a cada momento, deve ser combinada com esta lógica de economia do setor público, compatível com a construção de uma identidade socialista democrática e com a a cumulação de forças de uma frente de esquerda. Em um mesmo sentido, tais lutas se inserem no contexto internacional, reproduzindo nas lutas de solidariedades entre os trabalhadores e nor organismos multilaterais estes princípios.

Um novo paradigma programático

É possível, então, a partir deste desenvolvimento conceitual, em torno à relação entre socialismo democrático, soberania popular e economia do setor público hegemônico, fazer um balanço dos limites programáticos do PT nas últimas décadas, desde 1989. O que houve foi um duplo e combinado processo de adaptação e redução programática, de um lado, adaptando-se à disputa de poder dentro dos limites do Estado liberal saído da transição democrática limitada pela dominância dos liberais conservadores, e, de outro, aos padrões oligopolistas do capitalismo brasileiro. A luta pela inclusão e expansão dos direitos deu-se fundamentalmente no campo distributivo, com um processo de acumulação de forças predominantemente eleitoral e de um horizonte da construção de uma economia mista.

Estes limites históricos e estruturais dos programas petistas são importantes para balizar o ineditismo, a magnitude, a importancia histórica decisiva das transformações do país conquistadas pelos governos Lula e pelos governos Dilma. Eles não negam ou sequer relativizam estas conquistas. Antes, inscrevem-nas no horizonte de fundação e de perspectivas socialistas democráticas do PT. O golpe neoliberal, aprofundado no governo Bolsonaro, veio exatamente quebrar esta dinâmica de soberania popular parcial e limitada, de economia mista disputada, de um construção progressiva mas desigual de direitos públicos.

É preciso, então, formar um novo paradigma programático– não apenas para o PT mas para as esquerdas brasileiras – que integre em um plano coerente a luta pela soberania popular, a construção de uma economia pública e a luta pelos valores do socialismo democrático. A base social deste programa é a imensa maioria da população, no que ela converge no interesse público, em suas diferenças e em suas esperanças. Ele pode ser o norte de um novo protagonismo das classes trabalhadores e das classes médias progressistas, de um novo ciclo de auto-organização – mais classista e, agora, mais negro, mais feminista – do povo brasileiro. E pode ser a base de um relançamento de um novo internacionalismo, que se proponha a unificar politicamente as classes trabalhadoras e os povos latino-americanos, com base em novos processos históricos de democratização profunda do poder político, de novas paradigmas econômicos e de novos valores de civilização.

* Juarez Guimarães é professor de Ciência Política na UFMG. Autor, entre outros livros, de Risco e futuro da democracia brasileira (Fundação Perseu Abramo).

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