Sérgio Ricardo: A hora do bacurau

Antonio Lizárraga (Jornal de Resenhas)
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Por PEDRO ALEXANDRE SANCHES*

Comentário sobra a obra do músico e cineasta.

Sérgio Ricardo (1932-2020) desfrutou de um pique discreto de revalorização no ano passado, quando sua música “Bichos da Noite” (1967) foi incluída na trilha sonora do filme Bacurau. Entoada pelo elenco em procissão pelas ruas do vilarejo de Bacurau, a densa canção do compositor paulista (de Marília), mais que mero fundo musical, faz-se uma das almas do filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. “São muitas horas da noite/ são horas do bacurau”, começa a canção de meia-noite composta para a peça teatral O Coronel de Macambira (1967) e provável origem para o batismo da cidade nordestina fictícia do filme de revolta e rebelião noturna de Mendonça e Dornelles.

Bacurau fez lembrar uma das grandes qualidades de Sérgio Ricardo, o modo como ele entrelaçou harmoniosamente os ofícios da música e do cinema. Os motoqueiros do filme, também presentes em A Noite do Espantalho (concebido e dirigido por Sérgio em 1973), configuram um de muitos indícios presentes em Bacurau, pródigo em alegorizar várias produções do cinema novo, de Glauber Rocha e outros. Glauber, por sinal, foi outro mestre da harmonia música-cinema, em especial quando deu a Sérgio o encargo de elaborar a (forte e árida) trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), transformada também em disco histórico todo interpretado pelo autor.

Sérgio estreou em disco em 1957, dois anos antes do advento da bossa nova e quatro anos antes de se lançar também como diretor de cinema, com o curta-metragem Menino da calça branca (1961). O primeiro LP, Dançante nº 1 (1958), era apenas instrumental, com o músico tocando ao piano músicas próprias, standards e “Tarde Triste”, da novata Maysa, uma das primeiras a gravar uma canção dele (“Bouquet de Izabel”, também de 1958).

Os dois discos seguintes, Não gosto mais de mim – A bossa romântica de Sérgio Ricardo (1960) e Depois do amor (1961, sem canções autorais), apresentaram o Sérgio Ricardo cantor, ainda longe de definir um estilo próprio e muito decalcado na bossa nova e na interpretação de João Gilberto (que seria seu amigo próximo ao longo da vida). Para sempre Sérgio seguiria como um membro errático da bossa nova, nunca totalmente dentro dela, nunca totalmente fora.

O provável único momento destoante das canções de amor dessa primeira etapa se tornaria exemplar da fibra que o artista desenvolveria nos anos seguintes: “Zelão” foi a primeira canção de protesto dos anos 1960, quando ninguém pensava ainda batizar um gênero como música de protesto. “Todo o morro entendeu quando Zelão chorou/ ninguém riu nem brincou e era carnaval/ (…) choveu, choveu/ a chuva jogou seu barraco no chão/ nem foi possível salvar violão/ que acompanhou morro abaixo a canção/ das coisas todas que a chuva levou”, dizia a canção que demarcava a indignação contra o processo de favelização do Brasil. Essa seria, daí em diante, outra das características distintivas da obra de Sérgio Ricardo, que no futuro iria viver, ele mesmo, no morro carioca do Vidigal.

Gravado no mitológico selo Elenco, o próximo LP, Um Sr. Talento (1963), consolidava a identidade musical e ideológica de SR e agrupava canções cinematográficas como “Barravento”, “Enquanto a Tristeza Não Vem”, “A Fábrica”, “Menino da Calça Branca” e “Esse Mundo É Meu”. Essa última batizaria o primeiro longa-metragem dirigido por Sérgio, lançado em 1964 (também em disco), como o filme Deus e o Diabo.

Esse mundo é meu, o filme, fez-se uma das peças inaugurais do cinema novo e consolidou a linha combativa da obra do artista, fosse no cinema, fosse na música. Hoje menos badalado que outros filmes do movimento, Esse mundo é meu foi influente em seu tempo: a linda cena do casal protagonista na roda-gigante é inspiradora mais que provável para Gilberto Gil na construção de sua canção mais cinematográfica, “Domingo no Parque” (1967).

Sérgio concorreu com Gil no festival da Record de 1967, com “Beto Bom de Bola”, que foi feericamente vaiada pela plateia e motivou outro momento-síntese de “Sérgio Ricardo”, esse de natureza estigmatizante. Foi quando o violão de Zelão, em vez de ser levado pela chuva, foi espatifado no chão do auditório por seu dono. A cena completa está eternizada no documentário Uma Noite em 67 (2010), de Renato Terra e Ricardo Calil, que conta também com depoimento inédito do músico. Sérgio escreveria um excelente livro (não só) em torno do episódio, Quem quebrou meu violão – Uma análise da cultura brasileira nas décadas de 40 a 90 (1991), no qual denuncia o clima de competição e egos nos bastidores do festival.

Como acontece de novo agora com uma infinidade de artistas, a ditadura civil-militar de 1964 turvou a obra musical e cinematográfica de Sérgio Ricardo, algo já impresso simbolicamente nas imagens de quebra do violão. Juliana do Amor Perdido (1968) e A Noite do Espantalho (1973), de natureza crescentemente underground, seriam os últimos filmes em longa-metragem de sua história, não fosse um retorno tardio em 2018, com Bandeira de Retalhos.

O cerco se fechou também na música: a perseguição pela censura oficial se intensificou nos bravos e hoje pouco difundidos A grande música de Sérgio Ricardo (1967, o disco que contém a canção de Bacurau e capa de Ziraldo) e Arrebentação (1971). SR não arrefecia nas convicções político-sociais sempre progressistas, característica que conservou intacta até morrer.

Na capa do LP Sérgio Ricardo de 1973, o artista inseriu uma tarja branca na própria boca, em foto extraída do incidente de 1967. A música de abertura, “Calabouço”, era batizada com o nome do restaurante carioca onde o jovem estudante Edson Luís de Lima Souto, assassinado em 1968 por policiais militares (qualquer semelhança com os dias de Marielle Franco não é mera coincidência). “Cala a boca, moço”, jogava “Calabouço”, irmã mais enfezada da “Cala Boca Bárbara” e da peça Calabar (1973), do amigo Chico Buarque.

A trilha sonora d’A Noite do Espantalho veio à tona em 1974, com os novatos pernambucanos Alceu Valença e Geraldo Azevedo como intérpretes (além de atores do filme). Sérgio deu outro grito lancinante na trilha do infantil Sítio do Picapau Amarelo (1977), com o tema da boneca Emília, que compôs e cantou com alegria “por mais que o sol se esconda e cruzes se cravem no raiar do dia”. “Pobre de mim, Emília, me traga uma notícia boa”, pedia, certamente ciente de que as boas notícias ainda tardariam a se apresentar.

Sérgio Ricardo seguiu seu caminho com discrição, muitas vezes invisível, meio por temperamento próprio, meio por silencioso boicote midiático. Lançou mais meros seis álbuns nos últimos 45 anos, entre eles o belo e maduro Ponto de partida (2008). Morreu quando vivia na calada da noite, entre os bichos do bacurau.

Pedro Alexandre Sanches, jornalista e crítico musical, é autor, entre outros livros, de Tropicalismo – decadência bonita do samba (Boitempo).

Publicado originalmente no site da revista Carta capital [embutir link] https://farofafa.cartacapital.com.br/2020/07/23/a-hora-do-bacurau-sergio-ricardo/

 

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