Por Alexandre Aragão de Albuquerque*
Com a pandemia, aposta imoral feita pelo capitão segue as lições do príncipe ditador de Maquiavel
Pelé foi um lulista de carteirinha, até embaixo d’água. Guardador (caseiro) de uma magnífica residência de praia de um gerente regional do BRADESCO. Além do mais, é excelente pedreiro, exigente no trato do seu ofício. Nesses dias, por conta da pandemia, eu e minha esposa resolvemos passar algumas semanas na praia para respirarmos ar puro, tomar uns banhos de mar, distanciar-nos da aglomeração e da neurose citadina que se abateu nos últimos tempos sobre muitos. Assim que lá chegamos ocorreu uma primeira bronca: a bomba hidráulica não estava puxando a água do poço para encher nossa caixa d’água. Imediatamente telefonei para Pelé. Ele, com sua costumeira prontidão, chegou em segundos e resolveu tudo rapidamente. Por fim, fomos conversar um pouco sobre política. Qual foi minha a surpresa: Pelé havia se tornado um bolsonarista. Qual o motivo? O auxílio emergencial de R$600,00 (seiscentos reais) recheando seus bolsos. Bolsonaro, por mera “fortuna”, está para se transformar na mais nova edição do “pai dos pobres”.
A socióloga Esther Solano, em sua pesquisa qualitativa “Bolsonarismo em crise?”, já havia chamado atenção para algumas características e motivos que levaram os eleitores da classe popular em 2018 a votar na direita, na busca desesperada de ver atendidas suas demandas. Entre os motivos elencados pela professora está o conceito de abandono, baseado na ideia de que os pobres têm de ser abandonados pela classe política no seu conjunto. Os pesquisados apresentaram uma percepção generalizada de que a classe política, além de corrupta, é elitizada e fisiológica, preocupada apenas com seus interesses. Além disso, pela guerra híbrida desencadeada desde 2013, a mídia hegemônica, capitaneada pela Rede Globo, por uma onda sistemática de rotulação, construiu no imaginário social a ideia de o Partido dos Trabalhadores (PT) ser o partido corrupto por exclusividade no Brasil.
Somou-se a isso outro movimento de criminalização midiática, o das pautas identitárias, apresentando-as de uma forma agressiva e caricata como sendo contrárias à família e aos costumes tradicionais, identificando assim as esquerdas e os movimentos sociais como segmentos ligados à bagunça e à desordem. Por fim, em cima do discurso do açodamento da segurança (violência) militar, completava-se o arcabouço ideológico que levou o bolsonarismo ao poder. Entre outras coisas, foi com essa programação (software) que os golpistas criaram a mentalidade de colmeia (vide https://aterraeredonda.com.br/mentes-de-colmeia/), dando andamento à segunda fase do Golpe de 2016, elegendo em 2018, de forma manipulada por Moro e companhia, um representante da extrema-direita à presidência do Brasil. É o momento onde estamos.
A longa entrevista publicada no último domingo, 09, com o professor de ciência política André Singer, porta-voz da Presidência da República no governo Lula, precisa ser agregada a análise realizada por Solano, em virtude de apresentar um dado de sensível relevância, já há algum tempo detectado por nós empiricamente, como aqui exemplificado no início deste artigo pela mudança de atitude do ex-lulista, o pedreiro Pelé. O fenômeno da triplicação do auxílio emergencial, por parte do Congresso Nacional, transformando os míseros R$200,00 (duzentos reais), propostos por Bolsonaro, em R$600,00 (seiscentos reais), possibilitou ao capitão beneficiar-se politicamente desta “fortuna”, uma vez que a distribuição se deu pelas agências operadoras do poder executivo (CAIXA ECONÔMICA), gerando em amplos segmentos da população de baixa renda uma identificação automática do benefício com sendo uma ação do governo federal.
Singer adverte que “a mecânica do auxílio emergencial de R$600,00 (seiscentos reais) mensais fez com que as pessoas tivessem de abrir mão do Bolsa Família”, um dos programas lulistas exitosos de combate à miséria. A partir dessa constatação, o governo atual começou uma estratégia para fazer com que as pessoas não mais retornem ao Bolsa Família e ingressem diretamente no seu programa Renda Brasil. Nesse caso, a pandemia criou uma “fortuna” (em sentido maquiaveliano) inesperada, favorecendo positivamente o avanço do bolsonarismo nas camadas populares, principalmente na Região Nordeste do Brasil.
Como já tivemos a oportunidade de analisar em diversos artigos passados, em seu âmago o conceito de guerra híbrida contempla a ideia de “caos organizado”. Como os hackers nos ensinam todos os dias, demonstrado de forma exemplar pelo filme Matrix, a forma mais eficaz para modificar um software é colocar um vírus no programa. Um vírus foi inoculado no sistema político brasileiro desde os movimentos de rua de 2013, passando pelas propagandas anticorrupção do Jornal Nacional, tendo à frente os atores globais Moro e Dallagnol, consumando-se com a derrubada do governo de Dilma Rousseff em 2016, a quebra de multinacionais brasileiras e a prisão imoral do Presidente Lula em 2018, para viabilizar a chegada ao poder da extrema-direita. A função do sistema viral é contaminar os indivíduos trabalhando “ocultamente (ideologicamente)” para modificar o seu sentimento político e os levarem a propagar sua revolta em manifestações de rua e em redes digitais com o intuito de causar uma “epidemia política” capaz de derrubar o “establishment”, ou seja, a ordem constitucional democrática.
O cientista político Adam Przeworski, em seu livro “Crises de Democracia”, denomina de “autoritarismo furtivo” ao processo de golpe que se dá de forma não convencional, dentro do processo legal, de maneira contínua e pouco perceptível, cujo resultado é o deslizamento da democracia para a ditadura, sem que a sociedade perceba o que está acontecendo, porque, aparentemente, as instituições democráticas continuam funcionando, só que sempre mais de fachada. A condução desse processo de ditadurização parte de atos do Executivo, como estamos cansados de ver, desde que Bolsonaro tomou posse, com suas declarações e manifestações de bolsonaristas pedindo a volta do AI-5, o fechamento do Congresso e do STF. Tudo isso sem que os Poderes Legislativo e Judiciário lhe façam o devido impedimento político-jurídico, por essas reiteradas posturas anticonstitucionais adotadas publicamente.
Com a pandemia, aposta imoral feita pelo capitão segue as lições do príncipe ditador de Maquiavel. O que te tiver de fazer faça-o logo e certeiramente, e se for preciso agredir uma minoria para agradar uma maioria, não pense duas vezes. Assim, entre as centenas de milhares de óbitos pela Covid-19 (hoje já são mais de 100 mil no Brasil) e as dezenas de milhões de desempregados e subempregados sem renda, ele fez a opção pelo segundo grupo, construindo ideológica e midiaticamente uma oposição excludente entre ambos os grupos. E agora, pela inesperada “fortuna” dos R$ 600,00 (seiscentos reais), está buscando colher os resultados de sua estratégia maquiaveliana. Se a oposição não compreender o movimento deste alvo, não terá condições de atingi-lo de forma certeira. O pedreiro Pelé não compreendeu: de lulista tornou-se eleitor de Bolsonaro.
*Alexandre Aragão de Albuquerque é mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (UECE)