Por LUCIANO NASCIMENTO*
O investimento planejado em práticas educativas comunicacionais transculturais se erige a partir do olhar que entende saber e poder como resultado de múltiplas construções discursivas
Xenofobia, BLM (Black LivesMatter), revisionismo histórico, politicamente correto, antiglobalismo, desenvolvimento sustentável, teologia da prosperidade, lugar de fala… Um dos efeitos mais pujantes da interconectividade instantânea promovida pelos constantes avanços nas tecnologias de comunicação neste começo de século é o desnudamento do campo de batalhas discursivas em que boa parte da humanidade se vê imersa. E “campo de batalhas” não é uma metáfora usada aqui ao acaso: vivemos de fato um tempo muito conflituoso; querer preservar a ingenuidade não é uma atitude sábia.
Todas as expressões evocadas na abertura deste texto são rótulos discursivos, e, como diz M. Foucault,“[…] o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (in: A ordem do discurso). Assim sendo, não é difícil concordar: a figura e o fundo de incontáveis conflitos atuais mundo afora são precisamente o discurso, o poder de (re)criar e (re)moldar interpretações desses mundos, poder que já há tempos reduz os interesses locais, individuais ou corporativos, a perfumaria no teatro dos vampiros do grande capital financeiro transnacional (especulativo, sobre todas as coisas).
Diante de tal poder, é preciso abandonar a inocência e assumir que, a exemplo de algumas artes marciais, deve-se usar a força do inimigo contra ele próprio. Ou seja: só discursivamente – stricto sensu – o campo progressista encontrará alguma eficácia no combate ao opressor. Como? Tenho uma proposta: com empatia e investimento em práticas educativas comunicacionais transculturais.
A empatia
Há alguns dias li no noticiário que um filhote de orca havia encalhado numa praia da Bahia. Algumas pessoas se dispuseram a tentar salvá-lo, fazendo grande esforço para levá-lo de volta ao mar. Logo perceberam que havia algo de errado com o animal: ele não esboçava reação, não se esforçava para se libertar. Parecia estar muito doente, hipótese confirmada pela equipe de profissionais que se juntou ao grupo no esforço de devolver o bicho à água. A tarefa não seria fácil, e câmeras flagraram o momento em que vários homens tentavam rolar o cetáceo, em vão. Ele realmente não reagia e, por já estar em sofrimento extremo, os profissionais realizaram a eutanásia.
Está claro que as pessoas empenhadas em salvar o filhote de orca foram empáticas. Desde a primeira que se aproximou dele até o veterinário (ou biólogo…) que abreviou sua morte, todos foram solidários com o bicho, se colocaram no lugar dele e, quando ficou evidente que sua morte era certa, alguém habilitado para isso se encarregou de fazê-la chegar logo.
Essa concepção prosaica de empatia não é suficiente para combater com eficácia o gregarismo obscurantista (religioso, miliciano ou qualquer outro), o neofascismo, a necropolítica, muito menos o ultraliberalismo em que estamos encalhados. Para lutar com sucesso contra esses gigantes – que em nada lembram moinhos de vento inofensivos – é imprescindível entender e abraçar a empatia de uma forma um pouco mais profunda e radical. Voltemos às orcas.
Um dia um ser humano desalmado qualquer teve a ofuscante ideia de capturar uma orca e expô-la num aquário para o deleite de outros seres humanos, indiferentes ao sofrimento do animal. Anos depois, ele se rebela e, aproveitando-se do momento de distração de outro humano, ele o captura, leva-o para dentro d’água e o mutila e afoga diante de dezenas de pessoas impotentes, algumas delas ainda empunhando suas câmeras filmadoras. A lição dada por Tilikum, a orca macho que matou a treinadora Dawn Brancheau em 2010, é transparente: quando o homem adota a lei da selva (ou a do oceano), ele assume o risco de nem sempre ser o mais forte. Simples assim.
A empatia que serve ao campo progressista não pode ser revestida apenas do tipo de boa vontade (um tanto ingênua e paternalista) que tem quem se ombreia com meia dúzia de conhecidos para, diante do evento inusitado, tentar reconduzir uma orca ao mar. A empatia que serve ao campo progressista é aquela que não negligencia o fato de que, uma vez dentro d’água, é a orca que decidirá se o homem que divide com ela o mesmo espaço sobreviverá ou não.
Apoiar ONGs e projetos sociais, subir rashtags, lacrar nas redes, cancelar desafetos… tudo isso é válido, mas é também um pouco como estar a salvo, com os pés no chão, e empurrar um bebê orca doente para o mar aberto (“vai lá, bebê! vou te dar uma forcinha e depois, com o seu próprio esforço, você consegue sobreviver a redes de pesca industrial, a tubarões e a outras orcas famintas!”). [#SQN].Não há outra alternativa para quem se pensa progressista além de entender, de uma vez por todas, que estamos, sim!, todos num grande aquário (o planeta Terra) nadando mais ou menos calmamente com Tilikum (os milhões de miseráveis e martirizados em todos os continentes). Não podemos mais nos dar ao luxo de negligenciar o risco de que ele afinal se enfureça pra valer – e com toda razão, diga-se de passagem. Barbas ralas, madeixas desgrenhadas e camisas com estampa de Che Guevara não vão mantê-lo calmo por muito mais tempo. Urge agir de verdade!
Menos por medo, mais por empatia: como afirmei aqui neste site num texto anterior, “[Nós, brasileiros,] Vivemos num país racista, sexista, homofóbico e elitista: poucos de nós escapam ilesos a todos esses crivos […]”. Pensando o campo de batalhas discursivo por esse prisma, cada um de nós é, ao mesmo tempo, uma orca assassina, e outra, indefesa.
Educação comunicacional e transcultural
Vida e arte se imitam: o Coringa (protagonista que dá nome ao filme de Todd Phillips) é Tilikum; a subtração violenta ao afeto familiar, os maus tratos, a indiferença das pessoas, a negligência do Estado, a loucura latente cheia de pontas e pontos cegos…tudo isso vivido e represado ao longo de anos um dia rebenta em violência e caos. Provavelmente algo bastante parecido vai acontecer em relação ao planeta, que tem sido agredido há muito mais tempo. Já temos tido pequenas amostras de como será nosso Tilikum ambiental, o aquecimento global, o derretimento das geleiras, inundações na costa, desertificação no interior dos continentes, furacões, maremotos, milhões de mortos… Aí está uma articulação (dialética) de fatos e imagens que pode muito bem estar presente em aulas (presenciais ou a distância) de Literatura, Ciências, Geografia, Sociologia, Filosofia, ou, de preferência, em rodadas de conversas (conversas!) transdisciplinares sobre afeto, saúde mental, vida em sociedade… de preferência em ambientes menos inóspitos que salas de aula.
No teatro grego, Medeia (de Eurípedes) foi Tilikum contra a irresponsabilidade afetiva e o abandono parental – como discordar? –,mas na grande ópera brasileira a céu aberto, o cristo censurado de Joãozinho Trinta e a Kizomba de Martinho também o foram frente ao racismo (religioso ou não). Malcolm X e Lampião, cada um a seu modo, foram Tilikum, e com certeza há muito deles na força de Lunga (o cangaceiro queer do “Bacurau” de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles) contra a ameaça sociopata estrangeira. A resiliência de Mandela foi Tilikum, que, mesmo preso e praticamente incomunicável, liquidou a política oficial sul-africana de apartheid racial, dando rosto e corpo negros ao poder e à eloquência do discurso impossível de ser silenciado, exatamente como fará a memória de Marielle Franco diante dos milicianos assombrados.
Tilikum, meu “mascote retórico-dialético”, decerto não nasceu nem se tornou bom ou mau. Minutos antes do ataque fatal à treinadora, ele fez a alegria de centenas de pessoas, agindo exatamente como havia sido adestrado para agir, até decidir não mais cumprir o script que pretensiosamente lhe haviam imposto. Ficou evidente, então, que o poder de fato resulta de arranjos circunstanciais, é uma questão de oportunidade. É preciso considerar isso, e, no Brasil, pelo menos, as forças progressistas – institucionalizadas ou não – já passamos da hora de moldar nossas práticas educativas para a efetiva disseminação desse conhecimento realmente libertador.
Práticas educativas que privilegiam o diálogo, pressupõem a não hierarquização dos saberes e estimulam o raciocínio crítico das realidades sociais compõem, em síntese, aquilo que Paulo Freire há décadas chamou de educação para a libertação. Se, além disso tudo, essas práticas também valorizam e buscam utilizar os recursos midiáticos e tecnológicos constantemente atualizáveis de que se dispõe hoje em dia a fim de fomentar o trânsito de informações e de referências simbólicas, visando à melhor experiência possível de compartilhamento do comum (o conjunto universal de valores naturais, simbólicos e culturais, sensíveis e/ou inteligíveis, cf. Muniz Sodré ensina), temos, então, uma educação comunicacional transcultural.
Creio que, empiricamente, já haja embriões de iniciativas assim postas em prática, à espera de sistematização pedagógica – descrição pormenorizada e desenvolvimento de estratégias para aplicação delas ao ensino. Penso, por exemplo, no movimento dos estúdios Marvel em filmes como Pantera Negra, Capitã Marvel e nos dois últimos da série Vingadores (Guerra infinita e Ultimato). Esses títulos são perpassados, uns mais outros menos claramente, pelas questões racial e de gênero. Pode-se dizer que o afro futurismo emoldura Pantera Negra, algo que, me parece, não acontece com o feminismo em Capitã Marvel. Por outro lado, em Ultimato há mais de um momento em que personagens femininas assumem protagonismo absoluto. Interesse comercial? Sim. Mas também visão crítica e posicionamento político; logo, discursivo.
Também no carnaval das grandes escolas de samba do Rio de Janeiro, temos assistido, nos últimos anos, ao ressurgimento de uma tradição de grandes enredos e desfiles críticos ao status quo. Foi assim com o GRES Unidos do Tuiuti em 2018, quando a agremiação chegou ao 2º lugar na classificação geral, criticando a escravidão moderna (fomentada pelo ideário ultraliberal que mantém ativo o “cativeiro social”) com um samba-enredo antológico, lindos carros alegóricos e um destaque fantasiado de grande vampiro presidencial, em clara alusão a Michel Temer. Também foi assim com o GRES Estação Primeira de Mangueira em 2019, ano em que a escola foi campeã contando e cantando, em altíssono viés marxista, “a história que a história não conta”: “Brasil chegou a vez, de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”… Discurso.
Relembro ainda, por fim, mas não por menos emblemáticos, os protestos antirracistas contra o assassinato de George Floyd nos EUA; a atitude dos jogadores negros da NBA (que exigiram alterações em contratos de publicidade a fim de que a transmissão dos jogos desse maior visibilidade ao movimento BLM); o quilombismo que inspira inúmeros coletivos e instituições (privadas, inclusive) majoritariamente negros no Brasil, gerando renda e garantindo dignidade para milhares de pessoas; a dura reação de intelectuais negros e negras à crítica feita por Lilia Schwarcz ao recém-lançado álbum visual Black is king, de Beyoncé… Todas essas são manifestações sobretudo discursivas, isto é, são tomadas de posição oriundas de consciência crítica a respeito da dinâmica de forças que regem as relações sociais, políticas e econômicas em todo nosso aquário terrestre. Ao que parece, há muitos Tilikuns se rebelando por aí.
Não podemos dispersar o grupo; não podemos deixar o samba morrer. Devemos promover e espraiar a discussão acerca dessas temáticas a partir do cotejamento de fatos, imagens, eventos, textos…com notícias, memes, livros didáticos, letras de canção, textos teatrais, dados resultantes de pesquisas estatísticas etc., sem nunca negligenciar o pequeno aquário em que eventualmente se esteja: na escola, a disciplina, a série, o estrato socioeconômico dos alunos…; fora dela, o caráter do espaço no qual a atividade se dá, o perfil etário e o grau de escolarização do público… Sem nunca esquecer ou deixar esquecerem que nenhum aquário é o único possível.
Iniciativas como as citadas (a da Marvel, a de algumas escolas de samba do Rio, dos jogadores da NBA, de Beyoncé…) indiciam claramente a viabilidade de um combate discursivo deliberado contra a marcha avante do racismo, do fascismo, do ultraliberalismo, da necropolítica…mesmo que esse combate não receba tal rótulo epistemológico. No momento gravíssimo que vivemos, a teoria pode só nos balizar, e ceder espaço para que o afeto e a ação prática nos livrem da crescente banalização do mal (cf. Hannah Arendt) à nossa volta.
Para terminar, o investimento planejado em práticas educativas comunicacionais transculturais se erige a partir do olhar que entende saber e poder como resultado de múltiplas construções discursivas (coativas e constringentes, portanto, é Foucault quem diz) que deixam marcas nos tempos, nos espaços e nos sujeitos. É possível identificar tais marcas e confrontá-las. Para isso, tal investimento demanda, igualmente, a incorporação, por parte de seus agentes, de uma empatia sincera, chã e realista, que nos motiva inescapavelmente para a busca e a efetivação da libertação conjunta de nós todos, como pretendia Paulo Freire.
É, portanto, uma proposta tão difícil quanto urgente.
*Luciano Nascimento é doutor em Literaturas (UFSC) e professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico no Colégio Pedro II.