Autobiografia do Poeta-Escravo

Imagem: Elyeser Szturm, série Nós
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Comentário sobre o livro do cubano Juan Francisco Manzano

Não se tem notícia, no Brasil, de qualquer texto escrito por escravos. Conhecemos alguma música, pintura, escultura ou arquitetura feita por mãos negras, muitas vezes sob a ameaça da chibata. Mesmo considerando que a imensa maioria não sabia escrever, é razoável pensar que os primeiros alfabetizados narrassem suas histórias. Há poeta negros libertos e escritores descendentes de escravos (aliás, estão entre os maiores de nossa literatura), mas relatos coetâneos da escravidão, se houve, foram ocultados ou destruídos.

Em toda a América Latina, o único autor-escravo conhecido é o cubano Juan Francisco Manzano (1797-1854). Seus escritos foram traduzidos para o inglês em 1840, patrocinado por um grupo de abolicionistas britânicos. Nos Estados Unidos houve estímulo para que ex-escravos contassem suas histórias, e isso propiciou o surgimento de vários documentos históricos testemunhais, como o famoso 12 Anos de Escravidão, de Solomon Northup, adaptado para o cinema e laureado com o Oscar de melhor filme em 2014. Na América de colonização ibérica, isso não ocorreu.

Manzano foi traduzido entre nós pelo escritor Alex Castro. Num cuidadoso trabalho de pesquisa, o brasileiro viajou a Cuba para conhecer o manuscrito autógrafo, organizou as versões do texto-base, cotejou as interpretações existentes e fez duas recriações: uma tradução fiel, mantendo a grafia e sintaxe original, e uma transcriação em português contemporâneo, dentro da norma culta. É claro que a leitura desta segunda versão é a indicada para quem que ter um primeiro contato com a vida de Manzano, ficando a primeira para estudiosos que queiram se aprofundar na obra do pioneiro cubano.

Podemos afirmar que A Autobiografia do Poeta-Escravo (Hedra) é uma obra única, fundamental para entendermos melhor as relações escravagistas na América colonial. Conta com uma esclarecedora introdução do professor Ricardo Salles, fotografias, reproduções do manuscrito e um cuidadoso trabalho de pesquisa linguística, histórica e social empreendida por Alex Castro. Suas notas enriquecem a leitura com preciosos detalhes históricos, sociológicos e linguísticos.

Percebe-se, durante a leitura, o medo que Manzano tinha de ser censurado, de ver a sua obra desaparecer. Evita falar mal de seus senhores, e mesmo quando ele descreve os castigos terríveis, os açoites, as privações desumanas, culpa no máximo os feitores e capatazes, não os amos. Uma literatura de oprimido, que não consegue se desvencilhar do medo, e que mesmo assim revela um universo doloroso e sombrio, capaz de impressionar seus leitores quase dois séculos depois.

É doloroso perceber, em pleno século XXI, que os governantes da última nação a abolir a escravidão nas Américas (o Brasil) ainda aclamam os senhores e condenam os escravos. As políticas de reparação de danos (cotas), de igualdade étnica, de princípios basilares da democracia moderna, consagrados na Constituinte de 1988 e aprofundadas pelo primeiro governo de esquerda do país, em 2002, vão sendo desmontadas com velocidade crescente pelo governo genocida de Bolsonaro.

Ao colocar no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos uma figura sinistra e retrógrada como a evangélica Damares Alves, defensora de um dos projetos mais absurdos gestados nesse país que é o “Escola Sem Partido”, o atual desgoverno reafirmou seu compromisso com a discriminação racial, a perpetuação do racismo, o extermínio das nações indígenas e dos quilombolas, favorecendo descaradamente a exploração econômica de seus territórios ancestrais.

O horror que Manzano vivenciou em Cuba no século XIX se manifesta hoje com o massacre da população negra, dos jovens de periferia, dos abusos policiais em função da cor da pele. Os responsáveis pelo assassinato de Marielle Franco provavelmente já teriam sido presos se ela fosse uma branca de classe média. Mas era uma negra, como os jovens trucidados no massacre de Paraisópolis, como são os milhares de preteridos a vagas de trabalho por serem negros, como são os milhões de ofendidos diariamente pela arrogância supremacista de uma elite forjada numa sociedade escravocrata. Arrogância esta que é transmitida para a pequena burguesia branca que vê no racismo uma possibilidade de humilhara filha da empregada, que ousou tomar a vaga de seu filho numa universidade pública.

Mas voltemos ao poeta-escravo, antes que a desesperança turve nossa percepção da beleza. Aqui está o soneto mais famoso de Manzano, Meus Trinta Anos, pleno de significados. Diz a lenda que quando o declamou para uma plateia culta, provocou tanta emoção que motivou um movimento para comprar a sua liberdade.

Quando olho para o espaço percorrido
Desde meu berço, e todo meu progresso,
Estremeço e saúdo meu sucesso
Mais por terror que por amor movido.
Espanta-me o combate que eu, renhido
Sustentei contra a sorte vil e fria,
Se é que posso assim chamar a porfia
De um ser tão infeliz e malnascido.
Trinta anos há que estou vivo na terra.
Trinta anos há que, em gemedor estado,
Triste sina em todo lugar me assalta.
Mas nada é para mim a dura guerra,
Que em vão suspirar tenho suportado,
Se a comparo, oh Deus!, com o que me falta.
(Tradução: Pablo Zumarán)

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

Publicado originalmente no Fósforo, em 2015, atualizado e ampliado.

 

Referência


Juan Francisco Manzano. Autobiografia do poeta-escravo. Tradução: Alex Castro. São Paulo, Hedra, 224 págs.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Tarso Genro Mariarosaria Fabris Marcos Silva Heraldo Campos Mário Maestri Leda Maria Paulani Jorge Branco Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Renato Martins Liszt Vieira Vanderlei Tenório Igor Felippe Santos Ricardo Musse Yuri Martins-Fontes Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Leonardo Avritzer Sergio Amadeu da Silveira Ricardo Fabbrini João Feres Júnior Jean Pierre Chauvin Ronaldo Tadeu de Souza Dênis de Moraes Vinício Carrilho Martinez Daniel Afonso da Silva João Lanari Bo Leonardo Sacramento Plínio de Arruda Sampaio Jr. Elias Jabbour João Carlos Salles Ari Marcelo Solon Gilberto Maringoni Valerio Arcary Antônio Sales Rios Neto Afrânio Catani Otaviano Helene Francisco Fernandes Ladeira Chico Alencar Eleonora Albano Atilio A. Boron José Machado Moita Neto Leonardo Boff Luiz Bernardo Pericás Ronald León Núñez Luciano Nascimento Henry Burnett Alexandre Aragão de Albuquerque Slavoj Žižek José Dirceu Luís Fernando Vitagliano Antonino Infranca Denilson Cordeiro Eugênio Trivinho Caio Bugiato Armando Boito Luiz Werneck Vianna Renato Dagnino Tadeu Valadares Remy José Fontana Marcos Aurélio da Silva Michael Löwy Celso Favaretto Andrés del Río Marcelo Guimarães Lima Gabriel Cohn Lorenzo Vitral Paulo Sérgio Pinheiro Ricardo Antunes José Raimundo Trindade Everaldo de Oliveira Andrade Michel Goulart da Silva Manchetômetro Paulo Fernandes Silveira Priscila Figueiredo Marilena Chauí José Geraldo Couto Alexandre de Lima Castro Tranjan Osvaldo Coggiola Berenice Bento Michael Roberts André Márcio Neves Soares Eugênio Bucci Chico Whitaker Marilia Pacheco Fiorillo Bruno Fabricio Alcebino da Silva Eduardo Borges Bernardo Ricupero Luis Felipe Miguel Eleutério F. S. Prado Walnice Nogueira Galvão Francisco Pereira de Farias Marcus Ianoni Fernão Pessoa Ramos Henri Acselrad Samuel Kilsztajn Luiz Eduardo Soares Bento Prado Jr. Anselm Jappe Gilberto Lopes Lincoln Secco André Singer Salem Nasser Maria Rita Kehl Julian Rodrigues Bruno Machado Annateresa Fabris Manuel Domingos Neto Luiz Roberto Alves Sandra Bitencourt Flávio R. Kothe Juarez Guimarães Marjorie C. Marona João Carlos Loebens Benicio Viero Schmidt José Micaelson Lacerda Morais Tales Ab'Sáber Ladislau Dowbor Valerio Arcary Celso Frederico Lucas Fiaschetti Estevez Jorge Luiz Souto Maior Alexandre de Freitas Barbosa José Luís Fiori João Adolfo Hansen Carlos Tautz Jean Marc Von Der Weid Airton Paschoa Vladimir Safatle José Costa Júnior Rubens Pinto Lyra Milton Pinheiro Rodrigo de Faria Claudio Katz Boaventura de Sousa Santos Flávio Aguiar Gerson Almeida Andrew Korybko Thomas Piketty Paulo Nogueira Batista Jr Antonio Martins Luiz Marques Eliziário Andrade Alysson Leandro Mascaro Marcelo Módolo Daniel Costa Kátia Gerab Baggio Ricardo Abramovay Fábio Konder Comparato Fernando Nogueira da Costa Érico Andrade Dennis Oliveira Paulo Capel Narvai Paulo Martins João Paulo Ayub Fonseca João Sette Whitaker Ferreira Ronald Rocha Matheus Silveira de Souza Carla Teixeira Rafael R. Ioris Francisco de Oliveira Barros Júnior Daniel Brazil

NOVAS PUBLICAÇÕES