Protestantismo e catolicismo no Brasil

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Por RUBENS PINTO LYRA*

Diferenças e afinidades entre as duas doutrinas e práxis políticas

Protestantismo: doutrina e práxis política

O cristianismo, regra geral, é sempre identificado com as virtudes cardiais da caridade, do amor ao próximo, da busca da Justiça, da solidariedade com os pobres e os oprimidos, acompanhadas da denúncia da injustiça, do luxo, da ostentação, do egoísmo e da intolerância. Dessa forma, não são poucos, até hoje, se interrogam sobre as razões pelas quais uma parte expressiva do eleitorado cristão – no caso em análise, a maioria evangélica – pôde eleger para o cargo máximo da Republica em um candidato que, mesmo tendo fugido dos debates, nunca deixou de proclamar, alto e bom som, sua simpatia por regimes que torturaram, mataram ou perseguiram milhares de brasileiros.

Lembremos que Bolsonaro manifestou-se sadicamente, na votação do impeachment de Dilma Rousseff, tripudiando sobre o sofrimento experimentado pela ex-presidenta, no período em que esteve presa durante o regime militar. Ele o fez ao exaltar, na oportunidade, a figura do torturador de Dilma, o Coronel Brilhante Ustra – o que mais se destacou, durante a vigência da ditadura, nessa repulsiva prática.

O ex-capitão não escondeu suas posições sobre os direitos humanos, por ele sistematicamente criticados, nem disfarçou, em diferentes ocasiões, atitudes agressivamente machistas. E também externou concepções regressivas, em matéria social, ao defender a falsa alternativa entre diminuição de direitos sociais ou desemprego. Tais concepções e práticas “contrariam o que todo evangélico sabe ser o fragmento decisivo de um versículo áureo da Bíblia: Deus é amor. (I João 4;8). O discurso do ressentimento e do ódio políticos não é terrivelmente cristão” (MARTINS, 20019).

A perplexidade face à tão chocante escolha torna particularmente oportuno o estudo dos fatores psicossociais do voto depositado pelos evangélicos. Entendemos que os condicionamentos psicológicos, no que se refere a esses fiéis, não são estranhos à doutrina dos dois maiores ícones do protestantismo: Martinho Lutero e João Calvino – semelhantes, na questão em análise, a despeito de suas muitas diferenças doutrinárias. Esses teólogos enfatizam a impotência do individuo face aos insondáveis desígnios do Senhor. Para eles, apenas a vontade divina determina a vida das pessoas e dos acontecimentos históricos em curso.

Calvinistas e seguidores de Lutero – mas não apenas estes – transferiram para o plano político, nas eleições presidenciais de 2020, esse sentimento de submissão incondicional, em momento de crise e de desesperança. Eles acreditavam que somente um demiurgo poderia evitar a derrocada econômica e social – o “Mito” – tal como o Füher, na Alemanha, e o Duce, na Itália. Com efeito, para luteranos e calvinistas, mesmo o pior tirano não pode ser contestado: se governa, é porque Deus quer. Nas palavras de Lutero, citadas por Fromm: “Deus prefere agüentar a continuação de um governo, por pior que seja, do que deixar a ralé rebelar-se, não importa quão justificada ela se ache para fazê-lo” (FROMM: 1970, p.74).

Essa mesma visão fatalista, de forma ainda mais acentuada, está presente em Calvino para quem “os que vão para o Céu não o fazem, absolutamente, por seus méritos, assim como os condenados ao Inferno o são simplesmente porque Deus assim o quis. Salvação, ou condenação, são pré-determinações feitas antes de o homem nascer” (CALVINO:1928).

Tais concepções, que negam radicalmente a autonomia do indivíduo, abriram, nolens volens, o caminho para sua submissão às autoridades seculares – detentoras do poder de Estado. Estas, na atualidade, têm preponderantemente pautado suas políticas nos exclusivos interesses do capital. Elas visam à desconstrução do modelo social-democrata de Estado (o de Bem Estar Social) e sua substituição pelo “Estado mínimo”, mero instrumento da política neoliberal das classes dominantes.

As concepções supramencionadas se afinam especialmente com as mais destacadas igrejas evangélicas – entre elas, luteranas, presbiterianas, pentecostais ou neopentecostais – inspiradas na chamada Teologia da Prosperidade, que valoriza o sucesso material, o acúmulo de riqueza e soluções puramente individuais para os problemas sociais. Essa adequação nem sempre se dá de forma consciente.

Mesmo para os reformadores religiosos em comento teria sido inaceitável a idéia de que a vida do homem viria a transformar-se em meio em meio para alcançar fins econômicos. Na dicção de Fromm “Conquanto o seu modo de encarar as questões econômicas fosse tradicionalista, o destaque dado por Lutero à nulidade do indivíduo contrariava essa concepção, abrindo caminho para uma evolução em que o homem não só deveria obedecer às autoridades seculares, mas igualmente subordinar as suas vidas aos fins de realização econômica” (FROMM, 1970: p.75).

De forma similar, a evolução da doutrina calvinista põe em relevo a idéia do sucesso na vida secular ser sinal de salvação (1970, p.80), tema que mereceu a atenção de Max Weber como sendo um importante elo entre a doutrina de Calvino e o espírito do capitalismo. Michael Lowy, na sua obra A guerra dos deuses: religião e política na América Latina, identifica uma “afinidade eletiva” entre a ética calvinista e o espírito do capitalismo em oposição “à existência de uma aversão, ou resistência, básica e inconciliável, básica e irreconciliável por parte da Igreja Católica (e, provavelmente, também, por algumas denominações protestantes” (LOWY, 2000, p. 40).

Com efeito, a hegemonia das doutrinas calvinista e luterana não significa unanimidade. Existem vozes discordantes, ainda que rarefeitas, a exemplo do pastor e teólogo metodista Claudio de Oliveira Ribeiro. Inspirado na Teologia da Libertação, ele aponta para “a necessidade de identificação permanente do “fato maior” que caracteriza a conjuntura socioeconômica e política da atualidade: a “exclusão social”. Considera portanto a práxis política, voltada para a justiça social, intrínseca à evangelização (RIBEIRO:157-158).

Ao concluir esse tópico, fazemos questão de sublinhar que a critica aos aspectos fatalistas das doutrinas de Calvino e de Lutero não significa desconsiderar a contribuição histórica dada pelo protestantismo, nos seus primórdios, à luta pela liberdade de escolha religiosa e pela autonomia da Igreja perante quaisquer outros poderes. Apenas, o estudo dessa questão extrapolaria, e de muito, os objetivos desse trabalho.

Desdobramentos políticos

Nossa análise parte da dimensão política, intrínseca às teologias religiosas, evitando enfatizar, como determinantes, as contingências das ações dos religiosos na política. Interessa-nos, portanto, examinar os componentes político-ideológicos das ideologias de Lutero e de Calvino, que se tornaram hegemônicas em várias igrejas protestantes: boa parte das presbiterianas e batistas e na maioria das igrejas pentecostais e neopentecostais. 60% dos protestantes são evangélicos.

Os aspectos fatalistas da doutrina protestante favorecem a aceitação de teses conservadoras no campo da economia, da política e da religião, que tiveram conseqüências decisivas nas eleições presidenciais de 2018. Por isso, é induvidoso que o apoio dado ao candidato Bolsonoro pela Igreja Universal do Reino de Deus, do Bispo Edir Macedo; pela Internacional da Graça de Deus, do Missionário R. R. Soares e pela Assembleia Vitória em Cristo, do pastor Silas Malafaia, tenha sido de grande importância para a sua vitória.

Com efeito, pesquisa sobre o voto nas eleições presidenciais de 2018, concluiu que “o voto evangélico foi decisivo para a eleição de Bolsonaro”. Sua análise apontou empate técnico do voto de católicos e de evangélicos em Bolsonaro. Já no eleitorado evangélico, o ex-capitão obteve retumbante vitória: recebeu mais de 11 milhões de votos de diferença em relação ao candidato Fernando Haddad. Portanto, ela “foi suficiente para a abrir uma vantagem de pouco menos de 10 milhões de votos em favor de Bolsonaro” (ALVES:2020). Diga-se, en passant, que, Trump, nas eleições de 2020, também contou o apoio evangélico (90% destes, segundo pesquisa realizada pelo Instituto da Democracia/Sunday Press.

Voltando a Bolsonaro, ele recebeu apoio ostensivo, e reiteradamente confirmado, antes e após sua eleição, pela sua presença em eventos religiosos, ao lado das lideranças das igrejas, supramencionadas. Trabuco, reconhecido especialista no tema, destaca que pentencostais e neopetencostais “podem constituir uma base importante de apoio ao bolsonarismo, mas o núcleo ideológico de defesa do projeto cristofascista se encontra no neocalvinismo à brasileira, em especial, presbiterianos e batistas”. Seriam essas igrejas, majoritariamente brancas e de classe média, as mais identificadas com as políticas de austeridade, ou anti-trabalhistas, patrocinadas pelo governo Bolsonaro (2020).

É consabido que os líderes de igrejas evangélicas, já referidos, ostentam uma prática política clientelista, atuando na base da troca de favores e privilégios, através de concessões de emissoras de rádio, de empréstimos e de apoio a várias outras iniciativas, tais como a revogação de decisões relativas à lei do silêncio. O “toma lá, dá cá” chegou ao ponto de, no Rio de Janeiro, se atribuir a pastores evangélicos, no Rio de Janeiro, o privilégio da distribuição do Cheque–Cidadão, compondo um duplo clientelismo: o dos pastores, para o seu projeto político e dos beneficiários, para a Igreja (RAMOS E ZACARIAS, 2020).

Os fieis entendem que devem votar “em quem Deus mandar. O pastor dirá. Ele é a voz de Deus” (FREI BETTO, 2016). Essa atitude representa completa abdicação do exercício soberano do voto, comprometendo irremediavelmente a sua idoneidade. Nesse passo, não poucos líderes de igrejas evangélicas têm vislumbrado a possibilidade, até mesmo, de criação de um Estado evangélico (BARROS E ZACARIAS, 2020). O pastor de uma delas – o da Central Presbiteriana de Londrina – chegou a pedir explicitamente aos seus membros para assinarem o apoio à criação do novo partido de Bolsonaro, a Aliança pelo Brasil (PACHECO, 2020).

Os principais líderes pentecostais e neopentencostais usam abertamente a religião como instrumento de poder e na sua esteira, milhares de pastores que pretendem determinar, com o seu “conselho”, o voto de seus milhões de fieis. Conforme sintetiza o professor Tosi: “utilizam os meios de comunicação de massa, como grandes veículos de convencimento e de proselitismo. Esse movimento que está crescendo, assusta e preocupa: “é uma onda de fanatismo que promove um obscurantismo intolerante e regressivo contra a ciência, a filosofia, a liberdade de pensamento e pluralidade ideológica” ( 2020, p. 413).

Desvela-se, portanto, o “fio escondido” que associa aspectos econômicos e autoritários das doutrinas de Lutero e de Calvino, já analisados, às concepções de importantes setores evangélicos, apoiadores do capitão reformado.

O presidente militar, muito próximo desses setores, escolheu para o alto escalão de seu governo sete destacados líderes evangélicos, sendo cinco pastores: três calvinistas. Todos, cultores de posições regressivas, tanto no campo econômico quanto no dos costumes. São eles Onix Lorenzoni, Ministro da Cidadania; Benedito Aguiar Neto, Presidente da CAPES; Damares de Oliveira, Ministra dos Direitos Humanos; Sérgio Queiroz, Secretário de Desenvolvimento Social; Guilherme de Carvalho, Diretor de Promoção e Educação em Recursos Humanos (PACHECO, 2020); André Mendonça, Ministro da Justiça e de Segurança Pública e Milton Ribeiro, Ministro da Educação. Além do General Eduardo Ramos, freqüentador da Igreja Memorial Batista de Brasília, que assumiu a Secretaria de Governo (MAZZA: 2020).

A propósito, não há como deixar de registrar a insólita intermediação, para a nomeação de vários cargos do alto escalão do governo, de uma entidade chamada Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure). Com efeito, os integrantes da lista tríplice para o cargo de Defensor-Geral da União se submeteram, pasmem! a minucioso escrutínio dessa entidade: “Segundo um experiente defensor público federal, nunca se teve notícia de uma entidade sabatinar, um por um, os candidatos como se liderasse um processo de seleção. O fato de os candidatos, todos eles, terem aceito participar da sabatina de que veem a Anajure como um ator importante na escolha de Bolsonaro” (MAZZA, 2020).

Ainda segundo MAZZA: “Augusto Aras, em agosto do ano passado, quando tentava cacificar-se para ser Procurador Geral da República, depois de receber carta de princípios da Anajure, telefonou para o seu presidente, comprometendo-se, entre outros, que ‘o homossexual deve ter liberdade para tornar-se paciente em tratamento da cura gay’. Terapia proibida no Brasil, antes, portanto, de Aras referendar os princípios da Anajure” (2020).

O último dos Ministros nomeados por Bolsonaro, o pastor calvinista Milton Ribeiro, divulgou, em vídeo na internet, que os pais devem aplicar aos seus filhos castigos que provoquem dor e que o homem, assim ensina a Bíblia, é quem “aponta o caminho para onde a família vai” (MARTINS, 2020). Em outro vídeo, Ribeiro ataca as universidades com a delirante afirmação de que, orientadas pela filosofia do existencialismo, “favorecem a prática, totalmente sem limites, do sexo”. E se propõe a nelas restaurar a autoridade do professor (PODER 360:2020). A questão é tanto mais importante quanto pesquisas recentes mostram que prospera nos países menos desenvolvidos, especialmente no Brasil, a ideia de que “e preciso ser religioso para ter moralidade” (CALLIGARIS, 2020).

Já a relação entre ciência e fé religiosa pode ser exemplificada com o comportamento do Bispo Edir Macedo a respeito do Covid-19. Embasado em argumentação inacreditável, o considerou “inofensivo”, atribuindo o pânico a ele associado à “obra de Satanás” (BISPO, 2020). Subjaz a essa polêmica declaração os efeitos decorrentes do isolamento social, relacionados com o fechamento dos templos de sua igreja, digo empresa, que teve como conseqüência perda substancial da arrecadação do dízimo, e das contribuições milionárias dadas pelos seus fieis.

A importância dos aspectos econômicos na ideologia e na prática de igrejas evangélicas se traduz na busca frenética pelo crescimento de seu patrimônio e na riqueza acumulada pelos seus principais líderes. Mas não foi sempre assim. Essa mudança ocorreu com o surgimento da Teologia da Prosperidade, nos Estados Unidos. Ela ensina que o sinal principal da salvação é a riqueza e o progresso material: “é tácito, não está explícito, mas está implícito que a ideologia capitalista é assumida como se fosse um artigo de fé” (RAMOS E ZACARIAS, 2020).

Essa interrogação de Eric Fromm, feita há sessenta e cinco anos atrás, conserva plena atualidade: “Haverá maior sacrilégio do que ensinar a rezar para que Deus se torne um sócio de seus negócios, maior sacrilégio do que “vender” a religião com os métodos usados para a venda de sabonetes” (l955: p.163).

A estreita relação entre fé e mercado se traduziu no apoio de grande parte da liderança evangélica à candidatura de Bolsonaro, recém convertido à condição de paladino do capitalismo neoliberal, assim como o seu alinhamento a um puritanismo de restrições morais e culturais.

Conforme lembra Ghiardelli “a onda conservadora de costumes no Brasil tem a ver com o crescimento das igrejas pentecostais e neopentecostais. Bolsonaro é,em grande parte, a sua expressão. O atraso cultural desse movimento é um líquido no qual ele gosta de se banhar” (2020, p.78).

Esse atraso cultural se expressa no fundamentalismo que é “uma forma radical de integralismo. Significa que a religião oferece uma explicação integral do mundo, basta por si só para resolver todas as questões humanas: a fé fornece todas as questões que o ser humano precisa: sem necessidade de recorrer à razão; aliás, a racionalidade é vista como um perigo e uma ameaça para a fé que deve ser combatida”(TOSI:2020, p.401).

Destarte, muitos evangélicos cultivam uma “espiritualidade personalizada”, com um enfoque pragmático e utilitarista, com a expectativa de que sua fé e seu culto a Deus lhes cubram de benefícios, êxito empresarial e, até cura de enfermidades. Como se vê, há uma íntima relação entre neoliberalismo e moral conservadora. O lema adotado pela Igreja Universal “Pare de sofrer” é uma pregação muito colada à auto-ajuda. Nela, prevalece o “cada um por si” na busca da prosperidade, e consequentemente da Salvação, esperando-se que Deus ampare a todos, a todos que Nele acreditam.

Portanto, não é difícil identificar, na maioria dos evangélicos, uma combinação de fundamentalismo e hostilidade à ciência, associada a uma concepção de religião impregnada pelos valores centrados no individualismo e no mercado. Veja-se, a propósito, crítica contundente de Leonardo Boff: “Mais grave é o tipo de fé proclamada pelas igrejas neo-pentecostais, com suas televisões e programas multitudinários. Aí não se escuta nunca a mensagem do Reino do amor, da fraternidade e do perdão. Pregam não o Evangelho do Reino, mas o da prosperidade material. Nunca se ouve a palavra fundamental do Jesus histórico: ‘Felizes os pobres porque vosso é o Reino de Deus Aí de vós, ricos, porque já tendes vossa consolação’ (Lc. 6, 2024: 2020)”.

Mas há os que apostam na possibilidade da opção preferencial pelas pessoas, pela prática da caridade e da compaixão. Estes tendem a entrar em choque com a “opção preferencial pelo dinheiro”, o que produz “a “corrosão” de uma aliança que tem se revelado anti-social” (MARTINS, 2019). Diferentemente de Martins, Safatle considera não haver antagonismo na concepção e prática religiosa dos evangélicos tendo em vista que: “a vida contemporânea nos ensinou que individualismo e religiosidade, liberalismo e restrições religiosas dogmáticas, longe de serem antagônicas, transformaram-se em dois pólos complementares e paradoxais do mesmo movimento pendular. Teremos que conviver com os resultados políticos dessa patologia social” (2012, p.71).

Vale a pena finalizar esse tópico refletindo sobre a escassa divulgação, pela grande mídia, das concepções ultraconservadoras do Ministro Milton Ribeiro, que já conhecemos: a de uma família patriarcal, na qual o pátrio poder, exercido preponderantemente pelo homem, atribui a mulher papel subalterno e promove a educação dos filhos com base na coerção. Essa conivência tácita da mídia, notadamente televisiva, minimiza as conseqüências deletérias do obscurantismo religioso de Milton Ribeiro, incompatível com a gestão democrática da educação.

Da mesmo forma, a mídia também deixou, recentemente, “passar batido” a inacreditável naturalização da escravidão, defendida por vários bolsonaristas, cuja vigência foi considerada benéfica para os afro-descendentes brasileiros.

Com efeito, vimos o próprio presidente da Fundação Palmares, Sérgio Nascimento de Camargo, perpetrar violentos ataques às organizações defensoras dos direitos dos negros, partindo justamente de quem deveria ser o primeiro a defendê-las (CHEFE: 2019).

A desenvoltura de racistas e fundamentalistas religiosos ligados ao governo, tripudiando sobre a ciência e os direitos humanos, impressiona. Ela deveria inibir os democratas de fazer qualquer concessão, face aos que vêm adotando um silêncio obsequioso, que os faz, objetivamente, cúmplices dessas violações aos princípios mais comezinhos da ciência e da democracia.

Catolicismo e práxis política: da ditadura à democratização: da hegemonia conservadora ao aggiornamento

No início do século passado, em 1904, o Papa Pio X publicou seu conhecido Catecismo da Doutrina Cristã, uma síntese acabada do pensamento tradicionalista da Igreja Católica sobre seus conceitos fundamentais relativos à matéria. A visão conservadora disseminada pelo Catecismo foi determinante, até o final dos anos cinqüenta do século XX na formação da juventude católica, sendo “o único adotado” em grande número de arquidioceses brasileiras. Nele, não havia lugar para concepções que pretendessem vincular a espiritualidade inculcada nos jovens à sua atuação em sociedade (PIO X: 1951).

Para melhor compreendê-lo, mostremos como a ideologia conformista se manifesta interpretação do décimo mandamento. Este “ordena-nos que nos contentemos com o estado em que Deus nos colocou, e que soframos com paciência a pobreza, quando Deus nos queira nesse estado”. No que se refere à moral sexual, o sexto mandamento exige o que um número extremamente reduzido de fieis pratica: que “guardemos a castidade”, proibindo “toda ação, todo pensamento a ela contrário”. Não obstante, sublinha o Catecismo de Pio X, “merece-se o inferno por um só pecado mortal” sofrendo, portanto “para sempre do fogo eterno e de todos os outros males, sem nenhum alivio” (1958, p. 15 e 35).

Com a investidura, no dia 25 de outubro de 1958, do Cardeal Angelo Giuseppe Roncalli no trono de Pedro, começam a soprar os ventos da mudança. Em contraposição ao viés punitivista, até então dominante, João XXIII proclama: “Amem uns aos outros porque esse é o grande mandamento do Senhor”. Diferentemente dos pontífices anteriores, que criticaram toda espécie de governo participativo, e, também, formas, ainda que moderadas, do socialismo, João XXIII reconheceu “as contribuições do socialismo à humanidade” (SILVA:188, PP.76).

No item III da encíclica Mater et Magistra, que veio à lume em maio de 1961, escreveu:“a Santa Igreja, apesar de ter como principal missão a de santificar as almas, e de as fazer participar dos bens de ordem sobrenatural, não deixa de preocupar-se também das exigências da vida cotidiana dos homens”. Esse avanço no engajamento da igreja na esfera social foi acompanhado, como não podia deixar de ser, do abandono de uma concepção restrita do povo de Deus. Assim, todos os homens de boa vontade, mesmo os incrédulos, são convocados, em abril de1963, por João XXIII, na encíclica Pacem in Terris, para a promoção da paz. Essa política de abertura fez com que ele tenha sido escolhido, por unanimidade, para o Prêmio Balzan da Paz: “até os soviéticos votaram nele” (SILVA: 1988, p.79).

A maior contribuição de João XXIII foi a convocação, em 11 de outubro de 1962, do concílio Vaticano II, cuja influência na renovação da Igreja Católica alcança a contemporaneidade. Mas há os que enfatizam a desconstrução das conquistas do Vaticano II por sucessores do papa Roncalli. Assim “o fogo ateado por João XXIII extinguiu-se em cinzas” (WEST: 1998, p.41-42).

Foi a atmosfera de tolerância e de preocupação com os direitos humanos, presentes nesse concílio, que pavimentou o caminho para a realização de eventos que aprofundaram ainda mais as mudanças, como a Conferência de Medellín, em 1968, berço da Teologia da Libertação. Mesmo no leito de morte, João XXIII teve forças para dizer aos que o assistiam: “Mas do que nunca somos chamados a defender, acima de tudo em qualquer lugar, os direitos do ser humano e não apenas de quem pertence à Igreja Católica. Não é que o Evangelho tenha mudado, fomos nós que começamos a entendê-lo melhor (JOÃO XXIII: 1963).

A Teologia da Libertação

A Teologia da Libertação é uma corrente teológica multifacetada, nascida na América Latina após a Conferência de Medellin, em 1968. Para ela, a leitura da Bíblia mostra que a libertação do homem não somente não é exclusivamente espiritual, mas exige a opção preferencial pelos pobres.

Essa teologia considera, também, que as Ciências Humanas e Sociais são indispensáveis para a concretização dessa opção, sendo que alguns de seus teóricos conferem destacada importância ao marxismo.

Inspirada na interpretação inovadora dos textos bíblicos confere centralidade ao tema da Libertação, que se realizará através da ação divina na História. Com efeito, “a libertação dos oprimidos é, nos dias de hoje, especialmente no contexto sul-americano, a realidade da salvação de Deus presente no mundo. A libertação de que fala a escritura tem uma consistência histórica e social. Graças à ação de Deus, o homem e a sociedade passam de uma situação de dependência e de escravidão, para a independência e a redenção, da condição de dominação para a alforria e a liberdade” (CATÃO: 1986, p. 66).

Mas a Igreja Católica condenou, em 1984 e 1986, os principais fundamentos da Teologia da Teologia da Libertação, supostamente, pela sua ênfase exclusiva no pecado institucionalizado, coletivo ou sistêmico, na eliminação da transcendência religiosa, na desvalorização do magistério da igreja e no incentivo à luta de classes. Essa condenação enfraqueceu a sua influência, tendo sido a principal responsável pelo seu declínio, nos anos noventa.

Não obstante, como a Fênix que ressurge das cinzas, foi tacitamente reabilitada pelo Papa Francisco (Mario Jorge Bergoglio). Ele fez cessar o anátema que a atingia, com a retomada, conforme veremos adiante, do diálogo com os principais expoentes da Teologia da Libertação “clássica”, alguns de inspiração marxista. O papa Francisco é adepto de uma das suas modalidades, Teologia do Povo, que rejeita tanto a metodologia marxista quanto suas categorias de análise (ARMATO: 2013). Nas palavras do teólogo Leonardo Boff “a graça que nos foi concedida foi um papa, Francisco, que vem do caldo desta cultura de libertação, de vertente argentina, mas sempre de libertação, dando centralidade ao mundo dos pobres” (BERTOLOTTO, 2020).

Com efeito, independentemente das divergências conceituais sobre a Teologia da Libertação, todas as suas correntes se identificam com o “amor social” preconizado pelo Sumo Pontífice na sua última encíclica, Fratelli Tutti. Nas suas palavras: “prefiro ateus éticos aos cristãos indiferentes ao sofrimento humano e às clamorosas injustiças mundiais. Quem busca a justiça e a verdade está na direção do caminho que termina em Deus, pois sua verdadeira realidade é de amor e de verdade. Hoje, os problemas como a fome e o desemprego, a exclusão das grandes maiorias são de natureza social e política, e, portanto ética. Então, a fé deve demonstrar sua força de mobilização e transformação” (Fratelli tutti, n. 166).

Assim, as diversas manifestações da Teologia da Libertação continuam a influenciar os setores mais progressistas da igreja, conforme demonstram as posições do Papa Francisco, expostas nesse artigo, mas também a de setores ponderáveis da hierarquia, críticas do capitalismo.

A igreja católica e a resistência à ditadura

A igreja católica apoiou entusiasticamente o golpe civil-militar empresarial de 1964. Na ocasião, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) enalteceu a iniciativa agradecendo a Deus e aos militares por ter “freado, sem derramamento de sangue, a marcha acelerada do comunismo” (FOLHA, 2014).

O golpe militar foi elogiado, até mesmo, pelos expoentes de sua hierarquia que mais se notabilizaram posteriormente assumindo autocrítica corajosa, traduzida na sua práxis de oposição ferrenha às atrocidades praticadas pelo regime de 1964, e ao cerceamento das liberdades democráticas. Esse foi o caso, entre outros, de D. José Maria Pires, o “Dom Pelé”, Arcebispo da Paraíba, de D. Helder Câmara, Arcebispo de Olinda e Recife e de D. Paulo Evaristo, Cardeal-Arcebispo de São Paulo.

Cinqüenta anos depois da “Revolução de 1964”, a CNBB, faz seu mea culpa, reconhecendo ter cometido um “erro histórico” ao apoiar a instauração do regime militar, cujos “métodos de governo não respeitavam a dignidade da pessoa humana e seus direitos” (FOLHA, 2014).

Portanto, os críticos do comportamento da igreja católica não podem se limitar a acusá-la de apoio ao regime militar. Trata-se de uma meia verdade que, objetivamente, é pior que a mentira, já que desvela uma parte dela, mas deixa a outra oculta. E, no caso em espécie, a mais substantiva: o papel de vanguarda de figuras exponenciais da igreja e de movimentos de leigos na mobilização contra a ditadura. Ademais, quem, na sociedade civil brasileira, poderia atirar a primeira pedra? Até a OAB solidarizou-se com o golpe! Também o apoiaram, personalidades políticas, cantadas em verso e prosa, pela sua luta corajosa contra a ditadura, como Teotônio Vilela, o “Menestrel de Alagoas”.

Na igreja católica, mesmo anticomunistas ferrenhos, a exemplo de D. Eugênio Salles, se empenharam em proteger os opositores da ditadura de suas iniqüidades. Da mesma forma, poucos prelados de destaque continuaram a apoiar ativamente a autodenominada “Revolução de 31 de março de 1964”.

A resistência dos católicos teve também seus mártires. Dentre os mais conhecidos figuram o secretário de D. Helder Câmara, Pe. Henrique Melo, assassinado barbaramente pela ditadura, e Frei Tito, brutalmente torturado no DOI-CODI. Esse assassinato constituiu-se em uma represália à dessasombrada pregação de D. Helder. Suas denúncias, em diversos fóruns internacionais, sobre as torturas e outras arbitrariedades praticadas pela ditadura, fez com ela proibisse quaisquer referências a sua pessoa nos meios de comunicação. O Arcebispo de Olinda e Recife também foi um dos grandes incentivadores das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que detalharemos adiante.

Marco histórico da oposição ao regime militar foi a divulgação da Carta Pastoral Eu ouvi os gritos do meu povo, no auge da repressão, em maio de 1973, que mereceu destaque em documento secreto produzido pelo SNI. Para esse órgão, o seu conteúdo comprova que o “clero progressista’ absolveu “teses comunistas e argumentos de propaganda difamatória inspirados na “justiça social”. Sua divulgação faria parte integrante da “guerra psicológica planejada pelo Movimento Comunista Internacional com o objetivo de contribuir para a derrubada do regime e implantação de um ‘Estado marxista-leninista” (MADEIRO: 2020). Assinada por dezoito arcebispos, abades e provinciais do nordeste, teve como os principais articuladores D. Helder e D. José Maria Pires, e congregou o que havia de mais representativo na igreja dessa região.

Mesmo já tendo vários de seus dirigentes e assessores perseguidos, torturados e alguns, até mortos pela repressão, ela não se calou. Posicionou-se publicamente, através daquele documento, denunciando “o capitalismo internacional que utiliza todos os meios de comunicação e de educação para justificar a sua dominação e para dissimular o sistema de opressão sobre o qual se apóia”. Considera, ademais, que “o processo histórico de dominação capitalista conduz fatalmente à luta de classes, não tendo a classe dominada outra saída para se libertar do que seguir o longo caminho que leva a propriedade social dos meios de produção”. “Somente esta”, conclui o documento, da inegável inspiração marxista, “permitirá aos oprimidos de recuperar a humanidade de que foram destituídos” (CARTA PASTORAL, 1973).

Contudo, tão ou mais importante quanto a luta de integrantes do clero contra as atrocidades do regime militar, foi o papel dos militantes de movimentos e instituição leigas, entre os quais se destacaram as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Tiveram atuação preponderante no Nordeste, comprometidas com a “opção preferencial pelos pobres”. As CEBs se tornaram espaços concretos de lutas sociais nesse período, notadamente no campo, servindo como um laboratório de formação de muitas lideranças que vieram, com a redemocratização, assumir posições de destaque na esfera pública.

Mas as CEBs foram bem mais além, contribuindo decisivamente para viabilizar uma nova estratégia, que substituiu a lógica da luta armada pela da participação popular. Destarte, inspiradas na Teologia da Libertação, favoreceram uma mudança na práxis política, que se estendeu, além de segmentos da própria hierarquia, a amplos setores da sociedade civil e da política brasileiras. As CEBs também forneceram uma alternativa à luta armada e à militância exclusivamente partidária, ao colocar o homem comum, especialmente os oprimidos, no centro do processo político (LYRA: 2016, p. 23). Vê-se que a igreja não se limitou a denunciar a violação dos direitos humanos. Em suma: “A democracia, para as CEBs, mais do que uma questão de princípio, é uma questão de prática” (BETTO: 1981, p. 7).

Outros eventos da resistência democrática da igreja católica alcançaram repercussão nacional, como o corajoso enfrentamento, por figuras destacadas da hierarquia e por membros de ordens religiosas, às restrições às liberdades democráticas. Exemplo dessa resistência foi o apoio dado pela igreja, desde antes da decretação do AI-5, a iniciativas contrárias ao regime militar. Foi o caso da realização de congressos clandestinos em mosteiro de ordens religiosas: no caso, ao XXVIII Congresso da UNE, em 1966, na cidade de Belo Horizonte (MG) e ao XXIX dessa entidade, em 1967, em Valinhos (SP).

No primeiro, os estudantes lograram realizar o conclave, sem serem descobertos pelos agentes da repressão. No segundo, a polícia, ao chegar no mosteiro, não encontrando mais os congressistas,prenderam os frades dominicanos que encontraram, depredando as suas instalações (MENDES JUNIOR: 1981, p.79-81).

Três outros episódios têm como protagonista central o Cardeal-Arcebispo de São Paulo, D. Paulo Arns, um prelados que mais se distinguiram pela assistência prestada aos presos políticos e pela coragem com que enfrentou, em várias ocasiões, a repressão do regime militar. D. Paulo considerava que “a oposição [da igreja] era obrigatória. Do ponto de vista evangélico, era a nossa missão naquela época, talvez a mais importante”. Profundamente chocado com a violência inaudita praticada com esses presos, D. Arns assim se manifestou: “o que ouvi deles não tinha ouvido na Europa, onde estive cinco anos com os prisioneiros da Rússia e da Alemanha. Tanto o Brasil se tinha rebaixado” (DINES ET ALII: 2001:Vol. I, p.154).

1) Paulo realizou, na catedral da Sé, em 1976, uma missa ecumênica de protesto contra a morte, pela tortura, do jornalista Vladimir Herzog, nas dependências do DOI-CODI paulista. Essa cerimônia abalou o poderio da linha dura, e ensejou o seguinte comentário de D. Helder, que estava ao lado do Cardeal Arns nessa cerimônia: “D. Paulo, hoje a ditadura caiu” (DINES et ALLI:2001, vol I, p.154).

Em 1977, novo acontecimento – a invasão da PUC-SP, pelo coronel Erasmo Dias, Secretário de Segurança de São Paulo – provocou a detenção de dois mil estudantes e a destruição de livros, equipamentos, milhares de documentos e até de parte da estrutura física da universidade. Essa invasão colocou D. Paulo na linha de frente de defesa da autonomia universitária e das liberdades democráticas. A esse respeito, assim se expressou: “Eu voltei de Roma por causa da invasão da PUC. Porque entrar na PUC só com exame vestibular ou para servir os alunos. De outra forma, não” (DINES et ALLI:2001, Vol. I, p 157).

Dom Paulo Arns provocou, mais uma vez, a ira dos militares, ao organizar procissão que chegou a contar com de cerca de 200.000 pessoas, em protesto contra a execução, em outubro de 1979,com uma bala nas costas, do operário Santo Dias, coordenador da Pastoral Operária em São Paulo. (DINES ET AL11, 2001, Vol. 1, p.151).

Concluímos com a menção à D. Pedro Casaldáliga, bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, que alcançou notoriedade na defesa das comunidades pobres e dos indígenas, e pelo firme apoio dado ao funcionamento e à expansão das CEB’s. Sua voz incansável contra o latifúndio, apoiando o MST e a Via Campesina, valeu-lhe várias ameaças de morte, além de processos de expulsão do Brasil durante a ditadura militar. Sua indômita atuação granjeou respeito, homenagens e admiração nacional e internacional. Escolheu ser sepultado no cemitério Karajá, nas margens do rio Araguaia, onde peões e índios que resistiram à grilagem eram enterrados (VEJA: 2020).

A igreja católica na atualidade: um novo aggiornamento?

No âmbito internacional, a hegemonia conservadora na Igreja Católica se firma já no Pontificado de João Paulo II. Ele tentou evitar que a Conferência de Puebla aprofundasse a ruptura iniciada na conferência anterior, realizada em Medellín, em 1968, a Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano.

João Paulo II também levou a cabo, através do então Cardeal Joseph Ratzinger – na qualidade de Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, a perseguição aos expoentes da Teoria da Libertação. Para o festejado escritor Morris West, essa congregação funciona como “cão de guarda da ortodoxia da Igreja” (WEST: p. 29, 1999).

Aliado a Reagan, João Paulo II endossou o projeto neoliberal de globalização. Também tomou posição a favor de guerras e buscou obstaculizar o processo de secularização iniciado por com João XXIII e aprofundado por Paulo VI.

A ascensão, em 19 de abril de 2003, de Ratzinger ao trono de Pedro, inaugurou uma fase ainda mais prejudicial para os setores progressistas dessa instituição. Com efeito, Bento XVI enfraqueceu as arquidioceses mais renovadoras da igreja, como a de São Paulo, desmembrada em cinco dioceses, reduzindo, com essa medida, a sua área de jurisdição. Da mesma forma, os bispos que nomeou ampliaram a influência da ala conservadora da igreja.

O clima de hostilidade à igreja progressista somente se dissipa com a ascensão, a no dia 19 março de 2013, ao trono de Pedro, do cardeal argentino Bergoglio cujas posições, críticas ao capitalismo, com ela se identifica. Desde então, o caminho percorrido pela igreja católica, no que se refere à sua práxis política, evidencia diferenças de monta, em relação à das igrejas protestantes, especialmente a das pentecostais.

Essas igrejas, “evoluíram” para a aceitação da chamada Teoria da Prosperidade, que legitima o acúmulo de riqueza e o usufruto irrestrito de bens materiais. Já o catolicismo permanece infenso ao ideário neoliberal, conforme testemunham todas as declarações do atual Sumo Pontífice e de integrantes da hierarquia católica.

As conclusões de Michel Lowy resultantes de sua leitura de Marx Weber, vão nesse mesmo sentido. Ele identificou na obra desse sociólogo o entendimento de que haveria “uma aversão, ou resistência, básica e inconciliável, ao espírito do capitalismo por parte da Igreja Católica”. Por contraste, “haveria “relação mútua” entre a ética calvinista e o capitalismo” (LOVY:2000, P.40).

Com efeito, o Papa Jorge Bergoglio vincula os ensinamentos de Cristo a notórias preocupações com a igualdade social e a interpretação bem menos ortodoxa das Escrituras, com a conseqüente valorização do conhecimento científico. O sucessor de Pedro fez duras críticas ao capitalismo, primeiro como fonte de desigualdade e, segundo, como uma economia que “mata” (STOURTON, 2020). E foi além, dizendo que “comunistas pensam como os cristãos”, causando indignação nos meios conservadores. (PAPA: 2013).

Na sua encíclica Laudato Si’ (Louvado sejas), Francisco sublinha que a desigualdade social não afeta apenas indivíduos, mas países inteiros. Ele questiona um modelo econômico no qual “uma minoria se julga no direito de consumir numa proporção que seria impossível generalizar” (2015: p. 50) e onde   predomina a preocupação de “salvar os bancos a todo custo em detrimento das necessidades da população” (FRANCISCO: 2015, p, 11).

Na sua derradeira encíclica – Fratelli Tutti (Somos todos irmãos) – o Vigário de Cristo reafirma a sua condenação ao “dogma neoliberal” e a “especulação financeira com o lucro fácil como objetivo fundamental”, sublinhando o cortejo do “desemprego, racismo, pobreza e desigualdade de direitos” que dela deriva. E conclui: “o direito de propriedade será, portanto, secundário em relação ao destino universal dos bens criados” (2020: p. 120).

Francisco vai além, num gesto pioneiro, exalta a mobilização popular como instrumento de mudança. Em discurso pronunciado no dia 9 de julho de 2014, em Santa Cruz de la Sierra, ele assim se expressa “os movimentos populares tem um papel essencial, não apenas exigindo e reclamando, mas fundamentalmente, criando. Vós sois os poetas sociais, criadores do trabalho e produtores de alimentos, sobretudo para os descartados pelo mercado global” (FALA…, 2014).

Fica evidenciado que a escolha do papa argentino expressa uma nova correlação de forças no seio da Igreja Católica, contribuindo para a construção, no seu âmbito, de uma nova hegemonia. A sua eleição permitiu que essa multissecular instituição absorvesse os anseios ode renovação, proveniente de seus milhões de fieis, conditio sine qua non para sua própria sobrevivência. São anseios frequentemente submersos, alimentados por uma espécie de fogo de monturo, que, por vezes, encontra forças para vir à tona.

Com Francisco, a ala progressista da igreja católica, inspirada na Teologia da Libertação, ganha maior espaço e reconhecimento, mesmo sendo o papa adepto de um ramo dessa teologia, denominada Teologia do Povo, que não utiliza nem a metodologia marxista, nem suas categorias analíticas (SCANNONE, 2013). Comprova esse juízo a amizade que une o atual Papa ao conhecido teólogo brasileiro, Frei Leonardo Boff. Lembremos que Boff foi punido pelo seu antecessor, Bento XVI, com “silêncio obsequioso”, pelo período de um ano, durante o qual ficou impedido de expressar as suas ideias, e, inclusive, de publicar (LYRA: 2018, p. 301 e 302).

Francisco prestigiou outro expoente da Teologia da Libertação, o teólogo Gustavo Gutierrez, ao escrever-lhe carta de congratulações pelos seus noventa anos e ao convidá-lo para audiência no Vaticano. Ademais, o pontífice argentino vem adotando um comportamento tolerante, em relação às diferenças, em contraste com a maioria evangélica. Perguntado se condenava o homossexualismo, respondeu: “quem sou eu para julgar os gays? (QUEM … 2019). Mais recentemente o Papa Francisco defendeu a união cível entre homossexuais, de forma a garantir a proteção de suas famílias. Essa posição escandalizou integrantes dos setores conservadores, como Papa Emérito Bento VI, que a qualificou de manifestação do “anticristo”

As posições políticas da Igreja Católica brasileira na ‘era” Bolsonaro

Vale, a esse respeito, conferir os posicionamentos da igreja católica nas eleições presidenciais de 2018 e os que se seguiram, relacionados à política brasileira. No segundo turno dessas eleições, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) emprestou apoio tácito ao candidato petista, Fernando Haddad.

Com efeito, desde o primeiro turno, a igreja já havia duramente criticado o “discurso do ódio” nessas eleições, sem nominar o seu autor. No segundo turno, a hierarquia católica orientou os seus fieis no sentido de votar no candidato que defenda “mais democracia” (CNBB: 2018).

Foi preciso esperar 19 meses de governo Bolsonaro para que a Igreja Católica através de parcela considerável do Episcopado, dotada de inegável representatividade e respeitabilidade, voltasse a se manifestar, de forma candente e com radicalismo comparável àquele da Carta Pastoral Eu ouvi os gritos do meu povo, agora sobre uma questão especifica: a atuação do governo Bolsonaro.

Mais de 150 arcebispos, bispos e bispos eméritos, afirmando estar “em profunda comunhão com o Papa Francisco”, acusam o governo de não ser ético e de disseminar um “discurso anti-científico”, que “naturaliza o flagelo de milhares de mortos pela COVID-19, tratando-o como fruto do acaso ou do castigo divino”. Os prelados denunciam, ainda, uma “economia que mata, centrada no mercado e no lucro a qualquer preço” e, do ponto de vista político, “de se aproximar do totalitarismo e utilizar-se de expedientes condenáveis, como o apoio e o estímulo a atos contra a democracia”.

Eles mostram que a alternativa “não deveria ser entendida como mera soma de gestos pessoais, a favor de alguns indivíduos necessitados, que se destinam apenas a tranquilizar a própria consciência”. O documento finaliza conclamando a todos que “despertem do sono que nos imobiliza e nos faz meros espectadores da realidade de milhares de mortes e das violências que nos assolam. A noite vai avançando e o dia se aproxima. Rejeitemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz” (BERGAMO: 2020).

Mas a CNBB, mais adiante, também se manifestou – e com firmeza, ainda que de forma menos contundente – contra o governo Bolsonaro. Ela responsabilizou-o, com várias entidades de destaque da sociedade civil, em uma live conjunta, pela crise econômica, sanitária e política que atravessa o país (CENTRAIS..: 2020).

Evangélicos e católicos: o que os distancia e o que os aproxima?

Procuramos mostrar que as significativas diferenças das concepções doutrinárias entre católicos e evangélicos não devem levar à conclusão de que a igreja católica, no seu conjunto, seja um baluarte do “progressismo”. Com efeito, importantes setores, a nível nacional e internacional, têm mostrado forte influência interna nos rumos do catolicismo brasileiro, como comprova a “onda antipetista” que se espraiou em todo o Brasil, envolvendo grupos católicos conservadores. Eles fizeram coro com os evangélicos, “formando um caldo de potenciais apoiadores da campanha ao Poder Executivo de um candidato afeito à sua agenda de costumes” (CALDEIRA E TONIOL: 2020).

Para Marcelo Barros, escritor e monge beneditino, as posições avançadas do Papa Francisco e de parte expressiva da hierarquia, são, na prática, assumidas por uma pequena minoria de católicos.

Barros afirma que os bispos que subscreveram a Carta ao Povo de Deus pagam o preço de terem em suas dioceses substancial parcela de católicos que sonham com uma igreja com características semelhantes as da ultra-conservadora ordem americana Cavaleiros de Columbus (BARROS,2020). Ela alberga quase dois milhões de associados, cujas preocupações sociais restringem-se à prática da filantropia (WIKIPÉDIA, 2020).

Mas existem outras organizações: conservadoras católicas, também integradas internacionalmente, como a Renovação Carismática, que goza de grande autonomia. (MARIZ: 2007), sendo a mais notória a OPUS DEI. Elitista, lida com grupos poderosos da lei, do dinheiro e da política. Segundo o célebre escritor Morris West “Há claras evidências que membros OPUS DEI estiveram envolvidos nas atividades repressivas dos militares na Argentina, de que ajudaram a ocultar as provas dos crimes cometidos durante a guerra suja” (1999: p.16).

Essas tendências “ortodoxas” católicas têm em comum notórias afinidades políticas com Bolsonaro e grande proximidade com os rituais, as performances e a estética pentecostal, conforme comprova o apoio de clérigos carismáticos, entre os mais famosos cantores gospel do país, ao capitão reformado. Seja como for, mesmo entre os católicos, para uma maioria passiva, a religião continua funcionando apenas como um refúgio onde se abrigam os que se contentam com paliativos, invocando uma improvável ajuda de Deus para minorar as adversidades.

Ademais, não se pode negar a realidade de convergências e, em certos casos, a identidade de posições entre católicos e evangélicos, no âmbito da moral e dos costumes. A posição da Igreja Católica nas Conferências de Cairo sobre População e Desenvolvimento, em 1994, e na Conferência da Conferência de Pequim, em 1995 comprova, entre outros posicionamentos, essa proximidade. A Santa Sé foi uma das protagonistas desse debate, deixando clara a sua oposição aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e reagindo fortemente ao conceito de gênero adotado nas conferências da ONU (SOUZA: 2018, p. 5).

Destarte, o antagonismo entre católicos e evangélicos se restringe à vanguarda da militância católica, para a qual justiça social e democracia são parâmetros fundamentais norteadores de sua práxis religiosa, embora esses princípios também estejam, em algum grau, presentes na maioria dos católicos e sejam firmemente defendidos pelo Pontífice Máximo da Igreja Católica.

As diferenças entre católicos e protestantes a respeito se manifestam, sobretudo, nas concepções sobre economia, face à entusiástica adesão da parte expressiva dos evangélicos ao neoliberalismo, e nas relacionadas com a democracia e o autoritarismo. Mas também se diferenciam na forma como tratam os que não rezam na sua cartilha. Expoentes evangélicos, cultores do fundamentalismo religioso, como o pastor Silas Malafaia, costumam ofender aqueles com quem divergem politicamente, especialmente os de esquerda, que são tachados de “esquerdopatas”.

Esse tipo de intolerância, que não prospera na hierarquia católica, acaba incentivando outras, como as praticadas pelos fanáticos religiosos que tentaram invadir o hospital onde estava internada criança de 10 anos, vítima de estupro, a fim de ser submetida à procedimento de aborto. Aos gritos, os manifestantes acusavam os médicos responsáveis por esse procedimento de “assassinos!” (DORINI e MACHADO: 2020).

Não obstante, a apreciação da CNBB sobre a questão, formulada por seu Presidente, D. Walmor Azevedo, se não se faz acompanhar de atitude belicista com relação aos que dele discordam , tem o mesmo e preocupante conteúdo das invectivas evangélicas: “Aborto legal em menina estuprada no Espírito Santo é ‘crime hediondo”. Pergunta-se: quantos milhões de brasileiros seriam, no juízo do Presidente da CNBB, autores desse “crime” e quantos milhões o endossam?

Portanto, a diferença no tratamento da questão é, sobretudo, de atitude, como demonstra exemplarmente a postura mais tolerante do papa Francisco. Ele permitiu aos sacerdotes perdoarem as mulheres que tenham feito aborto, mas nem por isso deixa de considerá-lo um infanticídio. (O PERDÃO…, 2015).

Já o fundamentalismo integrista, hegemônico nas igrejas pentecostais, não se limita a condenar o aborto: intimida, desqualifica ou ameaça quem não aceita suas ideias. Também utiliza o púlpito como palanque político-partidário (TOSI: 218, p. 412). Essa “agressividade discursiva investe no apagamento do outro, na correção do comportamento de quem é percebido como um perigo” (ORTIZ: 2020). Esse autor cunhou o termo “bolçanarismo”, para classificar o comportamento de Bolsonaro, mas sua crítica se aplica com perfeição aos fanáticos religiosos.

A despeito da existência da pluralidade das posições sobre as questões abordadas nesse trabalho, entendemos que permanece atual a observação feita, há sessenta e cinco anos, pelo brilhante psicanalista e psicólogo social Erich Fromm, sobre o papel alienante da religião na sociedade. Nas suas palavras: “ainda que seja verdade que se tenha feito essa crítica por parte das altas hierarquias da Igreja Católica e que também tenha sido feita por muitos sacerdotes, pastores e rabinos, todas as igrejas pertencem essencialmente às forças conservadoras modernas e empregam a religião para manter o homem tranquilo e satisfeito com um regime profundamente irreligioso” (1955: p.163).

Reflexões finais

Concluímos essas análises com uma reflexão sobre os resultados de uma pesquisa que o Pew Research Center acaba de publicar, divulgada na revista Piauí. Ela mostra a importância de se dar maior atenção ao conhecimento das relações entre moralidade e religião, indispensável à compreensão das relações desta com a política.

Os entrevistados de 34 países responderam à pergunta: “É preciso ser religioso para ter moralidade?” De acordo com a pesquisa, oitenta e quatro por cento dos entrevistados, no Brasil. consideram que a moral depende da fé. Essa concepção influencia, portanto, o comportamento de ampla maioria da população brasileira, com repercussões que vão bem além de questões de foro íntimo (CALLIGARIS, 2000).

Dos resultados apresentados se depreende que todo indivíduo que não tem religião é pervertido. Consequentemente, pela sua intrínseca maldade, falta-lhe condições de fazer escolhas idôneas, que possam concorrer para o “bem comum”. Esse entendimento está muito mais enraizado entre os evangélicos, especialmente as pentencostais, onde o fundamentalismo é onipresente.

Existe, portanto, a necessidade imperativa de se elaborar estratégias eleitorais e de disputa ideológica adequadas à luta pela hegemonia, face ao pensamento abraçado por muitos milhões de pessoas, que acreditam ser a religião condition sine qua non de moralidade. Nesse ranking, o Brasil ocupa preocupantes 34%, “logo atrás da Nigéria e do Quênia, portanto, há léguas da modernidade” (CALLIGARIS, 2020).

É, portanto, necessário contrapor essa concepção arcaica de moralidade ao pensamento moderno, herdeiro do Iluminismo, para quem as normas morais são construídas pelo próprio individuo, não sendo resultado de preceitos impositivos e externos à vontade individual.

A falta de autonomia desta, no campo da religião, compromete, também, o seu livre exercício em outras dimensões da vida social, especialmente no da política. Por isso, é necessário sujeitar as religiões ao debate político – nele envolvendo também os que lhes são estranhos – submetendo-a, assim, ao cuidadoso escrutínio de suas antinomias e contradições, tendo em vista que “muita coisa que não deveria se refugiar em sua imunidade acaba ficando fora do escrutínio social (MARTINS: 2020).

*Rubens Pinto Lyra é doutor em Direito e Professor Emérito da UFPB. Autor, entre outros, de La Gauche en France et la Construction Européenne (Paris, LGDJ) e Teoria Política e Realidade Brasileira(EDUEPB).

 

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