Por DANIEL BRAZIL*
A mídia cada vez mais uniformiza gostos e hábitos de consumo
O título desse artigo é um verso escrito pelo genial compositor Itamar Assumpção, e gravado no disco Sampa Midnight – Isto Não Vai Ficar Assim, de 1986. Se figurasse num pagode qualquer, ou num sucesso sertanejo, seria apenas um trocadilho raso. Mas vindo de um artista que sempre recusou o lugar comum, procurando uma estética própria e fora das regras de mercado, ganha profundidade insuspeita.
Não é preciso ser doutor em linguística para constatar a pobreza literária e semiótica da música feita atualmente “pra tocar no rádio”. Não é um fenômeno brasileiro, mas mundial, uma vez que a mídia cada vez mais uniformiza gostos e hábitos de consumo. Mas no Brasil a indigência contrasta com a exuberância de um passado recente: há poucas décadas as letras de música disputavam com a mais refinada poesia a melhor tradução de sentimentos, atitudes, dores e alegrias do povo brasileiro. Os gigantes que semearam a moderna MPB, somados aos mestres inquietos que, de norte a sul, do baião à milonga, da toada ao samba de roda, nos surpreendiam com achados verbais, imagens inusitadas e rimas de cortar os cabelos e arrepiar o coração, estão cada vez mais afastados do grande público, sendo cultuados em nichos cada vez mais restritos.
Por trás do verso de Itamar está sua própria trajetória artística. Compositor fora dos padrões, “maldito”, como se dizia na época, não se enquadrava. Fizesse uma canção com refrão fácil, que todos ouvissem no rádio e cantassem, era o pedido das gravadoras. Um samba, por que não?, afinal não era negro? O chavão iria abrir portas grandes, certamente: emissoras de rádio e TV, programas de auditório, paradas de sucesso.
Mas Itamar Assumpção era de outra cepa, e resistiu. Criador de inspiração desconcertante, irônico e atilado, a massa certamente não comerá o biscoito fino que fabricou. Mas sua intuição certeira acabou por nos fornecer um slogan perfeito para a época em que vivemos, de diluição completa de estéticas e experimentações.
Tomemos o discurso político, por exemplo. Não há definição mais perfeita, nas eleições que acabamos de presenciar, do que “chavão abre porta grande”. O discurso criativo, o uso inteligente do humor, a vontade de abrir novos caminhos, a investida contra valores arraigados, foram derrotados. Onde a esquerda ganhou foi com políticos experientes, escorados num discurso já conhecido [1]. Não é pouco, no país do bolsonarismo de matizes fascistas, mas mostra o quanto ainda falta para que uma renovação de fato se solidifique no discurso político.
Nas artes plásticas, na arquitetura, no cinema ou na música, o axioma de Itamar Assumpção continua válido. O chavão continua abrindo portas grandes, seja de gravadoras, editoras, emissoras, corporações multinacionais ou palácios do governo.
Um dos grandes embates do século XXI é este confronto entre a invenção e a reprodução de modelos. Não sabemos se nosso futuro será desenhado por algoritmos, calcados em estatísticas e invasão de privacidade, ou ainda estará sujeito a alterações provocadas pela vontade criadora de alguns poucos.
Enquanto isso, lutemos para que os verdadeiros inovadores do discurso possam ser ouvidos pelas futuras gerações. De Itamar Assumpção a Greta Thunberg, de Luiz Melodia a Guilherme Boulos, temos vários exemplos de que a linguagem não caminha separada das ideias, como diziam os velhos Marx e Engels. Aliás, jovens revolucionários, em sua época.
*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.
Nota
[1] Obviamente a derrota não ocorreu apenas pelo grau de modernidade do discurso. O poder econômico, a manipulação midiática e o conservadorismo de base religiosa ainda são fatores preponderantes no cenário eleitoral brasileiro.