Por SEBASTIÃO VELASCO E CRUZ*
Considerações sobre resultados e consequências das eleições nos EUA
Uma situação inusitada.
Pode não ser edificante, mas os Estados Unidos oferecem ao mundo neste final de ano um espetáculo inimitável.
Não me refiro, evidentemente, à contestação dos resultados da eleição presidencial. Esse tipo de ocorrência é bem conhecido nosso e tem-se repetido na América Latina, na Europa Oriental e em outras regiões do globo com frequência notável. Mas em que outro lugar encontraríamos, depois do pleito em causa, mobilização tão grande de advogados empenhados em impugnar, em vários cantos do país, a contagem de votos? E onde mais veríamos tamanha reação de escândalo ante a negativa do candidato vencido em cavalheirescamente reconhecer sua derrota?
É verdade, houve um precedente nos Estados Unidos, não tanto tempo atrás. Em 2000, o democrata Al Gore venceu o republicano George W. Bush no voto popular, mas teria perdido por uma margem ínfima (537 votos) no estado da Flórida, decisivo para o resultado do pleito no Colégio Eleitoral. Como agora, o resultado no referido estado – então governado, aliás, pelo irmão do candidato tido como vencedor – foi judicialmente contestado, o que deu lugar a um processo longo e laborioso de recontagem de votos. O qual, entretanto, não chegou ao fim interrompido que foi por decisão apertada da Suprema Corte.
Mas em 2000 esse desfecho, de legitimidade para lá de duvidosa, foi serenamente aceito por Al Gore. A partir daí, a Casa Branca, sob o comando do democrata Bill Clinton, deu início ao processo de transição, comunicando à equipe do futuro presidente informações sigilosas sobre as diversas esferas de ação governamental, em particular aquelas afetas à Segurança Nacional.
O que vemos agora é bem diferente. Derrotado nas urnas, Trump se multiplica em denúncias de fraudes – a rigor, tais alegações precedem de muito a realização do pleito – e toma decisões de governo como se o horizonte deste fosse de quatro anos, e não os dois meses restantes, de acordo com o veredicto das urnas. Enquanto isso, a equipe do presidente eleito aguarda desconcertada que o funcionário encarregado de tomar as devidas providências – o titular do General Service Administration – acate o resultado do pleito e tome as medidas administrativas correspondentes – como a cessão de espaço para que a equipe de Joe Biden possa trabalhar e a liberação dos recursos financeiros legalmente destinados a esse fim.
Com muito atraso, em virtude das condições excepcionais criadas pela pandemia, a vitória de Joseph Biden foi proclamada no sábado, 7 de novembro, e desde então vem sendo reconhecida pelos governos de quase todos os países do mundo (o Brasil é um dos poucos que se furtam a esse ato de diplomacia). Mas, até o momento, os Estados Unidos vivem em sursis, aguardando o gesto de reconhecimento de Donald Trump que ninguém sabe se algum dia virá.
Esse breve relato sugere algumas perguntas. Como entender a recusa de Trump em admitir uma derrota tão nítida (para se ter uma ideia comparativa dela, em 2000, Bush alcançou 271 votos no Colégio Eleitoral, apenas um além do mínimo necessário para ganhar a Presidência, enquanto Biden conta hoje com 306 votos)? Qual o sentido de seu intento desesperado de inverter o resultado da eleição de 3 de novembro e como explicar o apoio que, apesar de tudo, ele tem recebido nessa empreitada? Por fim, como o impasse assim criado tende a afetar a posição dos Estados Unidos no mundo?
Antes de abordá-las frontalmente, contudo, convém fornecer ao leitor alguns dados.
A eleição presidencial e as demais: resultados gerais e significado político
Durante quase uma semana, os olhos de todos estiveram fixados na apuração de votos em andamento nos Estados Unidos. Não sem razão. Ao contrário do que ocorrera em ocasiões passadas, o trabalho de contagem de votos atravessou a noite e seguiu pelo dia seguinte sem nenhum resultado claro. Algo estranho parecia estar ocorrendo. As agências de notícias divergiam marginalmente em suas totalizações e, durante dias, os números atribuídos aos dois contendores permaneceram inalterados. Foi apenas na noite de sábado que todas proclamaram a vitória democrata.
Ao longo desse período tenso, que certamente mobilizou, por toda parte, o trabalho em tempo integral de uma infinidade de jornalistas, o foco da atenção era a disputa pela Presidência dos Estados Unidos. Aqui e ali uma informação sobre eleições para o Senado, ou para a Câmara de Deputados. Mas, em geral, ela vinha descontextualizada. O que mesmerizava a ambos – profissionais da imprensa e grande público – era o drama da competição pelo cargo mais poderoso do mundo.
No entanto, o duelo Donald Trump x Joe Biden era apenas uma parte do grande jogo político que estava em curso naquele momento. Com efeito, além da Câmara, cujas 435 cadeiras são renovadas a cada dois anos, estavam em disputa no dia 3 de novembro 35 cadeiras no Senado; o cargo de governador em 11 estados, e 5.876 postos nos Legislativos estaduais, distribuídos por 86 das 99 Câmaras existentes no País – com exceção de Nebraska, o Poder Legislativo nos estados americanos é bicameral. Por razões facilmente compreensíveis, o significado da vitória de um ou outro partido na luta pela Presidência varia de acordo com o resultado desses outros embates.
Nas eleições de 2020, eles foram muito resumidamente os seguintes.
Na Câmara, os democratas perderam nove dos 232 assentos que detinham, mantendo sua posição majoritária com os 222 assentos conquistados; já os republicanos ganharam dez, nove dos quais do Partido Democrata, formando uma bancada de 210 deputados.
No Senado, dos 33 mandatos plenos em disputa, 21 eram republicanos, e 12, democratas (continuam em jogo ainda dois assentos, a serem preenchidos em eleições especiais para mandatos curtos de dois anos). A desigualdade na distribuição dos postos abertos à competição contribuía para alimentar o otimismo da oposição democrata, que esperava ganhar a maioria na Câmara Alta necessária para que o futuro governo Biden pudesse aprovar seus projetos sem maiores percalços. Tais expectativas, contudo, foram frustradas: encerrada a apuração de votos, o Partido Republicano havia perdido apenas uma cadeira, preservando 50 membros em sua bancada. Os democratas, por sua vez, passavam a contar com 46 senadores, aos quais se somavam dois independentes que votam com a bancada.
O controle do Senado continua indefinido, dependendo da eleição em 5 de janeiro das duas vagas não preenchidas em 3 de novembro no estado da Geórgia.
Os resultados no plano estadual não desmentiram essa tendência de relativa estabilidade. Dos 11 cargos de governador em disputa, sete eram ocupados por republicanos, e quatro, por democratas; nove governadores tentaram a reeleição, e todos lograram renovar seus mandatos. A única mudança ocorreu no estado de Montana, onde o candidato republicano bateu o vice-governador democrata.
Situação similar observamos no tocante aos legislativos estaduais. Finda a apuração dos votos para a renovação do Legislativo em 44 estados, os republicaram mantinham o controle de 59 Câmaras, e os democratas, em 39. Em apenas quatro delas houve mudança de controle entre os partidos – o número mais baixo de transferências desde 1944. Justifica-se, assim, o balanço amargo feito pela articulista de esquerda Joan Walsh ao examinar o quadro dos resultados eleitorais: “… em nenhum lugar as notícias foram piores do que no nível legislativo estadual, onde apesar do investimento sem precedentes por organizações democratas e grupos externos … o partido perdeu terreno”.
Confirmada a maioria provável dos republicanos no Senado, esses dados manifestam um elevado grau de inércia política – que se torna mais surpreendente ainda quando se leva em conta que a disputa eleitoral nos Estados Unidos foi travada em ano de pandemia e crise econômica.
O registro feito aqui é importante, não apenas para enriquecer o estoque de informações do leitor, mas para a condução da análise. Com efeito, sem ele corremos o risco de atribuir a situação anômala vivida pelos Estados Unidos hoje à ação idiossincrásica de um indivíduo. Não resta dúvida, Trump é um demagogo histriônico, cujo comportamento trai sérios desequilíbrios de personalidade. Mas explicar o impasse criado por sua atitude com base em suas características pessoais é não explicar nada. O fato decisivo é que a morada de Trump – com toda sua psicopatia – não é um sanatório, mas a Casa Branca. Esta constatação singela nos força a mudar o foco.
Labirinto jurídico
Em texto seminal, Joseph Schumpeter observou argutamente que a competição pelo poder é um traço universal dos sistemas políticos. O próprio da democracia é a forma em que esta se dá: a escolha de dirigentes mediante a “competição livre pelo voto livre”[1].
A democracia é um método político, aquele no qual o poder decisório advém da competição pelo voto popular. Com sua simplicidade aparente, a definição de Schumpeter obteve enorme sucesso entre os praticantes da Ciência Política. Não por acaso. Em uma tacada, ela excluía as entidades abstrusas da Filosofia Política – o bem comum, a vontade geral – e preparava o terreno para a investigação empírica das instituições democráticas.
Mas o próprio Schumpeter parecia suspeitar da enganosa simplicidade da fórmula, o que insinuava ao apontar as condições sociopolíticas por ela subentendidas: liberdade de expressão, de locomoção e de reunião, entre outras, ou seja, a tábua das liberdades básicas do liberalismo.
Não só isso. Para Schumpeter, algumas condições indiretamente relacionadas ao processo eleitoral seriam indispensáveis ao êxito da democracia: presença de burocracia profissional bem preparada; raio relativamente restringido das questões submetidas à decisão pública; lealdade dos atores relevantes ao país; qualidade da liderança política; lideranças com razoável grau de autocontrole e respeito mútuo.
Na obra de seus continuadores, a lista das condições requeridas pela democracia foi sucessivamente ampliada. Ao revisitá-las, Guillermo O’Donnell demonstrou que, examinadas em profundidade, elas pressupunham uma condição logicamente anterior – a instituição dos indivíduos como sujeitos de direitos –, o que passava a situar a discussão do tema da democracia no plano do Direito e do Estado, não do regime. Nesse movimento, O’Donnell abria a caixa de Pandora e reintroduzia no debate os grandes temas da Teoria Política[2].
Não caberia reconstituir em detalhes essa passagem, mas referi-la é preciso, porque ela salienta um aspecto crucial da questão analisada neste artigo: a importância, nem sempre reconhecida na literatura sobre democracia, das “condições internas” para o funcionamento regular e legítimo do mecanismo do voto. Esta observação nos traz de volta ao tema da eleição presidencial deste ano nos Estados Unidos.
Com efeito, para que a competição pelo voto ocorra de forma desembaraçada e limpa, é preciso que vários procedimentos sejam observados, de acordo com regras claras, precisas, previamente estabelecidas. Ora, essa condição é dificultada por uma das características mais salientes do sistema eleitoral americano: o caráter barroco de sua estrutura.
Seu elemento mais conhecido é o Colégio Eleitoral, onde cada estado se faz representar por um número de eleitores equivalente à sua representação no Legislativo federal (dois votos pelas vagas de cada um deles no Senado, e um número variável de acordo com o tamanho de sua bancada na Câmara de Deputados). Seguindo a tradição do sistema distrital vigente no país desde sua origem, a escolha desses Eleitores obedece à regra da maioria (o vencedor leva a totalidade deles, independentemente de como se distribua o voto popular).
As distorções advindas desse sistema são notáveis: dada a grande estabilidade espacial dos alinhamentos partidários, as campanhas presidenciais são travadas naqueles poucos estados onde o resultado é incerto – os swing states. É nesses estados que os partidos investem o essencial de seus recursos, e é do desfecho da disputa neles, às vezes por uma margem muito reduzida (537 votos na Flórida, em 2000), que depende a eleição do presidente dos Estados Unidos.
Tão ou mais grave é o problema da desigualdade da representação. Dada a existência de um patamar mínimo de Eleitores por unidade da federação, os estados mais populosos são severamente prejudicados: cada Eleitor californiano representa mais de 710 mil pessoas, ao passo que não chega a 200 mil o número de indivíduos representados pelo eleitor do Wyoming.
O resultado combinado das duas regras – voto majoritário e peso relativo de cada estado – é a possibilidade de descompasso entre o voto popular e a distribuição das forças no Colégio, o que aconteceu em duas das seis eleições presidenciais realizadas no século presente.
O Colégio Eleitoral sofre muitas críticas e, em diferentes momentos, foi objeto de projetos legislativos com vistas à sua alteração, ou pura e simples supressão. O argumento em sua defesa é o papel insubstituível que ele desempenharia na manutenção do equilíbrio da federação.
Pois reside no compromisso federalista mesmo a razão de ser da enorme complexidade do sistema eleitoral americano, e dos muitos pontos de vulnerabilidade que ele exibe.
A rigor, a própria ideia de um sistema eleitoral único nos Estados Unidos deve ser afastada. Com efeito, o Artigo II da Constituição dos Estados Unidos atribui aos legislativos estaduais a competência de organizar sua lista de eleitores. Inicialmente, estes eram indicados pelos corpos legislativos de cada estado. Aos poucos, foram aprovadas em todos os estados leis prevendo a eleição popular para esse efeito – a Carolina do Sul, em 1832, foi a última a adotar o sistema.
Mas, observada a lei federal que criou em 1845 o Election Day (“primeira terça-feira seguinte à primeira segunda-feira de novembro”) e os dispositivos gerais fixados na Lei de Contagem Eleitoral, de 1887, cada estado goza de ampla autonomia para organizar a eleição a seu critério.
Eles estabelecem por conta própria o modo de composição da lista para o Colégio Eleitoral (Maine e Nebraska atribuem um eleitor a cada um dos seus dois distritos eleitorais, e dois ao partido que vencer a disputa no conjunto do estado); o sistema de votação (o Maine, para ficar nesse exemplo, adotou neste ano o sistema de escolha graduada, ou ranked-choice voting system); as regras para o registro dos eleitores (de enorme importância em um sistema de voto facultativo, onde a participação maior, ou menor, no pleito é uma variável decisiva no seu resultado); a regulação das distintas modalidades de voto (presencial e por correio); a forma da cédula; os procedimentos de contagem e a certificação dos votos. E as leis estaduais atribuem a competência para decidir questões operacionais aos condados.
Por lei federal, as etapas que se seguem à eleição popular devem obedecer a um cronograma pré-estabelecido referido a dias de semanas, não a datas fixas do calendário. No caso presente, esse cronograma é balizado pelas seguintes datas: 1) 8 de dezembro: prazo para conclusão do processo de apuração dos votos e certificação dos resultados; assinatura da lista de eleitores pelo governador, que a encaminha ao Escritório do Registro Federal (Office of the Federal Register, National Archives e Records Administration); 2) 14 de dezembro: encontro dos Eleitores, em seus respectivos estados, para depósito, em envelope lacrado, de seus votos; 3) 6 de janeiro de 2021: sessão conjunta do Congresso para a solenidade de abertura dos votos e proclamação do vencedor.
A legislação relativa a prazos, contudo, é ambígua: a Lei de Contagem Eleitoral, de 1887, concede aos estados um prazo de 41 dias para a indicação de sua lista de eleitores, mas há outra lei com previsão de que esta seja escolhida no próprio Dia da Eleição.
Outro aspecto pouco comentado, mas instrutivo, da lei eleitoral americana concerne ao voto dos Eleitores. Como garantir que, ao registrar o nome do candidato presidencial de sua escolha, eles se mantenham fiéis ao resultado do voto popular? Vários estados aprovaram leis específicas sobre o tema, mas ainda assim, em 2016, sete Eleitores quebraram o compromisso de votar no candidato da lista da qual faziam parte (cinco contra Hillary Clinton, dois contra Trump).
Por fim, existem dispositivos legais para lidar com casos de controvérsia sobre o resultado do voto popular – mas eles variam de um a outro estado – e com a eventual ocorrência de discrepância na composição do Colégio Eleitoral: em última instância, eleição do presidente pela Câmara, mas por voto de bancada, não dos Deputados, o que favorece os republicanos.
Muitos estados aprovaram leis determinando explicitamente que a lista de Eleitores de cada estado não pode contrariar o resultado das urnas. Mas, em sua decisão sobre o caso Gore Vs. Bush, a Suprema Corte abriu uma brecha nessa armadura jurídica, ao dispor que os legislativos estaduais “podem, se assim escolherem, indicar eles mesmos os Eleitores”.
Levando-se em conta, ainda, a informação de que inexiste nos Estados Unidos algo parecido com uma autoridade eleitoral formalmente neutra e independente, como a nossa Justiça Eleitoral – ao contrário, em todos os níveis a solução das pendências está a cargo de políticos, em conjunção com órgãos judiciais altamente partidarizados –, somos levados a aceitar o juízo do articulista, segundo o qual os principais obstáculos que impedem os legislativos estaduais de ignorarem o voto popular não são jurídicos, mas políticos.
Eleições contenciosas
Em suas linhas gerais, esse complicado arcabouço jurídico foi montado em 1887, como resposta ao impasse criado em torno do resultado da eleição de 1876, quando os partidários de um e outro candidato – o democrata Samuel Tilden e o republicano Rutherford Hayes – confrontaram-se no Congresso, cada um dos lados brandindo sua própria lista de Eleitores, em meio a denúncias generalizadas de fraudes e irregularidades.
Os especialistas são unânimes em criticar essa lei, no dizer de muitos de obscuridade impenetrável. Mas ela veio como remendo em um sistema normativo lacunar e caótico, que se formou anarquicamente, como sedimentação de respostas dadas, em diferentes momentos históricos, a problemas práticos encontrados na aplicação do texto constitucional.
Caótico e irracional como possa ser, esse sistema funcionou satisfatoriamente e pode se gabar de sua invejável longevidade. Com efeito, durante quase 140 anos, eleições presidenciais foram disputadas nos EUA e, em todas, o derrotado se dobrou ao resultado das urnas, cumprindo galhardamente seu papel no ritual – como Hillary Clinton, que, no dia seguinte ao pleito, congratulou seu adversário e lhe desejou sucesso na condução do País, embora tenha sido atacada por ele com espantosa agressividade e o tenha vencido no voto popular.
Não assim agora.
É verdade, houve o precedente de 2000. Mas as duas situações não são comparáveis. Então o candidato democrata vencera no voto popular e estava certo de ter sido vitorioso no único estado que lhe faltava para confirmar o resultado das urnas no Colégio Eleitoral. E mesmo assim aceitou a decisão da Suprema Corte em seu desfavor, tomada por maioria de um voto, em uma Corte partidariamente alinhada.
A situação de hoje é bem diferente.
Embora tenha perdido a eleição por margem expressiva (mais de seis milhões de votos populares, e 74 votos no Colégio Eleitoral), Trump está patrocinando uma contestação inédita por sua amplitude e pela fragilidade das alegações em que se apoia. Enquanto isso, pressiona legisladores republicanos nos estados-alvos a se valerem da maioria que detêm nas respectivas câmaras para inverter o resultado das urnas, formando listas fechadas, com nomes fiéis.
Seria uma expressão paroxística de distúrbio psicológico se a manobra fosse obra isolada de Trump. Não é. Apesar das vozes republicanas que vêm-se fazendo ouvir crescentemente em prol da aceitação dos fatos, a verdade é que Trump continua a contar com o apoio ativo, ou com a anuência passiva da maioria dos políticos republicanos eleitos e dos dirigentes partidários. E sondagens de opinião indicam que – falsas como são – suas denúncias de fraude generalizada na eleição de 3 de novembro calam fundo em seu eleitorado.
Mas não é tudo. Ao avaliar o sentido da movimentação de Trump, é preciso considerar também o que seus aliados estão a fazer em suas respectivas esferas. Aqui, merece registro a disposição do poderoso Mitch McConnell, líder da maioria no Senado, de confirmar, com o apoio unânime de seus pares, a nomeação para a Suprema Corte da ultraconservadora Amy Coney Barret, poucos dias antes da eleição presidencial, que tudo indicava terminaria com a vitória de Biden. E a impavidez com que o mesmo McConnell, depois de encerrada a contagem de votos, continua validando juízes federais escolhidos a dedo por Trump por seu perfil ideológico. O apoio tácito, ou explícito, da máquina republicana a Trump não é fortuito: em que pesem as diferenças pontuais, eles travam o mesmo combate.
O que nos leva a encarar de frente a realidade perturbadora. Trump obteve um resultado eleitoral surpreendente – em termos absolutos e relativos –, logrando avançar em terrenos tradicionalmente inóspitos aos republicanos – em particular o eleitorado latino. E não realizou esses feitos apesar, mas por ser e se apresentar exatamente como quem é.
Tratei em outro lugar do fenômeno Trump[3]. Não vou me repetir: direi apenas que ele expressou o inconformismo de amplas camadas da população americana, previamente trabalhadas por intensa propaganda erguida sobre uma concepção da política como modalidade de guerra. Como argumenta convincentemente uma estudiosa do tema, o mito da fraude eleitoral – manejado sistematicamente para desqualificar o voto de setores subordinados da sociedade – foi já há décadas incorporado ao repertório dessa propaganda[4].
Nessa perspectiva, a renitência de Trump assume um sentido político mais geral, e a eleição de 2020 passa a ser vista como um caso de eleição contenciosa.
A noção foi cunhada pelos editores de livro pioneiro, que a definiam assim: “disputas envolvendo grandes desafios, com diferentes graus de severidade, à legitimidade dos atores, procedimentos ou resultados eleitorais”[5]. Norris e colegas formulam hipóteses sobre a natureza e os condicionantes do fenômeno, sem dar, a meu ver, a devida ênfase à ação deliberada de atores coletivos. Mas não caberia insistir nesse ponto. O que importa é expressar minha forte discordância em relação a um aspecto de máxima relevância para a análise que faço aqui. Segundo os autores, as eleições contenciosas são características de sistemas políticos pouco institucionalizados, situação encontradiça nos países da periferia. Os países centrais (os autores não usam essas categorias) estariam defendidos do fenômeno por fortes barreiras. Em suas palavras,
“Deixando de lado a hipérbole … esses problemas refletem uma forma não letal da doença. As democracias estabelecidas há muito tempo podem ser consideradas como semelhantes a pacientes saudáveis, onde as instituições acumularam reservas culturais de aceitação em eleições sucessivas, que as tornam amplamente imunes a uma grave crise de legitimidade”[6]
O erro consiste, no meu entender, em tomar as instituições como dados objetivos, “coisas”, que determinam exteriormente o comportamento dos atores políticos e sociais, e não como expressões de compromissos sociais cristalizados, que mantêm uma relação dialética com os agentes e suas práticas. Por essa via, os autores se interditam de pensar nos processos de desinstitucionalização (ou desobjetivação) das relações sociais, e não conseguem sequer imaginar a possibilidade de que os países em questão venham a viver situações graves de crise hegemônica.
Pois é disso que se trata o empenho do presidente dos Estados Unidos em deslegitimar o processo eleitoral, coluna mestra do sistema político que seu país sempre projetou como modelo para todo mundo.
Estados Unidos: eleição, crise de hegemonia, implicações internacionais
Quanta água passou debaixo da ponte desde que Bush, pai, pôs em voga a expressão “nova ordem mundial”! Isso se deu em 1991, quando os Estados Unidos lideraram uma coalizão enorme na guerra do Golfo. Pouco tempo depois, a União Soviética estava em pedaços e, com ela, findava também a Guerra Fria.
Na ordem internacional que se desenhou a seguir, a democracia, em sua versão diluída, e a “economia livre de mercado” se conjugavam, como peças axiais do projeto de globalização neoliberal que lhe infundia vida.
Desde então, mudanças cumulativas minaram os pilares materiais sobre os quais essa ordem repousava, a saber, a superioridade econômica dos Estados Unidos e aliados, de um lado, e, de outro, sua supremacia militar indiscutível. A manifestação mais notável desse processo no plano das relações internacionais é o soerguimento da Rússia e a ascensão da China.
Mas a ordem neoliberal foi corroída por dentro também, pelos deslocamentos sociais nela implicados, com as respostas que os grupos sociais negativamente afetados por eles produziam.
Desconsiderado esse pano de fundo, o fenômeno Trump se torna incompreensível. Sem ele não entendemos a inflexão feita por seu governo na conduta exterior dos Estados Unidos: atritos com aliados históricos; denúncia de acordos e organizações multilaterais; desprezo dos direitos humanos e da democracia como princípios normativos; defesa indisfarçada de interesses econômicos egoísticos e disposição manifesta de empregar em sua promoção meios coercitivos; competição geopolítica e guerra tecnológica-comercial com a China.
Expressão de uma sociedade profundamente cindida, Trump rejeitou o papel de direção intelectual-moral que os Estados Unidos, desde a Segunda Guerra Mundial, sempre se atribuíram.
Hoje, dias depois da derrota eleitoral que amargou, a pergunta é inescapável: assistiremos com seu sucessor a uma forte mudança de rumo? Mais especificamente, veremos com Biden os Estados Unidos de volta à condição de regente de orquestra na execução da partitura liberal-internacionalista?
A análise, mesmo quando teoricamente bem amarrada, não autoriza profecias. Os elementos que se combinam na produção de um resultado histórico são incontáveis, e vários deles, imprevisíveis. Tudo que podemos dizer, para terminar, é que a eleição ainda inconclusa de 2020 contribui para que olhemos essa possibilidade com grande ceticismo.
*Sebastião Velasco e Cruz é professor titular do Departamento de Ciência Política da Unicamp e do Programa San Tiago Dantas de Pós-Graduação em Relações Internacionais, UNESP/UNICAMP/PUC-SP.
Publicado originalmente no site do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu).
Notas
[1] Schumpeter, Joseph A., Capitalism, Socialism and Democracy. London, George Allen & Unwin, 1976, p. 271.
[2] Cf. O’Donnell, Guillermo, Democracia, agência e estado. Teoria com intenção comparativa. São Paulo, Paz e Terra, 2011.
[3] Cf. Velasco e Cruz, Sebastião, “Uma casa dividida: Donald Trump e a transformação da política americana”, in _______ e Neusa Bokikian (orgs.) Trump: Primeiro Tempo. Partidos, políticas, eleições e perspectivas. São Paulo, Editora UNESP, 2019, pp. 11-43.
[4] Minnite, Lorraine C., The Myth of Voter Fraud. Ithaca & London, Cornell University Press, 2010.
[5] Norris, Pippa, Richard W Frank e Ferran Martínez I Coma (eds.), Contentious Elections. From Ballots to Barricades. New York, Routledge, 2015, p. 2.
[6] Id. Ibid, p. 12.