Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE*
O quadro atual do país nos leva a uma conjuntura da necessidade urgente de maior ativismo da esquerda, tendo como primeiro passo tornar o 19 de Junho no maior movimento de rua dos últimos anos
A luta social no Brasil historicamente passa por ciclos muito influenciados pelas ondas econômicas e formato de interação da economia e sociedade nacional com o Imperialismo internacional. O final da ditadura empresarial-militar, a partir do final da década de 1970, foi fruto, de um lado da crise econômica e do ascenso das lutas sociais, intensas, nas fábricas, bairros e ruas.
O conjunto do ciclo que se inicia, aproximadamente em 1976, com a retomada de movimentos sindicais e de lutas de bairros, inicialmente em São Paulo e posteriormente no restante do país e que se consolida com a reconstrução das grandes organizações estudantis, operárias e camponesas (UNE, UBES, CUT, MST) nos primeiros anos da década de 1980.
A luta social cíclica culmina na década de 1980 com as grandes manifestações pelas Diretas Já e a Greve Geral de 1987 contra o governo Sarney e as políticas de arrocho salarial característicos daquele governo. Esse longo ciclo de disputas sociais enfrenta uma forte derrota, primeiramente de cunho eleitoral e posteriormente de desorganização dos movimentos sociais em 1995 quando, após os movimentos retirarem Collor de Mello da presidência, temos a eleição de FHC e o primeiro grande momento neoliberal destrutivo que leva a quase destruição do Sindicato dos Petroleiros – naquela altura muito forte – e, também, a onda privatista que desmonta parte do circuito industrial brasileiro (privatização da CVRD, Telebrás, Embratel).
A continuação das lutas sociais e o fracasso do ciclo econômico neoliberal em sua primeira fase (FHC), leva ao fortalecimento de instituições sindicais e da sociedade civil, culminando com o experimento dos governos sociais reformistas do PT.
Esses governos compuseram de fato um interlúdio não neoliberal, resultante de cinco movimentos conjunturais-estruturais da sociedade brasileira que possibilitou a conformação de um bloco histórico inédito na sua história:
i) resultante da crise de direção da burguesia brasileira após o ajuste estrutural neoliberal do governo FHC;
ii) a adequação da resistência dos movimentos sociais representados organicamente em torno das grandes organizações populares (CUT, MST);
iii) um período de crescimento econômico puxado pelo setor exportador de commodities;
iv) um ajuste fordista periférico inédito na história brasileira (expansão da renda interna com distribuição); v) manutenção das condições macroestruturais rentistas.
A retomada neoliberal parcialmente interrompida com a ascensão do PT, se colocou como nova etapa conjuntural. Seis componentes parecem ser centrais neste novo ciclo neoliberal autoritário:
i) A retomada pela burguesia brasileira dos mecanismos clássicos de superexploração do trabalho, desfazendo os mecanismos de recomposição salarial e elevação do salário médio resultante das reformas salariais petistas; por outro, a imposição de jornadas de trabalho mais intensivas e mais flexíveis aos interesses do capital, o que estabelece a elevação da taxa de exploração média da economia com a pretensão de recuperação da taxa de lucro, este foi o objetivo central da LC 13.467/17, EC 06/19.
ii) O controle por parte do capital transnacional das fontes de produção de petróleo estabelecidas no pré-sal e das tecnologias de prospecção controladas pela Petrobras, o que poderá no curto prazo atrair uma onda de investimentos que viabilize o ciclo neoliberal, porém esta possibilidade está na dependência de uma retomada de crescimento das principais economias centrais que viabilize um novo ciclo de crescimento do preço do petróleo e das commodities minerais em geral.
iii) O desmonte e privatização de toda estrutura energética nacional (Eletrobras), aprofundando dois movimentos: a) o definitivo desmonte da estrutura industrial brasileira, tornando o “Padrão de Reprodução de Especialização Primário-Exportadora”, baseado na produção agrária e mineral as únicas cadeias produtivas nacionais; b) definindo uma área de rentismo (com a liquidação de propriedades estatais) para o setor financeiro nacional e internacional.
iv) O acirramento do controle fiscal e implementação de um modelo de equilíbrio fridemiano (Milton Friedman), via Emenda Constitucional 95/16 (Novo regime Fiscal) o que tem dois objetivos: dotar toda a capacidade superavitária do Estado para transferência de rendas para o centro financeiro global e; inviabilizar o uso do orçamento fiscal como ferramenta de acordo social e estabilização de médio prazo de um novo governo popular-reformista.
v) O avanço ideológico de uma cultura individualista-mercantilista total, algo que poderíamos chamar de totalitarismo neoliberal, cujo epicentro se focaliza em atitudes conservadoras, homofóbicas, racistas e de misoginia, favorecendo o discurso da direita, inclusive de segmentos fascistas, e acuando ainda mais a esquerda e as concepções democrático-populares.
vi) A instrumentalização política de setores militares neofascistas, o que se convencionou denominar de Partido Militar. Florestan Fernandes em um dos seus últimos artigos, afirma, com enorme vislumbre, que a “questão militar” é a principal questão candente da situação histórica atual.[1] Ela se põe “no núcleo do poder, da ruptura definitiva com o passado e com as perspectivas de um futuro para a democracia”. Como nos expõe Florestan, os militares “em suas cúpulas, foram amarradas a uma defesa reacionária da ordem existente, no plano interno e no palco internacional”.
A conjuntura conforma, portanto, o acirramento de uma dupla crise: orgânica, sob o ponto de vista político de ruptura da institucionalidade estabelecida com a CF/88 e; estrutural, sob o ponto de vista econômico, com a tentativa de recompor o declínio da rentabilidade dos principais segmentos produtivos (primário-exportadores) e de aprofundamento do padrão primário-exportador, com sua completa integração as condições de dependência ao centro econômico estadunidense e as condições de expansão financeira do capital transnacional.
Essa configuração de crise política e econômica está longe de uma solução, sendo que uma nova repactuação autoritária não está descartada, sendo que movimentos de aprofundamento golpista estabelecidos por Bolsonaro e sua “entourage” militar é um risco muito forte neste momento.
O quadro nos leva a uma conjuntura da necessidade urgente de maior ativismo da esquerda, fortalecendo a proatividade de ações de ruas, inclusive com uma agenda extremamente mais acirrada do que a atual. Porém o primeiro passo é tornar o 19J o maior movimento de ruas dos últimos anos, o que requer uma capacidade mobilizadora que leve as forças democráticas e populares ao máximo da sua capacidade convocatória e de enfrentamento, inclusive com a presença de todas suas maiores lideranças populares e agentes institucionais deste campo nas ruas no próximo sábado, me refiro a governadores, prefeitos, senadores, deputados federais e estaduais, vereadores e as grandes lideranças sociais.
Barrar o aprofundamento do golpe neofascista é a única tarefa central no momento!
*José Raimundo Trindade é professor do Programa de Pós-graduação em Economia da UFPA. Autor, entre outros livros, de Crítica da Economia Política da Dívida Pública e do Sistema de Crédito Capitalista: uma abordagem marxista (CRV).
Nota
[1] FERNANDES, Florestan. Pensamento e ação: o PT e os rumos do Socialismo. São Paulo: Editora Globo, 2006.