Não houve arrego e nem era golpe

Marina Gusmão, Cobra doce.
image_pdf

Por JULIAN RODRIGUES*

O impeachment está fora do cenário imediato e a terceira via se enfraquece.

O 7 de setembro bolsonarista nunca foi verdadeiramente o dia de tomar a sede do STF ou decretar estado de sítio. Até porque, o golpe já foi dado – começou em 2016. Desde lá, vivemos um coup encours, um putsch in progress. Bolsonaro nunca escondeu seu objetivo de fechar o regime.

Bolsonaro já está no governo. E os militares também. Para que dar um golpe agora? Quem impediria um golpe bolsonarista? As Forças Armadas – que majoritariamente apoiam o ex-capitão? Ele segue tendo maioria na Câmara e não está preocupado com o agora, mas sim com 2022. Não é um governo “normal”; mas disruptivo – blefa, ameaça, alardeia golpe todo dia.

Embora venha perdendo apoio popular, o presidente ainda tem 25% de aprovação. O neofascismo hoje é uma corrente de massas no Brasil. E mostrou sua força nas ruas dia 7.

Bolsonaro se reposicionou. Arreganhou os dentes. Mostrou que tem musculatura. Deixou nítido que não vai “cair de maduro”. Re-aglutinou também sua base parlamentar. Rodrigo Pacheco fechou o Senado – Arthur Lira fez a fala mais escorregadia possível. Ele colocou o golpe no centro das manchetes. Testou novos limites e mandou muitos recados.

Análises impressionistas, sejam alarmistas ou triunfalistas, só atrapalham o campo progressista. Erraram os setores que defenderam cancelar as manifestações dos movimentos sociais no dia 7. A meta dos neofascistas era colocar mais gente nas ruas. Contudo, a movimentação esteve muito longe de um tal “flopou”. Autoengano não ajuda a armar nosso campo.

Mourão, o vice, não rompeu com Bolsonaro –   esteve ao seu lado em Brasília   e depois afirmou que não há clima para impedimento do presidente. Ou seja, a operação impeachment fica ainda mais complexa.

Bolsonaro avança e recua. Faz parte do jogo.  Em meados de abril do ano passado fez um pronunciamento em rede nacional bem   equilibrado, até negou a cloroquina. O bom senso não durou poucos dias. Há muita inteligência política nas ações do líder neofascista.

Não houve arrego nenhum na nota formal desta quinta, 9 –   todo mundo sabe que não foi escrita por Bolsonaro. É um passo da dança. Bolsonaro colocou as fichas na mesa, mostrou os dentes –  reafirmou que não vai se deixar derrotar, recolocou-se no jogo eleitoral (“se não me quiserem, vão ter que engolir o Lula”).

A reação “das elites” mostrou apreensão, mas foi   comedida   e morna, seja   a do STF, da mídia, ou dos  partidos que supostamente vocalizam a “burguesia neoliberal não fascista”. O recado para ele   foi “você exagerou, recue, nos ajude a te ajudar”. Ato contínuo, Bolsonaro encena o tal arrependimento. Houve muita negociação nos bastidores – provavelmente, inclusive, sobre o destino do clã familiar.

Ao radicalizar demais sua base fascistóide, Bolsonaro instiga essas coisas como os bloqueios de estradas pelos caminhoneiros e outras bizarrices. Decepciona muita gente dele ao pretensamente se compor com as “instituições”. O que muitos de nós desprezamos como comportamento de “gado” reflete, na verdade, uma organicidade, disciplina, firmeza ideológica, disposição de luta impressionantes – que muita falta faz à esquerda.

Não se deve, entretanto, superestimar a frustração da base neofascista.  Já está sendo reorientada, tanto por Bolsonaro (“deixa acalmar amanhã”), como pelos influencers deles – Bannon/Carluxo giram a opinião dessa turma em 48h. Se for necessário, o neofascismo descartará   setores mais extremados que não sigam sua orientação (é só nos remetermos às experiências históricas, como na ascensão do nazismo na Alemanha).

O “recuo” de Bolsonaro na verdade é um reposicionamento provisório. Esvazia pruridos pró-impeachment tanto de farialimers como dos Partidos (PSD/DEM/PSL/PSDB). Ademais, murcha o ato pró-Doria do dia 12 (a manifestação do MBL nada tem a ver com derrotar Bolsonaro, mas sim com vetar Lula e empinar o governador tucano paulista). Perdeu fôlego a micareta oposicionista fake do próximo domingo.

Não superestimar a força do neofascismo. Não haverá tanques nas ruas amanhã, nem PMs ou milícias matando pessoas descontroladamente. Ao mesmo tempo, é necessário não subestimar as forças do neofascismo. Bolsonaro não derreteu. A grande burguesia e boa parte das classes dominantes seguem divididas –  não  decidiram o que fazer, além de impulsionar uma terceira via.  Mas não  vão operar agora a derrubada de Bolsonaro.

A luta contra o bolsonarismo é muito mais dura do que a luta contra Bolsonaro. E não basta enfrentar o neofascismo sem enfrentar o neoliberalismo. Sem ilusões com a grande burguesia, com supostos setores democráticos dos endinheirados – foram eles que rasgaram a constituição de 88 e viabilizaram o bolsonarismo.

Respirar fundo. Equilibrar as análises. Pensar em termos estruturais-  históricos, analisando as relações entre as classes sociais, o cenário internacional, relações entre a superestrutura política e a infraestrutura. Menos pensamento desejante. Mais rigor.

Ruas e redes. Organização de base. Giro ao território. Formação política. Encarar as guerras culturais, ideológicas. Defender um programa de esquerda, de reformas estruturais –  sem medo. Fortalecer o campo democrático-popular. Combinar luta institucional com luta social e cultural. Parar de ridicularizar o bolsonarismo –  entender o tamanho da crise e da defensiva em que nos encontramos.

2022 não é 2002. O cenário segue instável, confuso. Bolsonaro se posiciona para seguir sendo o anti-Lula. E para tumultuar todo o processo. Nada está dado. Sem luta social, sem mobilizações nas ruas estaremos em desvantagem. Não dá para jogar parado, achando que Lula está quase eleito. Derrotar o programa de Guedes, o autoritarismo neofascista e reconstruir/transformar o Brasil vai exigir muito mais de todas nós. A começar por estudar, respirar. Pensar muito antes de fazer (e difundir) “análises” de conjuntura cheias de desejos e carentes de fatos.

*Julian Rodrigues é professor e jornalista, ativista LGBTI e de Direitos Humanos.

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES