Ideologia e distopia

Imagem: Silvia Faustino Saes
image_pdf

Por SERGIO SCHARGEL*

Ideologia é um daqueles termos complicados de definir e que sofre extensivo debate nas ciências sociais dado sua polissemia. Não que se discorde de seu significado, é consenso que implica uma visão de mundo, um sistema de crenças, mas o dissenso gira em torno de sua extensão: até que ponto vai a ideologia? Em outras palavras: até que ponto vai esse filtro do real? Pode a ciência ser ideológica? E a arte?

Nesse ponto, há dois principais caminhos possíveis: (a) ideologia como sistema de crenças não científico, interpretação distorcida da realidade; (b) ideologia como fenômeno global, que abrange todas as esferas e não isenta nem mesmo a ciência ou a arte. Uma divisão que polarizou os estudos sobre ideologia desde que o termo apareceu pela primeira vez, empregado durante a Revolução Francesa.

Mas tomemos partido aqui da segunda interpretação. Não sem antes ressaltar que, claro, não estamos tirando qualquer valor objetivo da arte ou da ciência ao afirmar que estas também não estão imunes à ideologia – lembremos de todos os mecanismos que ambas desenvolveram para coibi-la –, apenas rechaçamos aqui a pretensão positivista de absolutização do real através do científico. Mas há um gênero artístico-literário em particular que lida de forma curiosa com a ideologia: a distopia.

Karl Mannheim, teórico que estudou o conservadorismo, percebeu a ligação da ideologia com a utopia em seu livro Utopia e ideologia. Paul Ricoeur, em seu livro homônimo, destrincha não apenas as posições de Mannheim, mas desenvolve a discussão ao atravessá-la por outros teóricos. Ambos percebem que a ideologia atua como mola propulsora para uma interpretação que sacraliza um possível, daí a utopia. Mas ambos ignoram o curioso aspecto contrário da ideologia: a sua visão sobre o lado oposto.

Veja bem, se a ideologia é responsável por sacralizar um sonho sob a forma de utopia, ela também se torna igualmente responsável por imaginar um pesadelo relacionado à ideologia oposta. Em outras palavras, a distopia se torna o meio literário por excelência para destilar ataques políticos. O futuro arrasado pelos outros, o possível futuro impossível, um pesadelo em que a ideologia oposta a do escritor é imaginada como totalitária, dominante, hegemônica.

Só que isso não é novidade. A distopia surge, historicamente, como um gênero literário por si só intrinsecamente político. Talvez o gênero mais político que há, ao menos junto da sátira. George Orwell, como sabemos, escreve 1984 e Revolução dos bichos para atacar o Stalinismo. Aldous Huxley é mais sutil em seu Admirável mundo novo, mas as inspirações políticas e sociais são também notáveis. Evgueni Zamiátin, com Nós, não falha em mesmo antecipar algumas das políticas do Stalinismo. Assim, como negar o caráter político de um gênero que nasce — e que se quer — ideológico?

O século XX trouxe violência o suficiente para alimentar a criatividade de uma geração de escritores pessimistas, em suas várias frentes. A distopia é apenas um desses vários efeitos. Um gênero hiperbólico que desenha verdadeiros pesadelos ficcionais como ferramenta para atacar pesadelos do real. Ao menos esta é sua origem, um método de criar violência estética para lutar contra a barbárie. Claro que, no século XXI, essa função foi deturpada.

Pois a distopia permanece como método de ataque sobre ideologias opostas, isto é imutável. Bernardo Kucinski mira no bolsonarismo e na ditadura militar quando escreve A nova ordem, Margaret Atwood no fundamentalismo cristão e na extrema-direita reacionária com O conto da aia e Os testamentos. Mas algo mudou, ou ao menos se tornou mais evidente: a distopia, ela também, foi capturada pela barbárie. Não é mais apenas ferramenta literária de luta, tentativa de alertar contra a destruição, mas de espalhá-la. Mais do que nunca, a disputa ideológica e política transbordou à distopia.

Isso porque começaram a se disseminar distopias da extrema-direita. Primeiro temos o já clássico de A revolta de Atlas, de Ayn Rand. Exemplos brasileiros também não faltam, ecoando velhos e conhecidos espantalhos como o “combate à corrupção” e o “comunismo”. O doutrinador é um exemplo, no qual um super-herói, versão pouco criativamente inspirada no Justiceiro, se dedica a chacinar políticos. Muito mais explícito, Destro imagina um Brasil completamente destroçado pelo domínio do comunismo. “A simples existência desta HQ já deve ser comemorada como histórica e pioneira no Brasil”, diz o site Terça Livre, de Allan dos Santos, investigado no inquérito das fake news.

O impulso ideológico sobre a distopia tampouco se limita aos escritores: o público responde em massa. Naturalmente, não se espera que o público leitor de A nova ordem seja formado por bolsonaristas ou simpatizantes, mas por aqueles que detestam o governo absurdo de Bolsonaro, distópico em si. Com a eleição de Donald Trump, 1984 voltou à lista dos livros mais vendidos nos EUA. Antes, com Barack Obama, fora a vez do livro de Rand. Conservadores escrevem sobre um futuro arruinado por liberais, liberais escrevem sobre um futuro arruinado por conservadores. E o público, disposto a qualquer câmara de eco que corrobore com sua ideologia política e demonize a oposta, migra conforme a distopia da vez.

A distopia imprime um ethos, acentuado em época de recessão democrática mundial: cada ideologia política passa a imaginar um futuro em que o grupo de oposição torna-se supremo e totalitário. O possível futuro impossível, a ideia de que o presente caminha à destruição, é a força motriz por trás da distopia. Rejeitando o preconceito, é possível se fazer boa literatura panfletária. Exemplos históricos não faltam. Mas também não faltam exemplos contemporâneos da literatura distópica sendo utilizada sem qualquer pretensão com a forma ou conteúdo, apenas como meio de ataque às ideologias opostas.

Sergio Schargel é doutorando em ciência política na UFF e em literatura brasileira na USP.

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
3
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
4
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
5
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
11
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
12
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
13
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
14
A voz da saga
30 Nov 2025 Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO: Prefácio do livro “Melhores contos”, de João Guimarães Rosa
15
Por que a Inteligência artificial não faz justiça? – 2
29 Nov 2025 Por ARI MARCELO SOLON & ALAN BRAGANÇA WINTHER: Os fundamentos da ciência da computação e da filosofia do direito mostram que a Inteligência Artificial é estruturalmente incapaz de realizar justiça, pois esta exige historicidade, interpretação contextual e uma "variável caótica" humana que transcende a mera racionalidade algorítmica
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES