Mike Davis (1946-2022)

Imagem: Dóra Maurer
image_pdf

Por SEAN PURDY*

Obituário do historiador, recém-falecido

O brilhante historiador marxista, Mike Davis, faleceu em 25 de outubro após uma longa batalha contra o câncer. Militante ativo da esquerda desde seu tempo como secundarista no início dos anos 1960, Mike Davis começou escrever nos anos 1980, lançando uma série de livros pioneiros sobre a classe trabalhadora norte-americana, a cidade de Los Angeles, a história ambiental, o imperialismo, a comunidade latina nos Estados Unidos, as favelas ao redor do mundo, a gripe aviária e diversos outros assuntos.

Será lembrado como um dos mais inovadores historiadores da sua geração que via tudo – economia, política, arquitetura, música, filmes, literatura, natureza, tecnologia – como espaços de lutas de poder na sociedade. E não tinha nenhuma dúvida em que lado ele estava: com a classe trabalhadora e os oprimidos contra as estruturas econômicas, políticas e militares dos Estados Unidos e todos os brutais impérios.

Trabalhou como açougueiro e caminhoneiro na década de 1960 enquanto militava no movimento por direitos civis, nos movimentos estudantil e antiguerra e nos sindicatos. Por dois anos, foi filiado ao Partido Comunista dos Estados Unidos e militava com Angela Davis em Los Angeles, sendo expulso em 1968 por ter criticado a invasão de Tchecoslováquia pela União Soviética. Formou-se em História na Universidade de California em Los Angeles (UCLA) e ganhou uma bolsa de estudos para fazer pós-graduação na Escócia. Lá participou do grupo trotskista, International Marxist Group (IMG), junto com Tariq Ali e Robin Blackburn. Não terminou seus estudos de pós-graduação. Entre 1980 e 1986, trabalhou na revista New Left Review onde começou escrever.

Seu primeiro livro, ainda inédito em português, Prisoners of the American Dream, foi lançado em 1986. É uma extensa exploração da questão da inexistência nos Estados Unidos de um partido de trabalhadores das massas, analisando, numa série de ensaios, a economia política e o desenvolvimento dos sindicatos e partidos da esquerda desde o século XIX até o surgimento da Nova Direita na década de 1980. Louvado para sua análise sóbria de poder e classe social no maior país capitalista do mundo, o livro foi republicado várias vezes.

Mike Davis se tornou famoso com seu segundo livro, Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles, em 1990. (Ironicamente, o livro foi baseado na sua tese de doutorado que foi rejeitada na UCLA). Começa com a história da comunidade socialista de Llano, localizado perto de Los Angeles, cujos militantes tentaram montar uma alternativa comunitária entre 1914 e 1918. Os prédios da comunidade ainda existiram quando Mike Davis estava redigindo o livro e ele sugere que Llano era a “fantasma” de um futuro alternativo para Los Angeles. Outros capítulos exploram o movimento sindical na cidade, a imprensa, a máfia, a Igreja Católica e a teologia de libertação entre padres latinos e a arquitetura brutal da cidade dividida entre uma rica elite e a classe trabalhadora imigrante.

Talvez o mais importante nesse livro seja sua análise da brutalidade racista da polícia de Los Angeles, prevendo a grande rebelião multirracial que explodiria na cidade em 1992 contra a polícia. Mike Davis se tornou, em seguida, um dos mais respeitados escritores sobre arquitetura urbana nos EUA, inspirando dezenas de dissertações, teses, livros e artigos acadêmicos. Foi professor de teoria urbana em várias universidades nos anos seguintes. É notável que suas duas visitas na Universidade de São Paulo tenham sido organizadas pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) e não pelo Departamento de História.

Seu próximo livro, Ecologia de medo: Los Angeles e a imaginação de desastre, publicado em 1996, abordou a história do meio ambiente. Nele, Mike Davis mostra que vários supostos desastres naturais na Califórnia – incêndios silvestres, tornados, ataques de lobos das montanhas contra pessoas, entre outros – na verdade eram consequências de ações humanas decorrentes do desfreado desenvolvimento suburbano, fake news da mídia convencional e a brutal divisão de classe, poder e raça na sociedade. No controverso capítulo, “As razões de deixar Malibu queimar”, argumenta, por exemplo, que o Estado deve gastar dinheiro para proteger os pobres imigrantes latinos que morrem regularmente em incêndios em miseráveis cortiços ao invés dos bilhões gastos para proteger bairros ricos como Malibu de incêndios silvestres. Dois dos capítulos tratam de uma análise do tema da destruição de Los Angeles na literatura e cinema de ficção cientifica.

Provavelmente, os leitores brasileiros conheçam Mike Davis mais por seu magnum opus, de 2001, Holocaustos coloniais: a criação do Terceiro Mundo, uma análise profunda de imperialismo, economia política global e fome no Brasil, na China e na Índia no século XIX e no início do século XX. Adotando uma abordagem de ecologia política com viés marxista, Mike Davis argumenta convincentemente que as terríveis fomes da época – que mataram dezenas de milhões na China e na Índia e até 500 mil no Brasil – não foram o resultado do fenômeno climático El Niño, mas sim do imperialismo inglês e as classes dominantes locais interessadas em abrir países colonizados, formal ou informalmente, ao mercado mundial. Incluindo várias imagens horríveis de pessoas famintas, Mike Davis destaca que não são ilustrações, mas “acusações”.

Holocaustos coloniais também tem capítulos extraordinários sobre a história social das fomes e a resistência dos povos. No caso do Brasil, Mike Davis se baseia no trabalho pioneiro do geografo brasileiro, Josué de Castro, autor do Geografia da fome (Todavia), mostrando que a guerra de Canudos e a popularidade de figuras como Padre Cícero têm muita a ver com a luta contra fome no imaginário popular do Nordeste.

Ao longo das duas primeiras décadas do século XXI, Davis teve uma produção profícua, publicando uma dúzia de livros, sozinho ou com colaboradores (incluindo os excelentes, Planeta Favela e O monstro bate à nossa porta: a ameaça global da gripe aviária) dezenas de artigos em revistas acadêmicas além de centenas de artigos em revistas populares sobre o meio ambiente, a pandemia, o governo Donald Trump, o Partido Democrática e lutas operárias recentes nos Estados Unidos. Seu último livro, coescrito com Jon Weiner e publicado em 2020, Set the Night on Fire: Los Angeles in the Sixties, resgata a maravilhosa história dos movimentos sociais em Los Angeles durante os anos 1960, fazendo uma tremenda contribuição empírica a história social do movimento negro, ambiental, estudantil e urbano.

Mesmo sem doutorado, ele conseguiu uma posição estável como professor universitário no Departamento de História na Universidade da Califórnia (no campus de Davis) nos meados de 2000. E nunca parou de militar, participando de manifestações e fazendo intervenções políticas nos Estados Unidos e na Europa. Foi um importante (e crítico) apoiador da campanha de Bernie Sanders nas eleições primárias do Partido Democrata. Mesmo doente, Mike Davis participou de dezenas de lives nos últimos anos, focando nas políticas de Donald Trump, a pandemia e a destruição do meio ambiente.

Numa entrevista alguns meses atrás, lamentou que iria morrer em sua cama e não “lutando nas barricadas” contra o capitalismo. Mas sua militância e vasta obra anticapitalista atestam da sua vida admirável de luta. Mike Davis, presente, sempre.

*Sean Purdy é professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP). Autor, entre outros livros, de História dos Estados Unidos – das origens ao século XXI (Contexto).

 

Referências


Bibliografia de Mike Davis em português

Ecologia de Medo: Los Angeles e a Imaginação de Desastre. Rio de Janeiro: Record, 2001.

Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006.

O Monstro Bate À Nossa Porta: a Ameaça Global da Gripe Aviária. Rio de Janeiro: Record, 2006.

Cidades Mortas. Rio de Janeiro: Record, 2007.

Apologia dos bárbaros: ensaios contra o Império. São Paulo: Boitempo, 2008.

Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles. São Paulo: Boitempo, 2009.

Holocaustos Coloniais: A Criação do Terceiro Mundo. São Paulo: Veneta, 2021.

Artigos

“O coronavírus e a luta de classes: o monstro bate à nossa porta”, Blog do Boitempo, março de 2020, https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/16/mike-davis-o-coronavirus-e-a-luta-de-classes-o-monstro-bate-a-nossa-porta/

“Um terceiro Partido”. A Terra é Redonda, janeiro de 2021, https://aterraeredonda.com.br/um-terceiro-partido/

“Covid-19 e nós: Chega o monstro”. A Terra é Redonda, maio de 2020, https://aterraeredonda.com.br/covid-19-e-nos-chega-o-monstro/

“Lições de Wuhan”. Revista Movimento, abril de 2020, https://movimentorevista.com.br/2020/04/licoes-de-wuhan-por-mike-davis/

“Em um ano de peste”. Revista Movimento, abril de 2020, https://movimentorevista.com.br/2020/04/em-um-ano-de-peste/

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
3
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
4
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
5
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
9
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
10
A esquerda radical deveria apoiar Lula desde o primeiro turno. Por quê?
04 Dec 2025 Por VALEIRO ARCARY: O voluntarismo não é bom conselheiro. Ideias revolucionárias são poderosas e podem colocar em movimento milhões de pessoas até então desesperançadas. Mas é imprudente desconhecer a impiedosa força da realidade objetiva.
11
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
12
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
13
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
14
A voz da saga
30 Nov 2025 Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO: Prefácio do livro “Melhores contos”, de João Guimarães Rosa
15
Por que a Inteligência artificial não faz justiça? – 2
29 Nov 2025 Por ARI MARCELO SOLON & ALAN BRAGANÇA WINTHER: Os fundamentos da ciência da computação e da filosofia do direito mostram que a Inteligência Artificial é estruturalmente incapaz de realizar justiça, pois esta exige historicidade, interpretação contextual e uma "variável caótica" humana que transcende a mera racionalidade algorítmica
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES