Cadete, ordem errada não se cumpre!

image_pdf

Por MANUEL DOMINGOS NETO*

Apenas o povo avisado e mobilizado tomará legitimamente, para si, as rédeas do Estado

Eu vivo apertado, mas pago com gosto tuas despesas escolares, cadete. Tua farda, teu alojamento, tua comida, teu soldo, tua assistência médica, teu lazer, pago tudo. Outros, em situação pior que a minha, sem o alimento assegurado, também te custeiam. Sempre te assistiremos. Garantiremos tua velhice sem ostentação, mas plena de dignidade.

És candidato à guardião. Precisaremos de ti em situações extremas. Prepara-te para abater nossos inimigos, caso necessário. Tirar a vida de semelhantes, assumir risco de morte… A profissão que escolhestes é incomparável. É de doação sem meio termo, de sacrifício sem limites, nem poetas a descreveriam com acerto.

Há dois mil anos, Platão dizia que ninguém poderia negar beijo ao que entregasse a vida pela coletividade. Mas advertia que guardiães não poderiam tocar em ouro. Se tens amor ao dinheiro, se preferes a ribalta ao castro, se a vanglória te atrai, pegue o beco, cadete. Não nos faça de abestados. Tem sentido custearmos gente que aceita prebendas e sinecuras? Vantagens indevidas?

Homens armados por nós não podem conduzir nosso destino. Guardião que se mete a político e quer mandar em tudo é o mais covarde traidor da pátria. Pátria, cadete, não é pedaço de chão nem é Estado, entidade vocacionada para o domínio sobre todos e que vive fingindo exprimir a vontade geral. Estado é arena de disputa permanente. A luta política define sua natureza. Quanto mais autoritário, mas distante da pátria; quanto mais democrático, mais próximo à pátria.

O Estado brasileiro foi fundado por um autocrata fissurado em proteger sua dinastia. Cinicamente, pediu a todos que morressem pela pátria! A pátria somos nós, brasileiros que te custeamos, cadete. Pátria é o povo unido em comunhão de destino. É construção social permanente, mistura criativa de cores de pele, sotaques, hábitos e valores.

Pátria é caleidoscópio de crenças religiosas. Quem usa em vão o nome Deus para justificar sua sede ilimitada de mando é demagogo sem escrúpulo. Quem não gosta de negro, é inimigo da pátria. Quem menospreza mulher é traidor da pátria; quem reprime orientações sexuais, também; quem persegue reformadores sociais, nem se fale.

O Estado que nos submete está nas mãos dos ricos, que se ajoelham diante do estrangeiro poderoso. Este Estado enviou muitas vezes fileiras para massacrar homens, mulheres e crianças em nome da ordem social iníqua. Lembre-se, cadete, Estado é dominação, pátria é sociedade em comunhão! Apenas o povo avisado e mobilizado tomará legitimamente, para si, as rédeas do Estado.

Lembre-se, sem o amparo da sociedade serás um fracassado por antecipação. A força do guerreiro provém da coletividade que lhe sustenta. Prepara-te para a guerra sabendo que sociedades fragmentadas por iniquidades e submetidas ao Estado dominado por poucos não se garantem perante o inimigo. Defende-se mais facilmente quem tem vizinhança amiga. Quem menospreza a unidade sul-americana, cadete, opera contra a pátria brasileira.

Tem mais força quem conta com melhores cientistas e inventores. São estes os que permitem ver mais longe, deslocar-se mais rapidamente, se comunicar com mais eficácia, bombardear com mais potência e precisão, cuidar melhor dos feridos… Militar que nega a ciência e ataca professores, cadete, é embusteiro.

Teria muito a te falar, mas finalizo pedindo que não sigas o exemplo dos fardas-sujas que ajudaram a colocar um traidor da pátria na cadeira presidencial. Respeite a hierarquia e a disciplina. Mas não esqueças: ordem errada não se cumpre! E qualquer ordem contra o Estado democrático é errada.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e ex-vice-presidente do CNPq.

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES