A doutrina Biden

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Por RADHIKA DESAI*

Ambas as pontas da estratégia de Joe Biden – sanções econômicas e ação militar por procuração – eram delirantes

A guerra por procuração contra a Rússia é a peça central da política externa de Joe Biden de unir as “democracias” do mundo contra as “autocracias”, particularmente a China e a Rússia. Ele se gaba repetidamente de unir os aliados dos EUA – uma maioria deles está a OTAN –, como nunca ocorrera. Embora a verdadeira unidade seja, na melhor das hipóteses, irregular, até recentemente a retórica parecia funcionar. Não mais. Na sua recente cúpula de Vilnius, a desunião da OTAN borbulhou, embora não pelas razões mais discutidas na imprensa. As verdadeiras razões estão enraizadas em desenvolvimentos que ameaçam expor não apenas a estratégia de Joe Biden, mas também a OTAN.

Nesse encontro de cúpula, linhas discordantes foram amplamente discutidas. Os membros não puderam decidir sobre nenhum sucessor para Jens Stoltenberg, mas os líderes da Austrália, Japão, Nova Zelândia e Coréia do Sul participaram da cúpula pelo segundo ano. O comunicado final reiterou as preocupações da OTAN quanto “aos desafios sistêmicos colocados pela República Popular da China (RPC) à segurança euro-atlântica”. Reafirmou também “o compromisso de impulsionar… uma consciência compartilhada e de aumentar… a resiliência, os preparativos e a proteção contra as táticas coercitivas da República Popular da China, assim como os seus esforços para dividir a Aliança”.

O Presidente Emmanuel Macron liderou (uma considerável) oposição ao estabelecimento de uma presença permanente da OTAN na região do Leste Asiático, assim como à criação de um escritório em Tóquio. Embora a adesão finlandesa tenha sido aprovada, o presidente turco Erdoğan se opôs à adesão da Suécia até que Joe Biden lhe ofereceu, num encontro a bordo do Force One, não apenas jatos F-16, mas também um empréstimo do FMI.

De modo mais marcante, enquanto os membros prometeram mais uma vez aumentar os gastos e a produção de defesa e enquanto a aliança fez vários compromissos para apoiar a Ucrânia em sua guerra com a Rússia, não apenas o clamor para introduzir a Ucrânia na OTAN falhou, mas a OTAN se mostrou relutante até mesmo em apresentar um cronograma de entrada. O presidente Volodymyr Zelensky considerou isso um “absurdo” e o governo dos EUA, em troca, o chamou de “ingrato”.

Embora esse atraso tenha terminado com expressões de gratidão de Volodymyr Zelensky, uma sensação de mau presságio não pôde ser evitada. Os comentaristas atlantistas ainda se preocupam com a perspectiva de um possível desengajamento entre os EUA e a Europa em caso de vitória de Donald Trump;  ou que haja desentendimentos sobre o que fazer em relação à China. No entanto, mesmo essas preocupações não suspeitam de quão perto está hoje essa ruptura de expectativa: eis que Joe Biden está prestes a perder sua aposta militar na Ucrânia. Isso acabará com o projeto de Joe Biden de unir os aliados dos EUA, a coisa mais próxima que já existiu de uma Doutrina Biden.

Sempre um esforço em andamento, a unidade da OTAN tornou-se mais difícil conforme o poder dos EUA foi diminuindo. Nas últimas décadas, como se sabe, a principal cola que a mantém unida tem sido o poderio militar dos Estados Unidos. Se perder essa força vinculante – como tem ficado claro pela série de fracassos militares que culminaram na saída humilhante do Afeganistão – então o auto-sacrifício que Joe Biden exigiu dos europeus e, em certa medida, recebeu, no caso da Ucrânia – valerá apenas um centavo. O futuro da liderança dos EUA sobre o que resta de seus aliados e de seu principal instrumento, a OTAN, mudará.

 

Os laços fracos que unem a OTAN

Compreender tal mudança fundamental iminente requer um retorno aos fundamentos da aliança, os quais estão ainda agora semiocultos sob a aparência de unidade da OTAN.

O tão apregoado Artigo 5 pode afirmar, notoriamente, que “um ataque armado contra um… será considerado um ataque contra… todos”. No entanto, se se acha que isso obriga todos os membros a correr em defesa dos membros atacados com todas as suas forças, é preciso pensar essa questão novamente. O artigo especifica ainda que cada aliado “ajudará… tomando imediatamente… as medidas que julgar necessárias”. Posta assim, a solidariedade aliada torna-se uma questão de juízo, significando apenas que cada país membro deve ponderar sobre o que “julga necessário”.

A OTAN é considerada um exemplo poderoso do compromisso dos EUA com a Europa: desde o início da Guerra Fria, eles se encontram empenhados em defender a Europa Ocidental contra a grande e má União Soviética.  Na prática, isso resultou em esquemas “rebuscados e bem reconhecidos como tais”.

Se o leitor ficar chocado com essa menção, considere o seguinte: os EUA “ajudaram” a Europa durante as duas guerras mundiais de uma forma mais ou menos comercial; assim, pode aumentar enormemente a sua influência econômica e financeira à custa dos “aliados”. De maneira ruinosa para eles, exigiu o reembolso de seus empréstimos de guerra após a Primeira Guerra Mundial e, de forma igualmente ruinosa, exigiu alinhamento político após a Segunda.

Na verdade, a Europa pode agradecer às estrelas que a ajuda crítica e os imensos sacrifícios das forças soviéticas e chinesas garantiram a vitória na Segunda Guerra Mundial.  Ou seja, a alegada ameaça de um ataque soviético iminente na Europa Ocidental foi pouco mais do que uma invenção da imaginação muito histérica dos EUA. Foi-lhe necessário porque assim pode manter forte o seu complexo industrial militar ao longo das décadas.

 

O que os EUA querem da OTAN

Alguns argumentam que a OTAN foi criada e direcionada principalmente contra o “inimigo interno”, ou seja, as forças de esquerda e populares. Ora, a OTAN certamente ostenta um histórico nada bom sobre isso. No entanto, isso deixa de fora a dimensão internacional.

Por mais que os líderes dos EUA tenham desejado dominar o mundo capitalista como um todo, foi a própria história – infelizmente – que lhes garantiu a oportunidade de se lançar na busca desse objetivo exatamente quando tal dominação se tornou impossível: com a ascensão da Alemanha, dos próprios EUA e do Japão, o mundo capitalista já havia se tornado multipolar por início do século XX. Nenhum poder isolado poderia dominá-lo. Pior ainda, a Revolução Russa, logo seguida pela chinesa, tirou inteiramente vastas áreas do mundo do mundo capitalista.

Destemidos, os EUA persistiram, usando a OTAN na tentativa persistente de dominar a Europa. Nas palavras apócrifas de seu primeiro secretário-geral, Lord Ismay, o objetivo consistia em “manter os americanos dentro, os alemães para baixo e os russos fora” da Europa.

Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos foram razoavelmente bem-sucedidos, embora não sem uma considerável instabilidade europeia: os europeus exigiram ouro em vez de dólares durante a década de 1960, eventualmente forçando os Estados Unidos a quebrar o elo dólar-ouro em 1971. De Gaulle retirou a França do comando integrado da OTAN em 1966; e Brandt se engajou em sua Ostpolitik de melhores relações com o Bloco de Leste. Embora muitos pensem que a rivalidade interimperialista morreu após a Segunda Guerra Mundial, ela parece ter vivido desse comportamento europeu.

A Guerra Fria não terminou nem na unipolaridade nem numa divisão pacífica do poder global. O declínio econômico dos EUA tornou-se visível logo depois que ela “terminou”, de tal modo que os EUA passaram a procurar compensar o declínio econômico com agressão militar. Nestas circunstâncias, a Europa mostrou-se cada vez mais aberta à criação de estruturas de segurança autônomas que, inevitavelmente, implicaram a melhoria das relações econômicas e de segurança com a Rússia.

Com seus objetivos inalterados, mesmo quando suas capacidades diminuíram, os EUA tiveram que frustrar esses impulsos europeus. Teve sucesso com sua intervenção militar na Iugoslávia, principalmente por demonstrar a eficácia de seu poder aéreo superior e esse sucesso garantiu que, doravante, a expansão da União Europeia para o leste fosse normalmente acompanhada pela expansão da OTAN. No entanto, este não era um arranjo estável.

 

Por que os EUA não conseguem

Não advindo de uma mera afirmação “realista”, o impulso europeu em direção à autonomia resultou de diferenças históricas entre as economias da Europa continental e as economias anglo-americanas. Uma delas orientou-se produtivamente e não financeiramente e a outra financeira e comercialmente – e não produtivamente. Quatro décadas de neoliberalismo encontraram as economias da Europa emaciadas produtivamente e, por isso, mais dependentes do financiamento predatório e especulativo do que nunca.

Essas diferenças já haviam dificultado a unidade da OTAN; ademais, o declínio econômico dos Estados Unidos apenas tornou essa coesão ainda mais difícil. À medida que perdia atratividade econômica para a Europa (enquanto, além disso, a China e a Rússia ganhavam importância), enquanto os EUA confiavam na projeção militar apenas para fracassar cada vez mais espetacularmente, os impulsos europeus em direção à autonomia ressurgiam, com o presidente Macron chamando a OTAN de “morte cerebral” na cúpula de 2019 da aliança.

Este foi o contexto em que Joe Biden apostou em vencer a guerra por procuração na Ucrânia como um prelúdio para travar um conflito bélico também com a China. Sabendo que a Europa, já relutante em entrar em guerra com a Rússia, ficaria ainda mais relutante (por sólidas razões econômicas) em se juntar a qualquer empreendimento anti-chinês, Joe Biden procurou tão resoluta e completamente separar a Europa da Rússia e ligá-la aos EUA. Com a guerra da Ucrânia, a Europa não teria escolha a não ser seguir os EUA contra a Rússia agora e, mais tarde, contra a China.

No entanto, esse empreendimento teve um começo pouco promissor e agora está se desfazendo.

Organizar a unidade mesmo contra a Rússia foi difícil, pois envolveu infligir uma grande quantidade de dor econômica à Europa. Mesmo com a sorte histórica da administração Biden de ter lideranças surpreendentemente complacentes em tantas capitais, principalmente Berlim, a unidade da OTAN sobre o conflito na Ucrânia tem sido mais um espetáculo do que uma realidade, com um mínimo de real e um máximo de espetáculo no cumprimento do compromisso.

As sanções geralmente se limitam àquelas que prejudicam menos, deixando tantas empresas ocidentais ainda operando na Rússia que nos perguntamos do que trata todo esse alarido. Os suprimentos de armas se concentraram naqueles que são mais fáceis de poupar, muitas vezes obsoletos, deixando a Ucrânia com um “grande zoológico de equipamentos da OTAN”, em que os “bichos” são difíceis de usar ou de reparar com eficiência.

 

Por que a derrota na Ucrânia vai desvendar a OTAN e Biden

Ambas as pontas da estratégia de Joe Biden – sanções econômicas e ação militar por procuração – eram, agora está claro, delirantes. A primeira, que tinha por objetivos reduzir o rublo a escombros e empurrar a economia russa “de volta à idade da pedra”, tornou-se um fracasso manifesto no final de 2022, se não antes. Ao final, talvez transforme a Rússia numa grande e poderosíssima “Coreia do Norte”.

Quanto ao segundo, apesar dos bilhões em assistência militar, apesar de esgotar os estoques de armas ocidentais, apesar de descobrir os limites quantitativos e qualitativos para as capacidades de produção de armas ocidentais, apesar de complexos industriais militares astronomicamente caros, apesar de armas cada vez mais mortais, incluindo bombas de fragmentação, apesar da dependência de batalhões neonazistas, apesar da disposição dos EUA e da Ucrânia de incorrer em níveis macabros de baixas ucranianas e mercenárias, ficou claro por algum tempo que a Ucrânia está perdendo e não tem perspectiva de vencer.

O presidente Joe Biden reconheceu isso em sua reviravolta recente, ou seja, no seu recuo em oferecer à Ucrânia a adesão à OTAN ou mesmo ao lhe dar um cronograma para que isso ocorresse. A sua insistência agora renovada em não apenas não facilitar a adesão da Ucrânia, mas, ademais, exigir que a Ucrânia demonstre progresso nos requisitos reformas, em concluir um tratado de paz com a Rússia antes de poder ingressar na OTAN, um ponto repetido mais de uma vez por Jens Stoltenberg em Vilnius.

Esta é a porta de trás de saída do governo Biden do conflito na Ucrânia. E ele precisa dela graças à impopularidade da guerra nos Estados Unidos e ao fato de que estará logo mais em meio a uma campanha eleitoral prestes a entrar em pleno andamento.

Diante dessa derrota militar, não importará nenhuma outra diferença na OTAN. Os EUA têm apenas poder militar para oferecer aos aliados. Portanto, o iminente fracasso militar de Joe Biden na Ucrânia provavelmente provará a ruína efetiva da OTAN. Se os EUA não podem garantir a vitória militar, a sua utilidade para a Europa só pode ser limitada. E se a estratégia de Joe Biden fracassou nesta fase intermediária russa, dificilmente poderá ir para a final, a chinesa.

*Radhika Desai é professora do Departamento de Estudos Políticos da Universidade de Manitoba (Canadá).

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Publicado originalmente no portal CounterPunch.


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