A crise do imperativo imperialista

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Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE*

Reflexões sobre o holocausto palestino

Faz aproximadamente um ano e meio publicamos no site A Terra É Redonda o artigo homônimo intitulado “A crise do imperativo do imperialismo”. No artigo anterior tratamos da crise estabelecida a partir da guerra Rússia e Ucrânia.

Estamos agora diante da maior crise humanitária desde o holocausto judeu na década de 1940, uma contradição própria da “condição humana”, para utilizar os termos de uma autora liberal judia Hannah Arendt que afirmou algo tão preciso em relação ao mais recente crime cometido contra o povo palestino. Segundo a autora a “história conhece muitos períodos de tempos sombrios, em que o âmbito público se obscureceu e o mundo se tornou tão dúbio que as pessoas deixaram de pedir qualquer coisa à política além de mostrar a devida consideração pelos seus interesses vitais e liberdade pessoal”.[i]

A atual crise estabelecida em Gaza constitui um destes momentos sombrios da história humana, sendo que a população ali sitiada em campo de concentração, de fato somente faz um pedido ao restante da humanidade, ou o elo político na perspectiva arendtiana: queremos a garantia de viver!

O enredo das condições como se chega ao genocídio palestino é bastante conhecido, ou assim pareceria, mas não é o que o sistema de mídia brasileiro e, fico pasmo, até segmentos da esquerda brasileira demonstram.

Desde o estabelecimento do Estado de Israel em 1948 as contradições entre o significado de resistência palestina e avanço territorial sionista se colocou, como bem observou Cláudio Katz (2007),[ii] referindo-se a um dos diversos episódios anteriores da ocupação colonial israelense: “Israel atacou em 1956 e 1967 e recebeu o primeiro golpe em 1948 e 1973. Quando toma a dianteira, seus partidários celebram a astúcia de um golpe preventivo e quando este se atrasa levantam um clamor de indignação”.

Os episódios são diversos, vale rememorar que especificamente aquele tratado pelo autor argentino trata-se da ofensiva de autodefesa realizada pelo Hezbollah em 2006. Estamos diante de novo episódio de autodefesa, agora organizado por outra organização palestina, o Hamas.

A lógica em curso na Palestina constitui, de um lado o avanço do processo de acumulação por espoliação, retirando terras e propriedades do povo palestino e convertendo as pequenas propriedades daquele povo em terras integradas a expansão capitalista e imperialista naquela região, aprofundando o colonialismo; por outro, o fator ideológico sionista funciona, a exemplo do fascismo, impondo a violência e a compulsão desapropriadora desde uma perspectiva eugenista, com base na lógica sionista de um povo escolhido.[iii]

O tratamento dessa dupla interação parece fugir a compreensão da maioria dos analistas, assim não há como separar os interesses capitalistas imperialistas de acumulação progressiva com os termos racistas sionistas, são duas raízes, mas são de um núcleo comum a lógica de manutenção do imperativo imperialista.

O imperialismo se baseia em seis imposições históricas que são imperativas e que coordenam os interesses do capitalismo globalmente: (i) garantir espaços territoriais coordenados para exploração de força de trabalho e recursos naturais; (ii) expandir circuitos de acumulação em novos espaços, inclusive expulsando ou eliminando populações originárias mas não culturalmente assimiláveis a formação de superpopulação relativa, parece o que está ocorrendo em Gaza; (iii) conformação de “Estados subimperialistas”, elos de manutenção do controle global, principalmente em regiões centrais para transferência de renda produzidas. Israel é o melhor exemplo de Estado subimperialista que, segundo Marini (2017)[iv] é condicionado pelas margens de atuação dadas pelo imperialismo, estabelecendo o controle sobre espaços, populações e tecnologias em determinadas regiões do planeta;

(iv) garantir a hegemonia ideológica e cultural, isso que faz com que a imprensa brasileira seja tão alinhada aos interesses estadunidenses e israelenses, inclusive penetrando em setores da esquerda brasileira como, por exemplo, no atual ataque ao grupo Hamas; (v) alinhar o poder militar em torno de um eixo central, na modernidade o poder estadunidense da OTAN; (vi) controlar os fluxos financeiros e sua normatividade sistêmica.

A dupla face do capitalismo é o imperialismo e a dependência. O colonialismo é um grau radicalizado da dependência, sendo que em situações limites o capital se utiliza das formas coloniais enquanto meio de manutenção das relações de poder econômico baseados na transferência de valor e superexploração da força de trabalho. Assim, o que temos na Palestina, especialmente em Gaza, é uma forma colonialista radicalizada por uma construção ideológica que o sionismo. O que produz em última instância a opressão israelense ao povo palestino é a manutenção do julgo colonialista-sionista, algo cuja ruptura significaria uma nova e expressiva derrota do imperativo imperialista.

O atual ciclo econômico de “império do capital”, para utilizar os termos de Ellen M. Wood.[v] encontra-se em profunda crise. Vale lembrar que o Estado de Israel surge na esteira de um conjunto de acordos firmados no pós-Segunda Guerra, aqueles que garantiriam parte considerável da lógica da “pax estadunidense”, entre eles “Bretton Woods”. Como nos lembra Eric Hobsbawm o colapso de “Bretton Woods” em 1971 indicava o fim da “Era de ouro” do capitalismo.[vi]

O que o aprofundamento do colonialismo sionista israelense e a crise humanitária em Gaza nos coloca é o aprofundamento do fim da ordem estabelecida nos pós-Guerra. Nos parece que o “canto do cisne” das relações de poder imperial estadunidense se aprofundam, e o rastilho que o acompanha será mais guerras e genocídios.

*José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA. Autor, entre outros livros, de Crítica da economia política da dívida pública e do sistema de crédito capitalista: uma abordagem marxista (CVR). [https://amzn.to/3tyBVb2]

Notas


[i] Hannah Arendt. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008.

[ii] Cláudio Katz. Argumentos pela Palestina. Revista Outubro, n. 15, 2007.

[iii] Vale lembrar, utilizando Hobsbawm (2012), que os acordos que “remapearam” o Oriente Médio foi resultante do “Tratado de Versalhes” com o fim da Primeira Guerra Mundial, sendo que o território original da Palestina foi destinado pelo império britânico para um acordo com os sionistas judeus.

[iv] Ruy Mauro Marini. Subdesenvolvimento e Revolução. Florianópolis: Insular, 2017.

[v] Ellen Meiksins Wood. O império do capital. São Paulo: Boitempo, 2014.

[vi] Eric Hobsbawm. Era dos extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.


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