Notas sobre a história do pensamento jurídico

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Por RAFAEL TUBONE MAGDALENO*

A dificuldade substantiva do historiador do direito, tanto aquele que se debruça sobre o pensamento jurídico, como aquele que se debruça sobre as “fontes” do direito podem ser resumidas em duas palavras: compreender e traduzir

“Minha experiência com os colegas teóricos do direito, juristas e teólogos é que muitos deles foram incapazes de conceber uma história descritiva dos conceitos, abordagem que, para alguns, parece despertar enormes reticências de caráter dogmático. De algum modo, eles partem do princípio que conhecem “a verdade”, de que sabem qual é o “verdadeiro do conceito” correspondente a tal ou qual noção, e não estão dispostos a admitir análises histórico-conceituais que se choquem com a sua visão normativa das coisas”1

É desse modo severo que Reinhardt Koselleck relata a sua experiência com seus colegas juristas, profissionais de direito e afins. Seria por chiste ou constatação a aproximação deles com teólogos? Ficaremos sem saber…

Contudo, podemos conjecturar as razões da aproximação: não seriam os juristas, com seu raciocínio pragmático, voltado à resolução de conflitos, um esteio tardio da teologia medieval? Isto é, postulando-se um axioma primitivo, em um silogismo clássico, deve-se produzir uma solução jurídica para um problema dado. Se é assim, nem o conceito de propriedade, nem o conceito de Deus podem ser historicizados, apenas postos como axiomas definidos dos quais tudo deduzimos.

Esta forma de raciocinar pode parecer bizantina e até absurda ao historiador das ideias ou conceitos. Porém, não são poucos e raros os que assim consideram. O jurista deve acima de tudo resolver conflitos. Os conceitos jurídicos, portanto, de um sistema jurídico particular são ligados a um único sistema jurídico particular.

Eles não podem servir a uma análise histórica diacrônica “porque os sistemas que são objeto desta análise produzem seus próprios conceitos, que são incomensuráveis em relação aos de um sistema diferente.” E, de maneira mais severa, “os conceitos jurídicos não têm história, se por história entendermos a sequência de seus estados sucessivos” (TROPER, 2011, p. 262.), ou o conceito vigente em sistemas jurídicos distintos é o mesmo ou não é o mesmo conceito(KOSELLECK, 2006, p. 143). Assim, “propriedade” nada significaria fora do sistema jurídico particular no qual ela se insere, a história desse conceito seria impossível.

Esta posição é justamente aquela que foi criticada por Reinhardt Koselleck e Juan F. Fuentes na entrevista supracitada. Koselleck afirma sobre os juristas de tal tipo: “para alguns deles é difícil aceitar até mesmo a legitimidade acadêmica do estudo de uma história dos conceitos desprovida de carga ou finalidade normativa. Ficam nervosos ante a simples possibilidade de que os conceitos com os quais trabalham – que constituem algo como seu seu solo epistemológico – deixem de ser um terreno firme para converter-se em algo contingente, ambíguo e instável”. (KOSELLECK, 2006, p. 144).[i]

A questão que emerge: é possível o trabalho do profissional do direito, voltado à resolução de conflitos, enquanto parte de uma investigação histórica de conceitos e, portanto, trabalhando com um solo contingente, ambíguo e instável? Para Michel Troper, não, “a história (…) pode ser útil à sociologia jurídica, não à ciência do direito”. O historiador do direito está destinado a uma visão externa de seu objeto, nunca interna, devendo mudar suas vestes talares e direcionar-se ao Fórum.

Entretanto, é inegável um florescimento dos estudos em um campo de múltiplas denominações, mas que chamo, na esteira de Géraldine Cazals e Nader Hakin, de “História do pensamento jurídico” (as outras denominações são: história das doutrinas legais, história das ideias, história da ciência legal). Decerto que cada uma dessas denominações privilegia um tema ou um olhar particular.

Ao se nomear “história do pensamento jurídico” a este campo que cada vez mais se difunde, privilegia-se uma história tanto dos atores, quanto de seu trabalho, suas ideias, sua cultura e as formas literárias que utilizam para expressar suas opiniões e expor suas construções. Essa denominação implica que o Direito é um objeto que pode ser apreendido pelo pensamento apenas enquanto história de suas representações e meios pelos quais se expressa.

Como as denominações dessa área tem implicações metodológicas, a “rejeição” ao uso de outra terminologia deriva de se considerar que a utilização de “história das doutrinas legais”, “história da ciência legal” ou “história das ideias” ocasiona um reducionismo daquilo que o direito é: ou se reduz às opiniões proferida pelos juristas em trabalhos dogmáticos, ou se considera o direito enquanto uma área de saber a parte e que pode ser estudada cientificamente em metodologia própria e diversa das outras áreas das ciências humanas, ou “ao privilegiar a história das ideias, (há) o risco de negligenciar toda a prosopografia ou qualquer contextualização, que é essencial para a disciplina histórica”, segundo Nakim.

Uma questão que sobrevém ao se observar a produção dos historiadores do pensamento jurídico é: há uma distinção entre aquilo que se denomina “História do Direito” e aquilo que se denomina “História do Pensamento Jurídico”? Se sim, o estudo de conceitos jurídicos como “propriedade”, supracitado, situaria-se em qual área? E como produzi-lo já que são escritos os documentos em que esse conceito aparece, seja em Códigos, seja em pareceres jurídicos dos juristas romanos? (SCHIAVONNE, 2017).

A liberdade empreendida por aqueles que se debruçam apenas sobre os escritos propriamente de “pensamento jurídico” são maiores: Olivier Jouanjan, por exemplo, propõe que concebamos a produção do pensamento jurídico como uma história policial, já que os pensamentos, mesmo os mais puros e raros, “são atos intencionais”. Os escritos jurídicos, portanto, são fábricas de álibis, teorias e metateorias justificadoras. As armas do “romance policial” do pensamento jurídico são os conceitos. Os pensamentos jurídicos se concebem com montagens mitológicas, aquilo que ele denomina “tesouros da imaginação”: “Pessoa”, “Lei”, etc.

“O funcionamento prático do direito, por meio das justificações, explícitas ou implícitas, que as posições e decisões jurídicas pressupõem, opera sempre e indissociavelmente por um discurso que é ao mesmo tempo do direito e sobre o direito. E esse discurso se nutre das doutrinas, dos saberes, da ciência dos juristas” (JOUANJAN, 2005, p.3).

A dificuldade substantiva do historiador do direito, tanto aquele que se debruça sobre o pensamento jurídico, como aquele que se debruça sobre as “fontes” do direito podem ser resumidas em duas palavras: compreender e traduzir (STOLLEIS, 2020, p. 65). O historiador deve se dispor a observar a linguagem jurídica de tempos de antanho como se não se pudesse compreendê-la hodiernamente, como se apenas a partir desse uso primitivo pudesse ser desentranhado aquilo que significa uma palavra específica. Uma palavra ou um conceito?

“A diferença de categoria entre palavra e “conceito” (seja significado de um sentido linguístico preciso ou no sentido contextual-histórico de Reinhardt Koselleck) torna-se sem sentido. Não existe uma classe de palavras com mais elevada dignidade que chamemos de “conceitos”; então, são também os conceitos palavras dependentes dos contextos e necessitadas de interpretação. Se o filósofo encontra sentido na construção de conceitos – inclusive, sequer pode pensar sem eles -, busca o historiador, no texto que ele há de compreender, “palavras” que lhe interessam. “Quais as palavras” é uma pergunta da hipótese que cada vez se persegue. (STOLLEIS, 2020, p. 45)

A tarefa do historiador do direito pode ser sistematizada tal como Helmut Coing o fez: “a busca das ‘fontes do direito’ em conexão com as ideias do tempo” (COING apud STOLLEIS, 2020, p. 68). Sabendo que não encontrarão verdade objetiva nenhuma detrás das palavras e textos sobre os quais o direito foi insculpido, o historiador do direito deverá se esforçar para conseguir a aprovação dos seus interlocutores quanto à plausibilidade de suas hipóteses. Se os juristas, com sua formação atual, terão a imaginação ou capacidade de compreensão linguística para realizar tal tarefa é uma questão a ser posta. Ou será que o historiador do direito deve ser um misto de jurista, filósofo e historiador?

*Rafael Tubone Magdaleno é professor de filosofia do direito na Universidade Federal do Tocantins (UFT).

Referências


KOSELLECK, Reinhardt. Entrevista com Reinhardt Koselleck. In: JASMIN, M. G. & FERES Jr, J. História dos Conceitos: debates e perspectivas. Rio de Janeiro: PUC-RIO/Loyola, 2006.

TROPER, Michel. Le Droit et la Necessité. Paris: PUF, 2011.

JOUANJAN, M. Une histoire de la pensée juridique en Allemagne. Paris: PUF, 2005.

STOLLEIS, M. Escrever história do direito: reconstrução, narrativa ou ficção? São Paulo: Contracorrente, 2020.

Nota


[i] Juan F. Fuentes responde: “A propósito da questão, recordo que no Congresso de Bilbao, um participante de formação jurídica afirmou que o conceito de propriedade não variara substancialmente há séculos, e que era na atualidade praticamente o mesmo que no tempo dos romanos [risos]. Sim, e foi bastante engraçado”. O participante sobre o qual parece se referir é Michel Villey, autor das citações que inseri no texto. Em nota, Juan F. Sebastian, o outro entrevistador, ainda diz:”(…) a intervenção do importante teórico do direito Michel Troper durante a última sessão foi abertamente hostil à perspectiva histórico-conceitual, chegando a negar expressamente a historicidade dos conceitos jurídicos, o que deu lugar a viva polêmica com este que redige esta nota”.


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