Krakatoa

Marcelo Guimarães Lima, Jaguatirica, lápis e aquarela sobre papel, 2025
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Por EDUARDO SINKEVISQUE*

Comentário sobre o romance de Veronika Stigger

para Rodrigo Turin

“não aponte o dedo para Benazir Bhutto, seu puto,/ ela está de luto pela morte do pai” (Chico César).

Leio Krakatoa, romance de Veronika – com k – Stigger, praticamente desde o dia em que a autora fez uma noite de autógrafos com leitura de trechos, sonorização e debate em São Paulo, na Livraria Megafauna do Copan. Na livraria, no debate, eu já indagava de onde vir Krakatoa, lembrando-me “de onde vem o baião” e de que ele vem debaixo do barro do chão. Relaciono a escrita de Veronika em Krakatoa com a principal pergunta da canção de Gilberto Gil de que prefiro na voz de Gal Costa “De onde vem o Baião”.

Talvez Krakatoa venha debaixo do barro do chão da pista onde se dança. Certamente, vem de muitas indagações de Veronika Stigger, especulações, para além da pesquisa empreendida e da invenção. Krakatoa vem mesmo debaixo da pista, porém não donde a escritora dança, mas por onde transita e/ou transitou e /ou imaginou transitar, afinal ficção, afinal diário também de viagem, como pela Indonésia. De onde, se não debaixo das profundezas mesmo da Terra, vêm os vulcões?

A pista onde se dança é este Planeta dançado, dançando em Idade de Antropoceno, de que se ocupou André Araújo na 451, degelo, gás estufa, fim. Naquela noite de 19/09 quando do lançamento em Sampa, meu pai ainda estava vivo, mas quase sem lava, mas quase sem anima. Eu estava soterrado emocionalmente, me despedindo dele há uns dois anos já.

O texto de Veronika Stigger deslocou-me daquele soterramento, e me fez mergulhar. Deixei-me soterrar, e ao mesmo tempo mergulhar na prosa elegante da escritora, quase sempre vendo o sorriso dela, o olhar enigmático dela e ouvindo sua voz que preserva a prosódia trazida de Porto Alegre. Comecei a perceber a disposição das partes e dentro das partes suas partes em suas disposições.

No segundo romance de Veronika Stigger não encontro divisões de parágrafos, mas blocos narrativos e /ou poéticos e/ou dialogais maciços que não dão respiro ao leitor. Da canção de Gilberto Gil, passei a ouvir Beatles, de Help, em voz e violão de Caetano Veloso enquanto lia. Entendi mais sobre os blocos textuais. Ao menos antes de poemas, os textos maiores (da primeira parte do romance) não os menores.

Terminei de ler Alba. Meu pai segue internado e cada vez com menos lava e anima. Solta palavrões, no entanto, e ameaça bater nos enfermeiros quando eles trocam suas fraldas, dão medicamentos, o auscultam etc. Às margens do exemplar que leio, há índices de minha leitura como pegadas de minha presença naquele solo.

Grifei a palavra “lobo”; que o estilo de Veronika Stigger é enumerativo, como se às vezes ela listasse, fizesse listas. É exemplo disso parte da página 57. Isso movimenta a escrita, amplifica a narrativa. Ora reduz, ora amplifica intercalando amplificatio e reductio, intercalando movimentos musicais, sinfônicos mesmo. Como sanfona a tocar baião, baião de dois, sinfonia de vulcões.

Grifo a palavra fascinante, palavra domada de fera. Meu pai começa a me estressar muito nos meus finais de plantão com ele no hospital. Começo a ficar esgotado depois de 24, 26, 27 horas trancafiado com ele. Em “Monólogo do Carvão” destaco que o mundo está totalmente devastado, o gás fétido, e o fato de não haver mais verde. Em “Muntagna”, todos mortos sem saber ou fingir não saber. M

eu pai murcha, definha, mas é capaz de comemorar comigo conquista profissional e concordar com a beleza de quem desejo. Ele é um vulcão desativado já. A segunda parte, “Anak Krakatoa”, me parece ser mais contundente, mais forte. Menos fantasmagórica e sinistra que a primeira. Sou um leitor filho de vulcão. De um vulcão nas últimas.

Minha mãe avisa que os médicos prescrevem diariamente aspiração dos pulmões de meu pai. Há dias em que fazem esse procedimento duas vezes. A essa altura, reconheço a escrita fluida, técnica, de ideia genial de Veronika Stigger. Reconheço também efeitos de frieza e de distanciamento. Não é um coração gracinha que compõe o livro. Antes, um coração capricorniano, mesmo Veronika Stigger sendo aquariana.

Apesar de Krakatoa ser um romance totalmente contemporâneo, o tempo narrativo é um tempo não definido. Há índices que o leitor, se quiser, pode recuperar, definindo uma temporalidade conhecida e/ou reconhecida como pandêmica. Minha mãe me telefona: seu pai não passa dessa semana.

Há uma questão que eu acho que é recorrente no romance e que talvez não tenha sido falada ainda, não sei, mas quando eu leio eu fico vendo o tempo inteiro, ou seja, formulações de frases que indicam que a ação do romance se dá num depois, num pós, num já não há mais, como em “ninguém dorme”; não há mais ninguém para dormir”; “ninguém chora”; “não há mais ninguém para chorar”; “depois do começo do mundo”.

Na primeira parte do romance quem fala é os elementos da natureza, água, terra, fogo, numa sinfonia de vulcões, numa escrita em erupção, e que é uma narrativa que vem lá do centro da Terra, vamos dizer assim, das profundezas, como um pedido de socorro de um planeta agonizante. Seu pai não passa de hoje, diz minha mãe por áudio de whatsapp. Leio enquanto meu pai está agonizante, pedindo socorro, pedindo para ir embora.

Talvez a Terra, em Krakatoa não seja quem está doente, mas em convulsão, em movimento radical de transformação devido à ação devastadora humana. Na segunda parte, entendo que Veronika Stigger narra o que veio a partir do Krakatoa, o filhote do Krakatoa, o Anak Krakatoa, as notícias de jornal, um diário.

Krakatoa é um romance escrito com a temporalidade do depois, depois de já ter sido, já ter ocorrido, já ter acabado. É muito angustiante ler o romance nessa perspectiva de que já houve o fim, já acabou e que não sobrou ninguém e que quem sobra é um fantasma, talvez uma voz perdida num planeta que já não existe mais. O livro é apaixonante, porque ele nos coloca dentro dele.

Quando eu percebi certa formulação de frase que indicava uma temporalidade do pós-tudo, do já ter ocorrido, já ter acabado, eu comecei a anotar essas frases, porque elas são recorrentes na escrita. E daí eu comecei a perceber, que a temporalidade, é tudo isso que anoto, mas marcadamente depois que já ocorreu que já acabou.

Tem uma coisa muito interessante no livro que é uma dimensão mítica, o mito como forma narrativa, atualizado. O tempo do mito é um tempo que não é passado nem é presente, nem é futuro. É um tempo da simultaneidade, da convivência, da concorrência, embora as personagens humanas, se é que elas existem no romance, não convivem, havendo uma ou outra indicação disso. Seu pai fez a passagem, me diz minha mãe por áudio de WhatsApp.

Krakatoa não é um livro fácil. Não é fácil olhar para o cadáver do pai. Não é fácil pensar o cadáver do planeta. Veronika Stigger faz falar quem não tem voz. Como em outras vezes na literatura brasileira em que os autores, em outros momentos, e de outros modos, deram voz a quem não tinha. Por exemplo, Graciliano Ramos deu voz aos retirantes da seca, deu voz, inclusive, à cadela Baleia. Guimarães Rosa deu voz a quem não tinha voz na literatura, ou seja, aos jagunços. Clarice Lispector deu voz a nordestina retirante Macabeia. Verônica Stigger dá voz ao Centro da Terra por meio da sinfonia que compõe. Veronika dá voz ao planeta.

Às vezes, eu acho que é isso, que é um planeta que está moribundo, que está morrendo, pedindo socorro. Às vezes é um planeta que tem vida própria, independente do humano, e que está se reformulando. A goiabeira em frente de casa despeja frutos maduros em abundância, inunda meu belvedere, minha calçada. Convalesço-me de uma fratura provocada no joelho esquerdo por um acidente doméstico, uma queda numa escada.

No último mês de vida de meu pai não pude ficar com ele no hospital. Não o vi definhar de vez, nem presenciei a falência de seus pulmões. A narrativa do fim, do sem, do pós-tudo de Veronika Stigger faz o leitor chegar ao amor. Krakatoa termina com amor: “Terima Kasih! – é assim que os indonésios expressam agradecimento. A expressão significa literalmente ‘receba amor’”. Mesmo com amor, é duro olhar para o pai no caixão. Mesmo terminado com amor, Krakatoa não doura a pílula. A maestrina sacode a batuta, e lânguida e triste a música rompe.

*Eduardo Sinkevisque é pós-doutor em Teoria Literária pela Unicamp. Autor, entre outros livros, de Poemas da Branca (Árvore Digital).

Referência


Veronika Stigger. Krakatoa. São Paulo. Todavia, 2024, 176 págs. [https://amzn.to/3XXF00G]


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