Vidas sem nome

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Por DANIEL BRAZIL*

Comentário sobre o livro, recém lançado, de Wilson Gorj.

Alguém já deve ter relacionado a proliferação das formas de prosa curta, os famigerados microcontos, com a era da internet. A necessidade do mundo pós-moderno de velocidade cada vez maior, de urgência da informação, contamina a música de consumo, as artes plásticas (de consumo), o cinema (de consumo), e é inevitável que a literatura também seja envolvida por esse turbilhão.

Claro que o microconto já existia – Monterroso que o diga! – assim como as fábulas moralistas e o milenar haikai. O que as redes sociais propiciaram foi a multiplicação destas formas curtas, que se mostram muito mais adequadas aos novos meios. É inviável ler um conto de vinte páginas num celular, suponho. Aliás, nunca tentei, confesso.

Esse processo de emagrecimento literário acarreta na maioria das vezes uma escrita menos elaborada, reflexões rasas, sentimentos mais descartáveis. Ser breve é uma coisa, ser sintético é outra. A síntese é um processo intelectual de concentração de sentidos, de significados, que poucos autores de fato conseguem alcançar.

Wilson Gorj, no recém lançado volume Vidas sem nome mostra que é possível conjugar economia de palavras com riqueza literária. O autor, também editor, é devotado à microficção, tendo volumes publicados e, obviamente, uma militância contínua na internet. Tem um romance publicado, A inevitável fraqueza da carne, onde demonstrou perícia em desenvolver uma narrativa longa.

Vidas sem nome não é uma coletânea de microcontos, mas sim de contos com duas, três, até cinco páginas. Wilson Gorj esbanja criatividade nos argumentos, com cenários e personagens surpreendentes.

Lança mão de elementos de fantasia em alguns momentos, mas também é totalmente realista em várias narrativas. Tinge algumas histórias de lirismo, pincela humor em outras. Pode ser cruel e piedoso, às vezes no mesmo texto.

Esta complexidade de sensações só é alcançada com sucesso por quem domina o labor da escrita. Como diz Mario Baggio, outro craque da ficção enxuta, na orelha do livro, “é uma celebração da palavra mínima com efeito máximo”.

E Wilson Gorj não tem receio de adicionar mais duas ou três páginas a uma boa ideia para obter o efeito desejado, para acrescentar nuances ou aprofundar o desenvolvimento da narrativa, preparando desfechos sempre surpreendentes. Uma escrita madura, fluente, de elaborada simplicidade, que nos convida à releitura assim que terminamos o livro.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

Referência

Wilson Gorj. Vidas sem nome. São Paulo, Litteralux, 2025.

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