Por PANKAJ MISHRA*
A narrativa antitotalitária que exaltou o Ocidente pós-1945 desmorona, revelando-se uma fachada moral para um projeto de poder que, ao perseguir seus monstros externos, gerou sua própria barbárie
1.
“O Ocidente como o conhecíamos”, afirmou Ursula von der Leyen no início deste ano, “já não existe”. Não é preciso se deter sobre o sentido que a presidente da Comissão Europeia quis dar ao termo “Ocidente” para perceber que testemunhamos o colapso extraordinário de uma ideia outrora potente. Essa ideia foi concebida durante a Guerra Fria, em grande medida por políticos e comentaristas americanos, sendo fundamentada nos valores da democracia, do estado de direito e dos direitos humanos.
Nessa narrativa, não apenas os Estados Unidos ajudaram a instalar constituições antifascistas e antistalinistas na Alemanha, na Itália e no Japão; o seu complexo intelectual-industrial também produziu uma visão otimista do mundo, em que o arco moral do universo, pairando acima dos desvios dos totalitarismos comunista e nazista, voltava-se para uma sociedade livre ao estilo americano.
Nesta história moral, Auschwitz e o gulag soviético (mas com a ausência notável de Hiroshima) representam os extremos do mal moderno que deveriam ser prevenidos por meio da educação dos cidadãos a respeito dos horrores infligidos pela direita e pela esquerda radicais, bem como por meio de instituições internacionais encarregadas de defender a promessa do “nunca mais”. Porém, o recente ressurgimento da barbárie no coração do Ocidente moderno expõe muitas falhas nessa narrativa sobre o mundo livre.
“A queda da civilização neste abismo de sangue e escuridão”, escreveu Henry James enquanto os europeus marchavam entusiasticamente para o massacre mútuo em 1914, “é algo que desmascara toda a longa era durante a qual supusemos que o mundo estava, com quaisquer abrandamentos, gradualmente melhorando”.
Como Sigmund Freud refletiu em 1916, uma guerra fratricida aplaudida por tantos europeus ilustres havia “destruído o orgulho que temos pelas conquistas de nossa civilização, o nosso respeito por tantos pensadores e artistas, as nossas esperanças de finalmente superar as diferenças entre povos e raças… e nos mostrou a fragilidade de grande parte do que considerávamos estável”.
Hoje, mais uma vez, uma demonstração espetacular e premeditada de crueldade e ódio organizados danificou nosso senso de identidade, que era sustentado, pelo menos em parte, pela crença de que as sociedades se tornariam menos preconceituosas com o passar do tempo. Agora, muitas ideias, indivíduos e instituições que pareciam promover o progresso moral perderam seus halos.
2.
Será difícil ler Simon Schama novamente sem lembrar que este renomado intérprete da história judaica repercutiu na rede X uma teoria em que os palestinos conspiram para dominar o mundo, mesmo quando são massacrados diariamente; ou, depois, como ele reproduziu a alegação israelense que nega a fome em Gaza.
As lições de uma história de perseguição e vitimização eternas também não parecem mais tão claras como antes, agora que o Estado construído como um baluarte contra o antissemitismo genocida perpetrou ele próprio um genocídio, com a ajuda de nacionalistas cristãos antissemitas nos Estados Unidos.
O Holocausto foi planejado e fomentado em segredo por um regime despótico. A frieza israelense diante do primeiro extermínio em massa televisionado e assistido pela inteligência artificial – e o apoio remoto a esse extermínio por, entre outros, um senador democrata de shorts e moletom – indica de forma estupefante a potência, a ubiquidade e a banalidade do mal moderno, encorajado por uma ressignificação da memória do Holocausto que justifica um etnonacionalismo assassino em vez de alertar contra ele.
Muitas certezas que definiram a identidade individual e coletiva na “ordem internacional baseada em regras” do pós-guerra também começaram a se corroer. Isso inclui até o discurso dos direitos humanos, que foi invocado com grande convicção primeiramente contra o comunismo e, depois, contra países muçulmanos, sendo consagrado por inúmeros relatórios americanos e empunhado para justificar sanções econômicas.
Esse discurso agora parece ter sido sempre altamente seletivo, definindo os direitos humanos como civis e políticos, em vez de econômicos e sociais. Aqueles que armaram os direitos humanos para coagir regimes antiamericanos no exterior parecem, no entanto, ter ignorado o abismo cada vez maior entre ricos e pobres em seu próprio país, juntamente com a ausência de direitos básicos à segurança social e saúde, e a manipulação do processo democrático pelo dinheiro corporativo.
E, no entanto, nenhum pilar da ordem intelectual e moral ocidental do pós-guerra parece tão frágil quanto o antitotalitarismo – a identidade liberal definida negativamente e que ajudou a exaltar as democracias americana e israelense sobre seus supostos inimigos enquanto, está claro agora, ocultava seus defeitos históricos e estruturais. Tanto quanto aqueles que exploraram a memória do Holocausto e o discurso dos direitos humanos para ganho potencial, os antitotalitários são culpados pelo colapso quase total das normas políticas e morais hoje.
3.
Após a exposição dos crimes de Hitler e Stalin, muitos pensadores ocidentais concluíram que um tipo de pensamento inteiramente novo seria necessário para compreender sua radical novidade. A fé iluminista na razão, na ciência e na liberdade de expressão, já enfraquecida pela Primeira Guerra Mundial, havia sido devastada por uma burocracia inédita da morte em massa, sustentada pela tecnologia, pelo engano sistemático, pela credulidade generalizada e pela aquiescência entusiástica.
Albert Camus estava entre aqueles impelidos a compreender a “culpabilidade” de uma “época que, no espaço de cinquenta anos, desenraiza, escraviza ou mata setenta milhões de seres humanos”. Ele se perguntou por que o julgamento humano – inabalado pelos “crimes descarados” no passado, quando “o tirano arrasava cidades para sua própria glória” – havia também se tornado “paralisado” diante das atrocidades muito mais graves do século XX.
Seria porque muitos dos perpetradores eram quase-filósofos que alegavam estar realizando suas próprias visões exaltadas da vida boa e da sociedade justa, usando-as para defender seus crimes? Equipados com explicações perfeitamente racionais para o assassinato em massa, esses ideólogos modernos foram, escreveu Albert Camus, os primeiros a colocar “campos de escravos sob a bandeira da liberdade” e a cometer “massacres justificados pela filantropia”.
Hannah Arendt esteve igualmente atenta às inigualáveis perversões da linguagem e da lógica que acompanharam a “produção em massa de cadáveres” em meados do século XX. Ao traçar sistematicamente as origens do totalitarismo, ela examinou como uma ideologia de engrandecimento infinito emergiu na Europa do século XIX e seduziu suas melhores mentes, as quais ela chamou de “tolos trágicos e quixotescos do imperialismo”.
É claro que as vítimas do imperialismo na Ásia, África e América Latina há muito possuíam uma intuição de oprimidos sobre como homens brancos poderosos ocultavam seus piores excessos (genocídio, escravidão, despotismo), apresentando-se como filantropos na vanguarda da marcha da humanidade em direção a um futuro glorioso.
Tampouco lhes passou despercebido que mesmo os escritores e filósofos ocidentais modernos que exibiam uma autoconsciência liberal e cosmopolita sustentavam hierarquias raciais. John Stuart Mill declarou categoricamente que povos “bárbaros”, como os indianos, eram incapazes de se autogovernar. Charles Dickens, famoso por sua solicitude com os brancos pobres, especialmente crianças, exigiu o extermínio da “raça” indiana após uma violenta revolta em 1857 contra os senhores britânicos.
4.
É compreensível que muitos desses “bárbaros” tenham relutado em acreditar que as democracias liberais ocidentais eram, por definição, antagônicas ao totalitarismo. Gandhi afirmou que a democracia no Ocidente, tendo sido capturada por interesses especiais, visava principalmente a dar cobertura moral à violência extrema exigida pelo capitalismo; ele previu, em 1938, que mesmo as democracias “nominais” do Ocidente provavelmente se tornariam “francamente totalitárias”.
Para George Padmore, o ativista anticolonial nascido em Trinidad, o imperialismo “democrático” e o imperialismo “fascista” são “meramente ideologias intercambiáveis correspondentes às condições econômicas e políticas do capitalismo”.
Análises semelhantes, vindas de Simone Weil ou Aimé Césaire, deveriam ter desencorajado uma consciência tranquila compartilhada entre os vencedores da Segunda Guerra Mundial e aberto uma investigação mais ampla sobre a barbárie inerente à modernidade política e econômica.
O “veneno” do hitlerismo “não desapareceu”, argumentou Albert Camus em Nova York em 1946. “Todos nós o carregamos em nossos próprios corações”. No ano anterior, ele descrevera Hiroshima como “nossa civilização técnica” atingindo seu “maior nível de selvageria”. Mas o autoquestionamento intelectual e a agônica experimentação artística que começou no início do século XX, após a aniquilação das antigas certezas da Europa, não encontraram terreno fértil nos Estados Unidos, nem antes nem depois da guerra.
Tornando-se mais ricos e poderosos enquanto guerras destrutivas e regimes despóticos devastavam a Europa, os Estados Unidos não produziram figuras comparáveis a Camus, Arendt, Weil, Paul Valéry, Robert Musil, José Ortega y Gasset ou Jacques Maritain – europeus forçados por seus traumas a examinar uma confiança até então incontestável nas prescrições ocidentais de democracia, ciência e livre comércio.
Sem o fardo da dúvida sobre si, os americanos envolvidos na formação das nações alemã e japonesa, assim como outros soldados da Guerra Fria, acharam fácil, após 1945, estabelecer “o Ocidente” – uma ideia improvisada apenas no século XIX – como uma identidade comum tanto para os desacreditados quanto para os emergentes senhores brancos do universo.
O “totalitarismo”, grosseiramente definido, juntou-se ao arsenal ideológico deste novo Ocidente: uma forma de identificar os inimigos percebidos de seus interesses, seja Mao ou Osama bin Laden, e de fornecer tanto aos Estados Unidos globalmente ascendentes quanto aos impérios europeus em declínio uma autoimagem lisonjeira e uma missão elevada.
5.
Até a Alemanha, com muitos nazistas de outrora reinando na vida pública, e a Espanha, cujo fascismo era desinibido, puderam ser acomodadas na comunidade antitotalitária do Ocidente, amparadas por historiadores como Ernst Nolte, que argumentou que nazismo e fascismo eram simplesmente consequências do bolchevismo.
A defesa de uma civilização judaico-cristã (ideia popularizada durante a Guerra Fria) foi promulgada pela nova narrativa do Plato to NATO – de Platão à OTAN. Os relatos contundentes da brutal repressão no Leste comunista, escritos por dissidentes – como A mente cativa (1953), de Czesław Miłosz, e O Arquipélago Gulag (1973), de Aleksandr Solzhenitsyn – contribuíram para a visão de que o capitalismo ocidental era superior.
Pouca atenção, contudo, foi dada ao fato de que os próprios dissidentes se mostravam perturbados pelas semelhanças sinistras entre os dois sistemas ideológicos opostos da Guerra Fria. Czesław Miłosz já havia notado, durante sua estadia como diplomata nos Estados Unidos no final dos anos 1940, que “os meios que moldavam a opinião pública em países como a Polônia eram brincadeira de criança diante da arte que os americanos haviam desenvolvido”.
Para Aleksandr Solzhenitsyn, chocado com a conformidade da imprensa americana, a “divisão do mundo pela Guerra Fria é menos aterrorizante do que a similaridade da doença que aflige suas principais partes”. Nos anos 1980, escrevendo logo após ser libertado de uma prisão comunista, Václav Havel alertou os emergentes vencedores da Guerra Fria de que eles se assemelhariam “a seus oponentes derrotados muito mais do que qualquer um hoje está disposto a admitir ou é capaz de imaginar” e que o Ocidente acabaria construindo seu próprio gulag “em nome do país, da democracia, do progresso e da disciplina de guerra”.
Muitos observadores mais próximos da cena americana também não se deixaram enganar. Em meados do século, ao examinar filmes, romances, revistas e quadrinhos americanos na Califórnia, o historiador trinitário C.L.R. James alertou contra “as forças que favorecem o totalitarismo na vida americana moderna”.
Em uma visita aos Estados Unidos uma década depois, Ítalo Calvino confirmou que “aqui estamos em uma estrutura totalitária de tipo medieval, baseada no fato de que nenhuma alternativa existe, nem mesmo qualquer consciência da possibilidade de uma alternativa”. A ideia de uma alternativa tornou-se ainda mais implausível após a aparente vitória dos Estados Unidos na Guerra Fria, quando a própria história pareceu terminar na democracia e no capitalismo ao estilo americano.
Escritores e pensadores das classes privilegiadas dos EUA ressuscitaram, com algum lucro, o messianismo político que seus homólogos europeus haviam abandonado. Quando a Guerra Fria terminou, tornou-se quase imperativo para os intelectuais americanos e americanizantes instalados nas universidades da Ivy League e nos think tanks de Washington e Manhattan saudar os Estados Unidos como o inimigo universal do totalitarismo assassino.
Foi assim que Samantha Power pôde repreender os governos americanos por sua falha em intervir em genocídios em todos os lugares. Quando a Al Qaeda e depois Saddam Hussein surgiram abruptamente como encarnações de um novo totalitarismo, Michael Ignatieff e Niall Ferguson, entre muitos outros, pressionaram impacientemente os Estados Unidos a assumir suas obrigações imperiais e impor democracia, direitos humanos e livre comércio por meio da guerra.
6.
Ficou claro, mesmo antes da abertura de um gulag em Guantánamo sob a bandeira da “liberdade duradoura”, que o inimigo soviético, cruel e desajeitado como uma caricatura, havia gerado uma terrível complacência intelectual no Ocidente. Os tolos do imperialismo ocidental do século XXI dispunham de pouco letramento histórico e ainda menos da sofisticação moral de Arendt, Weil e Camus.
Deslumbrados pela sua autoimagem de guias filantrópicos da humanidade, estavam condenados a repetir a lógica grotesca dos campos de escravos sob a bandeira da liberdade. As principais publicações do cosmopolitismo liberal – Newsweek e The Atlantic – não hesitaram em ponderar os usos da tortura no início dos anos 2000; por sua parte, Michael Ignatieff, então professor de direitos humanos em Harvard, ofereceu receitas de “coação permissível” nas páginas do The New York Times Magazine.
Um tirano do Queens, e não de Bagdá ou Kandahar, mostrou-se como o inimigo desses humanitários militantes. Ele agora exerce descaradamente sua vontade de poder à custa de povos mais fracos, muitas vezes de pele mais escura. A conquista sinistra de Donald Trump é deslegitimar o antigo establishment intelectual e político enquanto cimenta as hierarquias raciais e os regimes de repressão que essa elite descartada explorou durante a guerra ao terror. Em mais uma paródia da “responsabilidade de proteger” e de seus vendedores ambulantes, o presidente supremacista branco também deseja ser visto como o salvador autêntico de um mundo obscurecido e tomado pela guerra.
O liberalismo ocidental, constantemente à procura de monstros no exterior, revela ter sido uma máscara moral para uma classe serviçal de intelectuais – um acessório de moda jogado fora por Donald Trump. Esse adorno não serve mais àqueles que presidem a rápida e brutal reversão do progresso racial.
Não deve nos surpreender a rapidez com que o preconceito do século XIX, de que homens brancos deveriam dominar africanos, asiáticos e povos “inferiores” da América Latina, tornou-se senso comum em grande parte da política e do jornalismo ocidentais. “O fluxo subterrâneo da história ocidental finalmente veio à superfície”, advertiu Hannah Arendt em 1950, depois que as ideologias de engrandecimento racial do século XIX atingiram a culminação monstruosa no coração da Europa. Esse fluxo subterrâneo veio novamente à tona em 2025, e está varrendo a ideia outrora inabalável do Ocidente.
*Pankaj Mishra é ensaísta e romancista. Autor, entre outros livros, de The age of anger: a history of the presente (Farrar, Straus, and Giroux)
Tradução: Nikola Matevski.
Publicado originalmente em Harper’s Magazine.
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