Por BRUNO MACHADO*
O caso de López Obrador no México mostra um populismo de esquerda que, ao ocupar o terreno moral da direita, desarma seu discurso e cria espaço para reformas que um institucionalismo moderado não permitiria
1.
A ascensão de López Obrador à presidência do México e a bem-sucedida eleição de sua sucessora reacenderam um olhar menos rígido e menos crítico ao populismo dentro da esquerda mundial. Embora a posição majoritária da esquerda (tanto a de inclinação radical quanto a moderada) permaneça desconfiada dessa estratégia, apontando os riscos antidemocráticos e o potencial de erosão institucional que frequentemente acompanham experiências populistas, o caso mexicano é um convite à reflexão mais profunda.
Em especial, a esquerda latino-americana, marcada por um histórico complexo de populismos, frustrações, golpes, regressões e tentativas frequentemente frustradas de reformas estruturais, tem muito a aprender com o que está acontecendo no México. O fenômeno político inaugurado por López Obrador não apenas desafia certas premissas consolidadas sobre o populismo, como também lembra que, em contextos de desigualdade crônica e instituições frágeis, é ingênuo imaginar que transformações sociais profundas possam ocorrer sem abalar, em algum grau, os pilares da normalidade liberal.
López Obrador, em vez de se apoiar principalmente em um discurso técnico, racional e apoiado em diagnósticos científicos que enfrentassem as raízes estruturais dos problemas sociais e econômicos do país, optou por um caminho diferente e menos elegente.
Seu discurso concentrou-se em grande medida em pautas de caráter moral, como o nacionalismo, a humildade do homem comum, o valor simbólico do trabalho simples e a centralidade do combate à corrupção como eixo articulador de todos os demais problemas. Essa escolha pode ter, como efeito colateral, a redução do nível de sofisticação do debate público sobre reformas necessárias, especialmente aquelas de natureza fiscal, produtiva ou institucional, mas trouxe um benefício estratégico incontestável: desarmou o discurso eleitoral da direita.
Essa direita apoia-se historicamente em uma agenda elitista, pouco sensível às necessidades populares, hostil ao Estado de bem-estar e defensora de políticas econômicas que beneficiam desproporcionalmente os setores privilegiados. Para mascarar esse caráter classista e construir uma ponte artificial com as massas, a direita recorre, há décadas, a temas morais como patriotismo, anticorrupção, medo do crime urbano, defesa da família, religião e autoridade.
Ao reivindicar esse terreno simbólico para si, López Obrador retirou da direita uma de suas principais ferramentas de mobilização, esvaziando sua capacidade de construir uma falsa identificação com o povo que, na prática, sempre combateu. O populismo de esquerda, nesse caso, funcionou como um mecanismo de neutralização discursiva que permitiu ao governo avançar em áreas onde projetos mais tecnocráticos teriam encontrado resistência imediata.
2.
A história política brasileira (e, em grande medida, também a latino-americana) mostra que o populismo de esquerda foi muitas vezes necessário para que agendas de reformas avançassem. No Brasil, desde o varguismo até momentos pontuais do período democrático pós-1988, foram lideranças populares de caráter emocional, mobilizador e, por vezes, personalista, que conseguiram criar a base social capaz de sustentar mudanças.
Entretanto, com a redemocratização, essa tradição foi sendo gradualmente abandonada ou vista como um resquício indesejável do passado. O resultado desse abandono é que hoje a política nacional se encontra dividida entre, de um lado, uma agenda social-liberal representada pelo petismo, que, apesar de seus méritos, sempre buscou operar dentro dos limites da institucionalidade vigente , e, de outro, um neofascismo herdeiro do espólio político de Jair Bolsonaro, capaz de mobilizar afetos destrutivos, ressentimentos e ilusões autoritárias.
Diante desse cenário, apenas uma esquerda disposta a tensionar a institucionalidade liberal e aceitar os custos de uma transformação mais profunda poderia recolocar no horizonte uma agenda de reformas análoga, em alguma medida, ao que vem sendo implementado no México. É ilusório imaginar que profundas desigualdades históricas possam ser enfrentadas exclusivamente com políticas moderadas, pactos sociais frágeis e negociações que dependem da boa vontade das elites econômicas, estas invariavelmente inclinadas a preservar seus privilégios.
É fundamental compreender que o populismo de esquerda vai muito além de uma mera estratégia eleitoral baseada na identificação simbólica com o cidadão comum. Ele envolve a construção de uma liderança carismática que opera também no plano emocional, capaz de mobilizar afetos, esperanças e frustrações acumuladas por décadas.
Esse elemento carismático não é uma estratégia meramente eleitoral, na verdade, trata-se de um componente decisivo na ampliação do nível de mobilização popular necessário para enfrentar a reação das elites sempre que reformas estruturais são implementadas. Sem essa agitação coletiva do poder popular que inevitavelmente perturba a serenidade artificial da institucionalidade liberal, não existe possibilidade real de mudança permanente.
3.
A própria história latino-americana demonstra repetidamente que grandes conquistas sociais não acontecem sem algum grau de instabilidade às instituições estabelecidas. Isso não significa defender aventuras autoritárias, mas reconhecer que instituições desenhadas para preservar a desigualdade raramente se deixam reformar sem resistência.
Quando a esquerda rejeita precipitadamente o populismo, não apenas por prudência, mas por princípio, acaba abrindo mão da principal força transformadora disponível em sociedades profundamente desiguais, de baixo nível de consciência de classe e alto grau de alienação como a nossa. Em contextos assim, a aposta exclusiva no institucionalismo tende a produzir paralisia e frustração.
A defesa da democracia republicana e de suas instituições é, sem dúvida, um valor imprescindível para qualquer projeto de esquerda. No entanto, o receio de colocar em risco conquistas democráticas não pode converter-se em uma postura excessivamente conservadora, incapaz de propor avanços ousados ou de enfrentar conflitos políticos inevitáveis.
A estabilidade institucional, embora importante, não pode ser tratada como um fim em si mesma, sobretudo quando essa mesma institucionalidade funciona como mecanismo de reprodução das desigualdades e de bloqueio às transformações estruturais.
O exemplo mexicano está longe de representar uma receita a ser seguida, mas sinaliza que a combinação entre liderança popular, mobilização emocional de massas e disposição para tensionar a ordem estabelecida pode criar espaço para reformas que, em circunstâncias normais, seriam impossíveis.
A esquerda brasileira, portanto, precisa decidir se pretende continuar nos limites seguros, porém estéreis, do progressismo moderado, ou se está disposta a recuperar a energia transformadora que a marcou em momentos decisivos da história.
*Bruno Machado é engenheiro.
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