A burguesia brasileira em ação

Robert Rauschenberg, Intervalo, 1996
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Por ARMANDO BOITO*

Prefácio do livro recém-lançado, organizado por André Flores Penha Valle & Pedro Felipe Narciso

A burguesia brasileira em ação: de Lula a Bolsonaro é uma coletânea que reúne textos de vários autores e que traz uma contribuição muito significativa para o conhecimento do tema anunciado no título do livro. Os capítulos que a compõem analisam a atuação política da burguesia brasileira e de suas diferentes frações durante os governos da década de 1990 mas, principalmente, os governos das duas primeiras décadas do século XXI; analisa as relações políticas complexas que essa classe social e suas diferentes frações entretêm com as demais classes presentes na sociedade brasileira contemporânea e tais capítulos analisam também as relações da burguesia com o Estado nacional, mais precisamente, com as políticas econômica, social e externa implementadas pelo Estado brasileiro.

Os textos desta coletânea combinam, o que não é pouca coisa, rigor teórico com levantamento e apresentação de informações e dados empíricos novos. O rigor teórico decorre da mobilização criteriosa e criativa do dispositivo conceitual elaborado pelo cientista político marxista Nicos Poulantzas – sim, o marxismo possui uma teoria política própria e este livro prova-o uma vez mais. As informações históricas novas os autores as obtiveram pesquisando sistematicamente as demandas das diferentes frações da burguesia brasileira, pesquisa feita por intermédio de levantamento sistemático da documentação oficial de dezenas de associações sindicais e civis que reúnem diferentes segmentos da classe capitalista no Brasil.

Esses textos sintetizam pesquisas de mestrado e de doutorado dos seus autores, a maioria delas produzida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e nos quadros do Grupo de Pesquisa intitulado “Neoliberalismo e relações de classe no Brasil” vinculado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), grupo de pesquisa no qual atuam os autores do livro e também o autor deste prefácio.

A análise da atuação política da burguesia brasileira não é um tema novo na bibliografia de Ciências Sociais e de História, mas esta coletânea traz novidades. Ela mobiliza, dentre outros, os conceitos de fração burguesa, bloco no poder e hegemonia de fração, conceitos que permitem que as análises descubram regularidades no comportamento político de uns e de outros segmentos da burguesia brasileira; detectem os principais conflitos que dividem a classe capitalista no período; e expliquem a turbulência do processo político nacional dos anos recentes, não apenas como resultado da contradição entre trabalhadores e capitalistas, mas também – e por certo principalmente, em se tratando do Brasil atual – como resultado do conflito entre diferentes frações de uma mesma classe social – a classe burguesa.

Os estudos pioneiros sobre a burguesia brasileira tiveram muitos méritos. Foram estudos desbravadores, preocupados com o esclarecimento das grandes linhas da política nacional e que não escondiam o seu engajamento político. Para boa parte deles, tratava-se de saber se existia ou não no Brasil uma burguesia nacional disposta a assumir a luta contra o imperialismo. Outro mérito foi o fato de tais estudos estarem atentos às mudanças nos laços de dependência – basicamente, a transição do que denominavam “modelo agrário-exportador” para a “industrialização via substituição de importação”. Essa transição exigiu a reformulação dos laços com os países imperialistas e, portanto, diziam respeito, também, aos interesses dos diferentes segmentos da burguesia brasileira.

É nossa opinião, contudo, que tais estudos padeceram de limitações. Dos dois lados da barricada, tanto aqueles que defendiam a existência de uma burguesia nacional no Brasil, quanto aqueles que a negavam, faltaram os conceitos de fração burguesa, de bloco no poder e, particularmente, o conceito de burguesia interna. Se considerarmos alguns estudos clássicos, como os estudos de Caio Prado Jr, Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso, todos eles, em grau maior ou menor, ao negarem a existência de uma burguesia nacional, inclinam-se a cometer o erro simétrico e oposto, pois sugerem a total integração subordinada e uniforme de todo o conjunto da burguesia brasileira ao capital estrangeiro.

Os estudos presentes em A burguesia brasileira de Lula a Bolsonaro procedem de outro modo. Concebem, apoiando-se em Nicos Poulantzas, uma gradação na relação da burguesia dos países dependentes com o capital estrangeiro, gradação essa que permite pensar, conceitualmente, ao menos três posições: a posição de burguesia nacional, a de burguesia associada e, uma posição intermediária entre as duas anteriores, que seria a posição de burguesia interna.

Este livro descarta a existência de uma burguesia nacional no Brasil, mas, e seguindo as análises que têm sido feitas no já citado Grupo de Pesquisa “Neoliberalismo e relações de classe no Brasil”, destaca a existência de uma burguesia interna, fração que teria tido papel hegemônico no bloco no poder durante os governos do PT. Tais teses são desenvolvidas com base em amplo e cuidadoso levantamento documental de primeira mão.

O imperialismo, e também a dependência que é o seu correlato, passa por diferentes fases. Os clássicos citados analisaram o comportamento político da burguesia brasileira na fase que Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto denominaram “a nova dependência”. Tratava-se da fase na qual o capital estrangeiro, reagindo a um impulso interno provocado pelo Estado desenvolvimentista construído a partir da Revolução de 1930, decidiu, não sem inicial hesitação do imperialismo estadunidense, aderir ao processo de industrialização periférica. Foi diante desse quadro que Caio Prado Jr. perguntou em tom polêmico, no seu livro A revolução brasileira, por qual motivo a burguesia brasileira haveria de assumir a luta anti-imperialista se o imperialismo estava propiciando-lhe oportunidades inéditas e crescentes de investimento e participando de um amplo processo de modernização capitalista do Brasil.

O argumento de Caio Prado Jr. está superado na fase atual. O livro que o leitor tem em mãos analisa o comportamento político das distintas frações da burguesia brasileira, não mais na fase que foi denominada “nova dependência”, mas numa fase em que, para retomar a análise elaborada por Samir Amin, o imperialismo estabelece com a periferia uma relação de “sucção” sem “compensação”, tolhe o desenvolvimento do capitalismo na periferia e nada mais tem a oferecer, mesmo que secundariamente. O quadro é novo e diferente e os textos deste livro tomam esse fato em consideração.

*Armando Boito é professor titular de ciência política na Unicamp. Autor, entre outros livros, de Estado, política e classes sociais (Unesp).

 

Referência


André Flores Penha Valle & Pedro Felipe Narciso. A burguesia brasileira em ação: de Lula a Bolsonaro. Florianópolis, Enunciado Publicações, 2021, 320 págs.

 

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