Por LUCIANO MIGLIACCIO*
Comentário sobre o livro de Dora e Erwin Panofsky.
A caixa de Pandora apresenta a história da representação deste mito, desde a antiguidade greco-romana até as obras de Paul Klee e Max Beckmann, com o subsídio da análise de uma ampla série de fontes literárias e documentos figurativos. Representa ao mesmo tempo um exemplo admirável da aplicação dos métodos da iconologia na história da arte, a história de uma imagem condensando muitos contraditórios aspectos da relação entre o homem e a mulher, e o documento da vida de um casal.
Pandora é, de fato, o nome que reúne, como em um único ser, as vidas de Dora (Dorothea) e de Erwin Panofsky. O nome da esposa, ela também historiadora da arte, na capa do livro, surge como uma declaração mútua de amor, depois de uma vida de trabalho comum. Os dois estudiosos investigam a transmissão e a transformação do mito de Pandora, presente “belo e mau” dos deuses para os homens, seu vaso ou sua caixinha, invenção de Erasmo de Roterdã, talvez imagem inconsciente do sexo feminino, contendo os males (na versão de Hesíodo), os erros (na versão socrática), os pecados (na versão cristã), que se espalhariam pelo mundo. Ou conteria talvez o cofrinho as virtudes que retornariam ao céu desdenhando o mundo dos homens?
Dorothea, então, é também “Pandora”, porque o encontro com uma mulher significa o encontro com todas as imagens da feminilidade sedimentadas na memória da nossa cultura. Mas é possível fazer uma história das imagens? Existe uma ordem no nascer, multiplicar-se, combinar-se, desfazer-se e recompor-se das imagens? Este livro demonstra que, apesar da aparência confusa, o mundo das imagens é um mundo ordenado e que é possível fazer a história da arte como história das imagens.
Aby Warburg e seu círculo de Hamburgo, em que Panofsky e a esposa se formaram, demonstraram com pacientes pesquisas filológicas que a cultura artística do ocidente moderno vive da herança de imagens recebidas do passado como um repertório lexical de uma língua: um processo histórico de “longa duração” pelo qual na cultura ocidental a história das formas constitui sua própria memória, num triplo movimento de produção, transmissão e transformação dos modelos da Antiguidade. A imagem é um signo, a atribuição de um significado a ela é processo cultural e social.
O caminho da imagem, assim como o apresenta Panofsky, é tortuoso, casual, cheio de ambiguidades, de voltas, de diversões repentinas: certamente não possui uma lógica, nem uma direção, nem uma finalidade. Mas talvez seja possível descobrir nele uma ordem. O artista é um homem que participa da cultura do seu tempo. A cultura figurativa constrói sempre com materiais do passado, adaptando-os ao presente, a partir de experiências muitas vezes remotas, às vezes apagadas. O dado mnemônico fica muitas vezes cortado, indefinido, até equivocado, mas na ordem da cultura o próprio erro produz significado.
Os dois historiadores sabem que não podem se dar ao luxo de trabalhar com materiais selecionados de consagrado valor artístico para estudar o processo criativo. Reúnem o maior número possível de documentos direta ou indiretamente relacionados ao tema que determinaram estudar. Como geógrafos estudando uma correnteza de água, buscam encontrar sua nascente, desenhar seu percurso, compreender seu comportamento. Pode acontecer que o tema se apresente em alguma obra-prima famosa, mais frequentemente a sua presença ou a sua transformação são documentadas por imagens destinadas ao consumo comercial ou a fins utilitários como as ilustrações de livros, as estampas populares, as moedas, os naipes etc.
A imagem gasta, consumida, replicada centenas de vezes e deformada pelo descuido com que é adaptada às mais variadas situações é muitas vezes bem mais eloquente, para os historiadores da imagem, que a versão erudita, fixada com uma precisa estrutura formal. Às vezes associada ou combinada a novos conteúdos devido a confusões, ou a assonâncias com outras imagens do repertório da memória coletiva, ela é o documento de uma cultura, um signo a que é possível atribuir, como às palavras, vários significados.
Para quem já conhece os ensaios teóricos de Panofsky, ou para quem quiser se aproximar dos métodos da iconologia, a leitura deste escrito fluido e agradável na tradução portuguesa é uma experiência realmente gratificante. A presença de apêndices sobre as fontes e as obras analisadas e de um útil índice remissivo contribui para oferecer ao leitor uma guia para orientar-se na imensa erudição mobilizada pelos autores.
*Luciano Migliaccio é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Publicado originalmente no Jornal de Resenhas no. 3, julho de 2009.
Referência
Dora e Erwin Panofsky. A caixa de Pandora: as transformações de um símbolo mítico. Tradução: Vera Pereira. São Paulo, Companhia das letras, 252 págs.