Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
A recente expansão do mercado de produtos supérfluos para exibicionismo de status social está diretamente ligada a poucas pessoas de alto poder aquisitivo
Casualmente, neste fim de semana, assisti a última temporada da série The Crown, indicada pela Academia de Artes e Ciências Televisivas dos Estados Unidos para a 75ª edição do Primetime Emmy Awards, o principal prêmio da indústria americana de televisão e streaming. Assisti, também na Netflix, A bilionária, o mordomo e o namorado, uma minissérie documental de três episódios, sobre como um conflito entre uma das mulheres mais ricas do mundo e sua filha virou um escândalo nacional na França. Coroou o périplo pelo mundinho dos bilionários a leitura do estudo exclusivo da Bain, feito a pedido do jornal Valor econômico (08/12/23) e da revista Vogue, sobre o mercado de luxo no Brasil.
Comecemos pelo início: o fim da primeira parte da última temporada de The Crown. A representação de eventos históricos, na série, se aproxima da memória coletiva do público, mas ela não é um documentário, apesar do excelente roteiro de Peter Morgan.
Leva-nos a uma questão: por qual razão a monarquia constitucionalista, no Reino Unido, é preservada? Há uma série de razões históricas, culturais e políticas – e os privilégios da família real fazem parte desse sistema.
A história da monarquia no Reino Unido remonta a séculos. A tradição monárquica é enraizada na cultura britânica como parte integrante da identidade nacional.
A monarquia constitucionalista, onde os poderes do monarca são limitados por uma Constituição e exercidos em grande parte pelo Parlamento, tem proporcionado estabilidade política ao longo do tempo. A transferência de poderes para representantes eleitos ajudou a evitar transições abruptas de governos.
A presença de uma figura simbólica e apolítica, como o monarca, representa a união da nação. A monarquia transcende as divisões partidárias e representa a continuidade histórica – além de constituírem atrações turísticas…
O Reino Unido possui uma Constituição não escrita, baseada em documentos históricos, leis, costumes e convenções. A monarquia faz parte dessa Constituição adaptável.
Os membros da família real desempenham um papel principalmente cerimonial e representativo. Embora, formalmente, tenham certos poderes e responsabilidades, na prática, os poderes governamentais são exercidos pelo Parlamento e pelo Primeiro Ministro.
A monarquia representa uma continuidade institucional. Enquanto os governos mudam com eleições, ela permanece como uma instituição constante. O sistema britânico é conhecido por evoluir, gradualmente, ao longo do tempo, por meio de consenso, reformas e votação, como no Brexit, em vez de revoluções abruptas.
Em pesquisas de opinião, a monarquia recebe apoio significativo da população. Muitas pessoas veem-na como uma instituição valiosa para a nação britânica. Ela coexiste com a democracia representativa, imperando os eleitos para o Parlamento. Os privilégios da família real são mantidos em grande parte por tradição e acordo constitucional.
Na Europa, também têm monarquias países como Bélgica, Dinamarca, Espanha, Holanda Liechtenstein, Luxemburgo, Mônaco, Noruega e Suécia. No Oriente Médio, a lista inclui Arábia Saudita, Catar e Kuwait, entre outros. Na Ásia, o exemplo mais conhecido é o do Japão.
As dinastias europeias são historicamente associadas às famílias reais com “predestinação divina” (sic) para exercerem poder monárquico em diferentes países ao longo dos séculos. Nem todas essas dinastias são bilionárias em comparação às famílias com grandes fortunas pessoais acumuladas no setor privado.
As dinastias remontam a casas reais ancestrais, cuja sucessão é baseada em critérios hereditários. Detêm terras, propriedades e recursos associados ao poder real, mas esses ativos geralmente são de natureza pública, ligados à administração do Estado. O papel moderno das dinastias reais europeias é mais simbólico e cerimonial em lugar do exercício ativo de poder político.
As fortunas privadas extremamente grandes são concentradas em sucessos empresariais capitalistas. Pior, buscam copiar características cerimoniais das dinastias tradicionais, como mostra outra série, Downton Abbey, com a vida de uma delas e seus empregados.
A França, desde a Revolução de 1789, é uma república democrática semipresidencialista, cujo governo é constituído pelo Primeiro-Ministro, nomeado pelo Presidente, sendo responsável perante o Parlamento e incumbido de formar um ministério. O governo, encabeçado pelo Primeiro-Ministro, deve sempre ser apoiado pela maioria da Câmara, senão sofre uma moção de censura – e cai…
Justamente nesse contexto acontece a minissérie documental A bilionária, o mordomo e o namorado. Narra a história real do escândalo francês acerca da herança da mulher mais rica do mundo. Acompanha a investigação e a cobertura midiática do Caso Bettencourt, uma briga de mãe e filha envolvendo uma fortuna gigantesca com ações de um império empresarial, cujo fundador era antissemita e simpatizante do nazifascismo.
A história gira em torno de Liliane Bettencourt, herdeira do grupo L’Oreal, com intenção de dividir ½ da herança, senão com o namorado, “até mesmo com pobres”, e só deixar ½ para filha única. O “namorado” homossexual faz contínua extorsão sentimental e ganha cerca de um bilhão de euros. O mordomo instala escutas espiãs contra ele, mas acaba comprovando sonegação fiscal do dinheiro enviado para “paraísos fiscais”, com o presidente Nicolas Sarkozy (2007-2012) e o tesoureiro de sua campanha eleitoral (e futuro ministro) acobertando-a à custa de seu financiamento ilegal em papel-moeda.
Uma curiosidade da série é reproduzir as conversas realmente gravadas com encenação de atores e apresentar depoimentos dos personagens reais em torno do drama, exceto da bilionária e de sua filha. Impressiona o narcisismo daqueles na sociedade espetáculo!
A fortuna de Liliane Bettencourt era estimada em 30 bilhões de euros, ou seja, cerca de R$ 160 bilhões. Para comparar com o consumismo dos novos-ricos brasileiros: todo o mercado de luxo no Brasil movimentou “apenas” R$ 74 bilhões em 2022.
A pesquisa da consultoria Bain & Company, a pedido do jornal Valor econômico e da revista Vogue, traça retrato da situação atual e perspectivas para nove segmentos: moda e itens pessoais, imóveis, automóveis, saúde, aeronaves privadas, iates, arte, hotéis e bebidas finas.
A recente expansão desse mercado está diretamente ligada a poucas pessoas de alto poder aquisitivo. Em 2022, mostra o estudo, o Brasil tinha 114 mil pessoas com pelo menos US$ 1 milhão (cerca de R$ 5 milhões) em ativos líquidos, quase o dobro das 64 mil de 2018. A parcela afluente, de indivíduos com mais de US$ 100 mil em ativos líquidos, também quase dobrou, de 670 mil para 1,2 milhão.
Essa pequena parte da população em 2022 acumulava riqueza equivalente a mais de um terço do PIB brasileiro, US$ 717 bilhões (R$ 3,5 trilhões). Em 2018, tinha US$ 360 bilhões.
Em outubro de 2023, o volume financeiro aplicado pelos 70.580 grupos econômicos por domicílio (157.352 contas) do Private Banking atingiu R$ 1,979 trilhão (US$ 401 bilhões ou 373 bilhões de euros). O crescimento no ano corrente foi de 6,38%. Em dezembro de 2020, antes da retomada da elevação da Selic, o volume financeiro era US$ 1,625 trilhão, ou seja, a fortuna desse segmento cresceu R$ 354 bilhões (ou 22%) em quase três anos.
Para comparar, as 132,6 milhões de contas do varejo tradicional acumularam R$ 1,871 trilhão ou R$ 14.103 per capita e as 15,4 milhões de contas do Varejo de Alta Renda, R$ 1,619 trilhão ou R$ 105.283 per capita. A média per capita das contas (CPF) do Private Banking atingiu R$ 12.579.690,39. Só.
Metaforicamente, essa estratificação tripla representaria, primeiro, “os descendentes dos escravos”, depois, “os descendentes dos remediados expulsos ou emigrantes da Europa”, finalmente, no topo estão “os herdeiros dos colonizadores dinásticos…”. Isso é uma ironia, diante de tamanha desigualdade social, porque também houve ascensão profissional de uma pequena parcela de brasileiros com ensino superior completo.
O nível de instrução alcançado pela população adulta de um país é um legado do investimento em educação feito em décadas passadas. Segundo os dados da PNADC 2022, o percentual de pessoas de mais de 65 anos com ensino superior completo era de 11,1%, enquanto na faixa de 25 a 64 anos era 20,7%.
Os novos-ricos (menos de 1%) com maior patrimônio líquido do país estão concentrados em São Paulo (metade deles), seguido por Rio de Janeiro, com 16% dessa população, e 7% em Belo Horizonte. O segmento de moda e itens pessoais de luxo cresce no Brasil a um ritmo anual de 8% a 10%, enquanto no mundo a expansão está na faixa de 5% a 7%.
Moda e itens pessoais considera vendas do mercado primário de vestuário (25%), calçados e acessórios (26%), joias e relógios (27%) e produtos de beleza (22%), ou seja, produtos supérfluos para exibicionismo de status social. Na segmentação por vestuário, um item de luxo custa de três a cinco vezes mais em comparação ao preço do “premium”. Este, por sua vez, já é 30 vezes mais alto diante do varejo popular.
*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/3r9xVNh]
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