Por GILBERTO LOPES*
Os Estados Unidos têm tido uma história inconsistente de promoção da democracia ao redor do mundo
“Eeeee! Vamos voltar, voltar, voltar. Vamos voltar!”, gritavam milhares de pessoas no dia 10 de dezembro na Praça de Maio, celebrando em Buenos Aires outro aniversário do fim da ditadura que governou o país entre 1976 e 1983. No palco, o presidente Alberto Fernández e os ex-presidentes Lula, do Brasil, Mujica, do Uruguai, e Cristina Fernández, agora vice-presidente argentina, comemoravam o retorno à democracia.
“A democracia é a melhor maneira que temos na sociedade para poder conviver, mas a democracia sem justiça e sem igualdade não é democracia”, disse Alberto Fernández. Para Mujica, a democracia é a melhor forma que os seres humanos inventaram para conviver. Com muitos defeitos, que ele atribuiu a “defeitos humanos”, não à democracia. Um sistema que, na opinião dele, nunca está terminado, está sempre em aperfeiçoamento.
De sua parte, Lula considerou a democracia como “a melhor e mais importante forma de governo”. Permite pluralidade, divergência e diversidade. A democracia, acrescentou, “não é um pacto de silêncio, mas um processo efervescente pelo qual a sociedade busca construir um mundo justo, mais solidário, fraterno e humanista”. Mas a elite econômica e política se apropriou da democracia, distorcendo a justiça para defender os interesses dos ricos, mais que os dos pobres.
Cada um reivindicou sua própria democracia. Não são os únicos. Há 57 anos, em plena Guerra Fria, havia “uma ameaça real à paz e à democracia”, afirmou o general Walter Braga Netto, nomeado ministro da defesa do Brasil pelo presidente Jair Bolsonaro (e que aspira a ser seu vice-presidente nas eleições de novembro deste ano), numa “Ordem do dia” alusiva ao golpe de Estado que levou os militares ao poder no Brasil em 31 de março de 1964. “As Forças Armadas assumiram a responsabilidade de pacificar o país, enfrentando os desgastes de reorganizá-lo e de garantir as liberdades democráticas que hoje desfrutamos”, disse Braga Netto. É a democracia dele. Foi Bolsonaro, um ex-capitão do exército, que se empenhou em resgatar o golpe militar, que Fernando Azevedo e Silva, antecessor de Braga Netto no cargo, tinha afirmado ser “um marco para a democracia brasileira”. É, certamente, a mesma democracia de Braga Netto.
O golpe de 1964, que derrubou o presidente João Goulart, instaurou um regime militar que durou até 1985. Documentos estadunidenses desclassificados em 2018 revelaram que, nesse período, a prisão, tortura, morte ou desaparecimento de dissidentes eram frequentemente decididos no palácio presidencial. A democracia utilizava então todas as suas armas. “Gregorio Bezerra, negro, comunista, de Pernambuco, foi preso e arrastado pelas ruas de Recife (capital do estado) amarrado a um jipe com uma corda. Era uma forma de mostrar o que o novo regime estava disposto a fazer com qualquer pessoa que resistisse à ditadura”, lembrou o cientista político brasileiro Emir Sader num artigo publicado no último aniversário do golpe, 31 de março passado. “O Brasil viveu, durante a ditadura militar, o pior momento de sua história”, disse ele.
O golpe de 1964, ao contrário do que afirmam Braga Netto e Bolsonaro, “interrompeu a democracia e foi um acontecimento que divide a história brasileira. Apenas 19 anos após o reinício da democracia, em 1945, as forças armadas tomaram o poder, destruíram a democracia brasileira e permaneceram no poder durante 21 anos”. O Estado brasileiro foi militarizado. “Houve uma repressão generalizada do movimento popular, partidos e movimentos sociais, sindicalismo, intelectuais de esquerda, universidades e militância de esquerda em geral. Milhares de brasileiros foram presos, torturados (a tortura tornou-se a forma sistemática de interrogatório), assassinados, exilados. Milhares desapareceram”.
Vladimir Herzog, militante comunista e diretor do departamento de jornalismo da TV Cultura, decidiu apresentar-se, em outubro de 1975, a um dos mais reconhecidos centros de repressão de São Paulo. Ele queria esclarecer sua situação e pôr fim ao assédio a que estava submetido. Não saiu de lá vivo. “Acabaram com ele no dia seguinte. Dentre os nomes que sempre foram considerados entre seus executores estão os de Pedro Antônio Mira Grancieri, inspetor de polícia que confessou numa entrevista à revista Isto é no início dos anos 90, e do coronel Audir Santos Maciel, um dos coordenadores dos interrogatórios. O primeiro cunhou a frase ‘os comunistas têm que mijar e cagar sangue’, enquanto chutava os rins dos detidos. O segundo ordenava que lhes fossem dadas as mesmas injeções com as quais os cavalos eram sacrificados”, segundo o relato do jornalista Víctor David López, publicado no El Diario da Espanha, em 5 de agosto de 2018.
Depois de assassinado, os militares encenaram um falso suicídio por enforcamento, que a justiça de então validou. A Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil por este crime e continua à espera da reabertura da investigação do caso. Para Braga Netto e o atual governo brasileiro, no entanto, tratou-se de um movimento de “pacificação” do país.
Bolsonaro recebeu no palácio de governo a esposa do coronel Brilhante Ustra, um reconhecido torturador que morreu em outubro de 2015, cujo nome evocou ao emitir seu voto como deputado no procedimento do golpe contra a então presidente Dilma Rousseff. Ustra torturou-a nos anos 70. Era prática dele levar os filhos para verem suas mães serem torturadas.
Para a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), “comemorar a instalação de uma ditadura que fechou as instituições democráticas e censurou a imprensa é querer dirigir olhando no espelho retrovisor uma estrada tenebrosa”. Na América Latina, após um par de décadas de ditaduras militares na segunda metade do século passado, a democracia foi o termo utilizado para descrever os regimes que as substituíram.
Em 1973, o governo norte-americano decidiu que a democracia estava em perigo no Chile. Quase 50 anos depois, a história da democracia acaba de escrever outra página naquele país. “Quem pode estar interessado em celebrar um regime que mutilou pessoas, que fez desaparecer seus inimigos, que separou famílias, que torturou tantos brasileiros e brasileiras, inclusive mulheres grávidas?”, perguntou a OAB. A história dá-nos a resposta: para aqueles que acreditam que assim se constrói uma democracia, chutando o rim dos “comunistas”.
E então, de repente, bum!
Mais recentemente, a luta pela democracia mergulhou o mundo em diferentes conflitos. Em novembro de 2006, o então presidente dos Estados Unidos, George Bush filho, afirmou que a sentença de morte do presidente iraquiano Saddam Hussein era “uma conquista importante para a jovem democracia do Iraque”. Quando foi executado, emitiu uma declaração dizendo que se tratava de “um marco importante na direção seguida pelo Iraque para se tornar uma democracia”.
O relato do presidente Donald Trump sobre o assassinato do comandante iraniano Qasem Soleimani em 3 de janeiro de 2020, num jantar privado de arrecadação de fundos, é outro exemplo de democracia em pleno funcionamento. A história é contada assim: “Estão juntos, senhor”, disseram-lhe os militares encarregados da missão, que observavam tudo a quilômetros de distância. “Senhor, eles têm dois minutos e 11 segundos”. Nenhuma emoção. “Dois minutos e 11 segundos de vida, Senhor. Estão dentro do carro, num veículo blindado”. “Senhor, eles têm aproximadamente um minuto de vida. 30 segundos. 10, 9, 8…”, narrou Trump durante o jantar. “Então, de repente, bum!”. “Eles se foram, Senhor. Desligando”, contou o presidente sobre aquele momento.
As jaulas dos prisioneiros na base de Guantánamo, as histórias de torturas, tudo isto faz parte das muitas faces da democracia. Para avaliar a democracia atual, não é necessário voltar a textos com mais de 300 anos, nem comparar os regimes políticos de hoje com os modelos desenvolvidos pelos think thanks conservadores norte-americanos.
Alexis de Tocqueville, pensador francês, político e diplomata, para descrever a democracia, foi observar a que nascia em seu próprio berço, há quase 200 anos: os Estados Unidos, onde nasceu sem a herança de um passado feudal. Hoje não precisamos mais olhar para essa história, já longa, com mais de três séculos, para avaliar as muitas faces da democracia. Ensina muito mais do que ler Locke. Estamos falando da democracia real.
A democracia como instrumento
A dúvida foi levantada, entre outros, por Bruce Jones, diretor do Project on International Order and Strategy, um programa com sede em Washington que analisa as mudanças na ordem internacional e suas implicações para os interesses dos Estados Unidos. Tinha dúvidas de que Biden pudesse convocar as democracias mais poderosas para seu projeto, lançado na Cúpula pela Democracia em 9 e 10 de dezembro passado. Citou objetivos para o projeto que considerava contraditórios: um relançamento da democracia como elemento fundamental da política externa norte-americana; uma tentativa de restaurar o danificado sistema democrático estadunidense; e uma oportunidade de consolidar um bloco contra a crescente influência da China no mundo. “A retórica de Biden deixa espaço para todas estas interpretações”, disse ele.
Para seu colega da Brookings Institution, Thomas Pepinsky, a Cúpula pela Democracia de Biden foi uma oportunidade para realçar a importância das liberdades civis, da liberdade de consciência e do dissenso pacífico, “num momento em que a democracia está numa situação frágil em todo o mundo”. Isto acontece precisamente quando Julian Assange enfrenta um formidável assédio político dos Estados Unidos para assegurar sua extradição da Grã-Bretanha e dar um exemplo ao mundo de que o exercício das liberdades tem seus riscos. Pepinsky reconhece que “os Estados Unidos têm tido uma história inconsistente de promoção da democracia ao redor do mundo”.
A administração Biden vê a cúpula como uma ocasião para construir estratégias para fortalecer as democracias diante dos autoritarismos. Mas tem uma ambição geopolítica maior: construir uma coalizão global de democracias “para conter a expansão da China e a agressão continuada da Rússia”. Com as tropas da OTAN avançando para suas fronteiras, em violação dos acordos negociados quando a União Soviética colapsou, o Ocidente apresenta a Rússia como agressor. Mas a Rússia opera em suas fronteiras e denuncia a instalação de mísseis com capacidade nuclear a apenas quatro minutos de Moscou.
Nestas circunstâncias, é impossível esquecer a crise dos mísseis de 1962, quando os Estados Unidos lançaram um bloqueio naval contra Cuba e exigiram o desmantelamento das bases que a União Soviética tinha instalado nesse país. Pepinsky também não estava otimista quanto aos objetivos e resultados da cúpula. Entre outras coisas porque não daria uma resposta aos problemas de administração e desenvolvimento econômico, que são – para ele – os que mais interessam às pessoas em todo o mundo.
Ele lembra que o desempenho econômico dos países que descreve como “autoritários” – cita a China, Vietnã e Singapura – torna difícil defender a ideia de que as democracias são mais eficazes em termos de desenvolvimento econômico. Para Pepinsky, contudo, o caso da democracia é simples: é o único sistema político que institucionaliza a proteção das minorias, os direitos dos jornalistas, dos cidadãos e dos líderes da oposição.
Uma afirmação que, como já vimos, não resiste ao menor confronto com a realidade. Assim como no século XIX o sistema colonial foi construído a partir da concepção europeia de que a raça branca era a encarregada de levar a civilização aos negros na África, no século XX, nos Estados Unidos, prevalece a ideia de que são eles que estão encarregados de impor sua ordem política – a democracia – ao mundo. Os latino-americanos conhecemos melhor do que ninguém as consequências dramáticas destas aspirações, que também nunca estiveram separadas de uma dose profunda de racismo.
A democracia como sistema
O debate sobre a democracia pode ir um pouco mais longe e aprofundar a natureza do conceito. Um debate suscitado tanto pela Rússia como pela China, em resposta à convocação de Biden. Dias antes da abertura da cúpula, o Ministério das Relações Exteriores da China divulgou dois relatórios. O primeiro – sobre “O estado da democracia nos Estados Unidos” – começava com um capítulo sobre “o que é a democracia”. “A democracia é um valor comum compartilhado por toda a humanidade”, diz o documento. “É um direito de todas as nações, não uma prerrogativa de uns poucos. Tem diferentes formas, não há um modelo que sirva para todos”. A dos Estados Unidos, acrescenta, “está atormentada por problemas profundamente arraigados”, práticas caóticas, com consequências desastrosas cada vez que tenta exportar sua visão da democracia.
Já em 2006, Thomas Carothers, então diretor do projeto sobre democracia e Estado de Direito no Carnegie Endowment for International Peace, tinha indicado que os Estados Unidos gastariam mais de um bilhão de dólares nesse ano, em mais de 50 países, em programas de promoção da democracia. Eram as chamadas “revoluções coloridas” que irromperam sobretudo no Norte de África e na Ásia, um modelo que agora tentam aplicar também na América Latina.
Só para financiar a “imprensa independente”, Biden anunciou mais de 400 milhões de dólares. Carothers já falava do apoio a “grupos civis independentes, que muitas vezes incluem dinâmicas organizações estudantis”. Apoio à participação eleitoral destes grupos de oposição, aos quais, ademais, treinavam e, algumas vezes, concediam equipamentos ou outra assistência material “para ajudá-los a fazer uma campanha eficaz”.
Num segundo documento, mais longo – “Uma democracia que funciona” (China: democracy that works) –, o governo chinês analisou seu próprio sistema político e a natureza de sua democracia. A democracia “não é um ornamento decorativo, mas um instrumento para enfrentar os problemas que preocupam as pessoas. Um país é democrático quando o povo é o verdadeiro dono do país. Um tema sobre o qual se estendem longamente depois. “Os Estados Unidos reivindicam seu direito de decidir o que se pode qualificar de democracia e o que não se pode. Isto é cínico, patético, dado o estado da democracia e dos direitos humanos nos Estados Unidos e no Ocidente, em geral”, disse a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores russo, Maria Zakharova.
Especialistas em política externa, os mais visionários, como diria Ted Piccone, investigador do Programa de Política Externa da Brookings Institution, sempre quiseram construir uma grande aliança de democracias que facilitasse um realinhamento da ordem internacional em favor das democracias liberais e oferecesse ao mundo uma alternativa convincente ao que ele chama de “modelo autoritário chinês”. Na opinião de Piccone, os Estados Unidos e a Europa têm sido exemplos relativamente bem-sucedidos de um tal modelo de democracia. Mas, na realidade, é este o modelo de democracia que se baseia na ordem econômica e política dos Estados Unidos e da União Europeia, como afirmam Alexander Cooley e Daniel H. Nexon em seu artigo na edição de janeiro/fevereiro de Foreign Affairs, “The real crisis of global order”.
Embora ambos reconheçam que “a defesa da democracia liberal produziu excessos terríveis no passado, incluindo uma repressão feia e uma violência horrível”. Em qualquer caso, Branko Milanovic, um economista sérvio-estadunidense e ex-chefe do Departamento de Investigações do Banco Mundial, advertiu que a Cúpula pela Democracia era “uma ideia equivocada”. “Todos os grandes conflitos começam com uma grande justificação ideológica”. “O que eles estão fazendo é o oposto de uma abordagem cosmopolita de busca pela paz, de construção de compromissos, o que exige a procura de uma área de entendimento comum entre sistemas e países”, disse ele. Este novo projeto grandioso, se sobreviver, acrescentou Milanovic, acabará revelando seus objetivos: servir apenas como uma cobertura fina para obter objetivos muito mais mundanos.
*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor de Crisis política del mundo moderno (Uruk).
Tradução: Fernando Lima das Neves.