Por MICHAEL ROBERTS*
Ao se considerar o Sul Global como um todo, vê-se que ele não está alcançando o Norte Global. Com exceção da China, há uma divergência crescente em vez de uma convergência
Em um artigo recente, revisei um novo — e bem importante — livro dos economistas marxistas brasileiros Adalmir Antônio Marquetti, Alessandro Miebach e Henrique Morrone. Eles trabalharam com um modelo de desenvolvimento econômico baseado, por um lado, na mudança técnica, na taxa de lucro e na acumulação de capital e, por outro, na mudança institucional (ou seja, políticas e governos). Juntos, esses dois fatores são combinados por eles para explicar a dinâmica de alçamento ou de retardamento do processo de desenvolvimento.
A realidade é que, no século XXI, a “recuperação” não está acontecendo para quase todos os países e, assim, para as populações do chamado “Sul Global”, ou seja, para a periferia pobre fora das economias capitalistas avançadas do Norte Global. Essa realidade é frequentemente negada pelos economistas convencionais e, em particular, pelos economistas das agências internacionais como o FMI e o Banco Mundial.
Portanto, foi surpreendente descobrir que, em seu último Relatório de Desenvolvimento Mundial, o Banco Mundial admitiu que a maioria das economias do Sul Global não está fechando a lacuna na renda per capita ou na produtividade do trabalho que mantêm com as economias capitalistas avançadas. Reconheceu também que existem muitos países extremamente pobres, como os da África Subsaariana, que estavam e ainda se encontram presos numa armadilha de pobreza desesperadora. Mas os economistas desse banco são geralmente mais otimistas em relação ao que chamam de “economias de renda média”, ou seja, aquelas com renda anual per capita variando de US$ 1.136 a US$ 13.845.
Em seu último relatório, o Banco Mundial apresenta uma visão mais pessimista sobre o futuro dos 108 países que classifica como de “renda média”. Ora, como mostra o quadro abaixo, esse conjunto responde por quase 40% da atividade econômica global, por mais de 60% das pessoas que vivem em extrema pobreza e por mais de 60% das emissões globais de dióxido de carbono (CO2).
É assim que o Banco Mundial apresenta esse tipo de informação: “os países de renda média estão em uma corrida contra o tempo. Desde a década de 1990, muitos deles se saíram bem o suficiente para escapar dos níveis de baixa renda e erradicar a pobreza extrema, levando à percepção geral de que as últimas três décadas foram ótimas para o desenvolvimento. Mas isso se deve a expectativas abissalmente baixas — remanescentes de um período em que mais de dois terços do mundo vivia com menos de um dólar por dia. A ambição dos 108 países de renda média é alcançar o status de alta renda nas próximas duas ou três décadas. Ao ser avaliado com base nesse objetivo, no entanto, o histórico é sombrio: a população total das 34 economias de renda média que fizeram a transição para o status de alta renda desde 1990 é inferior a 250 milhões — equivalente à população do Paquistão”.
O crescimento médio anual da renda nesses países de renda média caiu quase um terço nas duas primeiras décadas deste século — de 5% na década de 2000 para 3,5% na década de 2010. E o Banco Mundial conclui que “uma reviravolta não é provável em breve porque os países de renda média estão enfrentando ventos contrários cada vez mais fortes. Eles estão enfrentando crescentes tensões geopolíticas e protecionismo, os quais podem retardar a difusão do conhecimento em suas economias; ademais, eles enfrentam dificuldades no serviço das dívidas, assim como nos custos econômicos e financeiros adicionais que precisam suportar em virtude das mudanças climáticas e da ação climática”.
De fato, é isso mesmo. Contudo, quem é o culpado por essa situação? Claramente, os países imperialistas do Norte, que extraíram bilhões em lucros, juros, rendas e recursos do Sul no último século. Quem foram os países que mais contribuíram para o aquecimento global, tal como se pode ver no quadro já mostrado? Quais deles conduziram guerras pelo controle do Sul ou contra qualquer país que se oponha aos seus interesses.
Trabalhos recentes de economistas marxistas e socialistas revelaram o tamanho dessa extração imperialista. E eles são pelo menos quatro: o de Guglielmo Carchedi e Michael Roberts; o de Andrea Ricci ; o de Jason Hickel ; e, finalmente, o de Lefteris Tsoulfidis.
Mas tudo isso é ignorado pelo Banco Mundial. Para ele, a explicação para o fracasso em recuperar o atraso se deve ao fato de que esses países relutam em adotar uma “estratégia de desenvolvimento” correta. Ora, esses países confiaram por muito tempo apenas na tentativa de aumentar o estoque de capital, mas, agora, esse incremento está começando a “gerar retornos decrescentes”. Na linguagem da economia neoclássica, os economistas do Banco Mundial consideram que “por si só, a acumulação de fatores provavelmente piorará os resultados que podem ser obtidos — trata-se de uma ocorrência natural à medida que a produtividade marginal do capital diminui”.
Esse tipo de consideração ficaria mais claro em termos marxistas. Eis aqui como Adalmir Marquetti apresenta o problema: “Sim, os economistas do Banco Mundial reconhecem que a produtividade marginal do capital, a taxa de lucro na tradição neoclássica, diminui devido à acumulação de capital durante a ‘recuperação’. Mas é a queda da taxa de lucro que é o principal determinante do declínio na acumulação de capital e no investimento. O problema é que a taxa de lucro se aproxima do nível dos Estados Unidos muito mais rápido do que a produtividade do trabalho. Essencialmente, a armadilha da renda média é uma “armadilha da taxa de lucro”.
Gulglielmo Carchedi e Michael Roberts chegaram à mesma conclusão em seu livro, Capitalismo no século XXI; às páginas entre 211 e 213 está escrito: “em uma economia capitalista, a lucratividade mais baixa está em conflito com o crescimento da produtividade”. Colocado em termos marxistas, tem-se que à medida que esses países tentam se industrializar, a relação capital-trabalho aumentará e, assim, também a produtividade do trabalho. Se a produtividade do trabalho crescer mais rapidamente do que acontece nos “países líderes”, haverá recuperação.
No entanto, a lucratividade do capital tenderá a diminuir mais rapidamente e isso acabará por desacelerar o aumento da produtividade do trabalho. Em outro trabalho conjunto de Guglielmo Carchedi e Michael Roberts, usando categorias marxistas, descobriu-se que a lucratividade dos “países dominados” começa acima daquela dos países imperialistas por causa de sua menor composição orgânica de capital, mas “a lucratividade dos países dominados, embora persistentemente maior do que nos países imperialistas, cai mais do que no bloco imperialista”. O gráfico em sequência ilustra essa afirmação:
Tendo reconhecido a “armadilha da lucratividade”, mas pensando em termos da teoria neoclássica, o Banco Mundial propõe uma solução para resolver o problema do desenvolvimento das economias de “renda média”; por meio dela, esses países absorvem primeiro, por meio de infusões, a tecnologia do Norte Global para poderem, então, se aproveitar das inovações que serão geradas pelas empresas privadas endogenamente.
Eis o que diz: “No primeiro momento, o investimento é complementado com infusão de tecnologia do Norte; nesse momento, os países (principalmente os países de renda média-baixa) se concentrem em imitar e difundir tecnologias modernas. No segundo momento, a inovação é adicionada ao mix de investimento ainda com infusão, de modo que os países (principalmente os países de renda média-alta) se concentrem na construção de capacidades domésticas para agregar valor às tecnologias globais, tornando-se inovadores. Em geral, os países de renda média precisam recalibrar a combinação dos três motores do crescimento econômico — investimento, infusão e inovação — à medida que avançam para o status de renda média”.
Para os economistas do Banco Mundial, Karl Marx estava errado, pois, esses países de renda média não estão condenados à pobreza permanente e a ficarem sob o controle das economias imperialistas. Ademais, não parece correto pensar “que as economias baseadas no mercado sejam sempre afetadas por uma crescente concentração de riqueza e que elas serão destruídas por crises sucessivas, até que o capitalismo fosse substituído pelo comunismo”.
Em 1942, em seu tratado Capitalismo, Socialismo e Democracia, o economista austríaco Joseph Schumpeter mostrou que o capitalismo tinha uma saída: a “destruição criativa”. Desse modo, das crises pode surgir a restauração e, com ela, o crescimento. Sim, as crises do capitalismo são dolorosas, mas também — julgou ele — criam condições para a prosperidade.
Os economistas do Banco Mundial, em sua sabedoria, concluem que “quase um século depois, muitos dos insights de Schumpeter parecem ter sido confirmados”. No que eles se baseiam para chegar a essa conclusão já que haviam concluído que a grande maioria dos países relativamente pobres (desculpe, países de renda média) está presa na pobreza relativa? Bem, eles se voltam para alguns estudos de caso em que certos países parecem mostrar um caminho.
Na América Latina, há o caso do Chile. O Banco Mundial nos diz que, em 2012, o Chile se tornou o primeiro país latino-americano a alcançar o status de alta renda. Eis o que dizem aqueles que elaboraram o relatório: “O Chile cresceu e diversificou as suas exportações desde a década de 1960, quando a mineração representava cerca de quatro quintos de suas exportações. Essa participação está agora na metade. As transferências de conhecimento das economias avançadas têm sido apoiadas por instituições públicas e privadas”.
Na verdade, não é bem isso. No Chile, o investimento público tem sido o principal impulsionador de uma tecnologia mais avançada que apoia exportações diversificadas. A agência chilena de promoção de exportações (ProChile) e a Fundação Chile, ambas isentas de fins lucrativos, promovem a transferência de tecnologia para os empreendimentos domésticos. E têm sido bem-sucedidas.
O Banco Mundial não faz menção ao horrendo golpe militar ocorrido no Chile, 1973, sob o comando do general Pinochet, que removeu violentamente o governo socialista Allende e matou dezenas de milhares, lançando as bases para o aumento da exploração da força de trabalho. Ironicamente, a taxa média de crescimento real do PIB do Chile de 1951 a 1973 foi de 4,3% ao ano; mas depois de Pinochet e sucessivos governos pró-capitalistas, foi de 4,1% ao ano.
Apesar da compressão das rendas do trabalho, a taxa de lucro caiu na economia chilena para um nível baixo no início dos anos 1980; subiu depois (como em muitos outros países) durante o período de recuperação neoliberal; contudo, agora, está em declínio desde o colapso financeiro global e a Grande Recessão (como em outros lugares). Portanto, na verdade, não se tem uma história de sucesso capitalista no caso do Chile.
Na Ásia, o Banco Mundial se volta para a Coréia para mostrar um modelo de desenvolvimento bem-sucedido. É assim que os economistas do Banco apresentam mais esse caso: “Enquanto o Brasil tropeçava domesticamente, a Coréia corria ao redor do mundo, fazendo da infusão de tecnologia estrangeira a pedra angular da inovação doméstica. Em 1980, a produtividade média de um trabalhador na Coréia era de apenas 20% da produtividade média do trabalhador americano. Em 2019, triplicou, chegando a pouco mais de 60%. Em contraste, os trabalhadores brasileiros, que eram 40% tão produtivos quanto seus colegas americanos em 1980, eram apenas 25% tão produtivos em 2018”.
O sucesso da Coreia foi aparentemente devido a uma “infusão de tecnologia estrangeira”. O Banco Mundial não se refere ao enorme impulso liderado pelo Estado dado à industrialização na década de 1980; ou ao investimento estrangeiro feito pelos EUA para apoiar uma economia capitalista de contenção, que funcionou como um baluarte contra os soviéticos e a China após a guerra da Coréia.
E depois houve a enorme exploração dos trabalhadores coreanos por um regime militar por décadas. Isso explica muito a diferença entre o desenvolvimento da Coreia e do Brasil; a estratégia industrial deste último foi estrangulada pelo neoliberalismo que matou grande parte da indústria nacional para favorecer os setores mais atrasados, o capital estrangeiro e, em particular, o americano.
Há ainda o caso da Polônia, contado pelo Banco Mundial como mais uma história de sucesso, agora na Europa. A adesão à União Europeia com subsídios maciços para o setor agrícola; enorme investimento de capital da manufatura alemã; e a extensa emigração de mão-de-obra desempregada foram fundamentais para o aumento relativo da Polônia. O Banco Mundial mostra isso timidamente: “Os poloneses educados colocam suas habilidades em prática (habilidades obtidas na era soviética — MR) em toda a União Europeia, abrindo outro canal para infundir conhecimento global na economia polonesa”.
Esse é o conjunto total das histórias de sucesso que o Banco Mundial apresenta como exemplo do “modelo Schumpeter” de desenvolvimento. E os economistas do Banco são forçados a admitir que a mudança desses países para “o status de alta renda foi intercalada com crises econômicas… As mudanças de estratégias nos três estágios não são suaves nem lineares.
Não há menção ao “elefante na sala” para o modelo de desenvolvimento do Banco Mundial: a China. Por que a China, um dos países mais pobres do mundo na década de 1950, saltou rapidamente para o status de “renda média” na década de 1990 e continuou a fechar a lacuna com as economias capitalistas avançadas no século XXI? Por que países como o Vietnã e até o Laos também seguiram com sucesso o modelo chinês de desenvolvimento? Os economistas do Banco Mundial não dizem nada sobre isso. Como Marquetti aponta: “Nosso livro inclui números que mostram que a China, o Vietnã e o Laos mantiveram altos níveis de investimento, apesar da queda da lucratividade. E isso foi feito por decisão autônoma que partiu do Estado. Esta é, pois, a condição fundamental para recuperar o atraso.”
O Banco Mundial ignora o modelo de desenvolvimento chinês de investimento liderado pelo Estado, financiamento estatal de infraestrutura e tecnologia com base em planos nacionais com metas, onde a “armadilha da lucratividade” das economias de renda média não se aplica. No livro citado de Carchedi e Roberts mostra-se que houve uma boa correlação entre as mudanças na lucratividade e o crescimento real do PIB na China em comparação com outras economias, particularmente as de “renda média”. A China não sofreu crises na produção e no investimento devido à queda da lucratividade, como os favoritos do Banco Mundial.
Os economistas do Banco Mundial ignoram o papel do investimento e do planejamento estatal. Em vez disso, o Banco quer criar “mercados globalmente contestáveis, reduzir as regulamentações do mercado de fatores e produtos, dispensar empresas improdutivas, fortalecer a concorrência, aprofundar os mercados de capitais”.
Mas qual modelo de desenvolvimento provavelmente terá melhor sucesso? O de Schumpeter que se baseia em crises de lucratividade ou o marxista que se funda na propriedade pública e no planejamento? Podemos refazer a Figura do Banco Mundial no início deste artigo para incluir a China e, assim, comparar o progresso dos dois modelos, ou seja, o da China, com as histórias de sucesso do Banco Mundial (aqueles três já citados).
Descobrimos assim que a “recuperação” do Chile realmente parou desde 2012; eis que a proporção de sua renda per capita em relação à renda per capita dos EUA caiu de 29,9% em 2000 para 28,6% agora. A Coreia vem se estabilizando (ainda que em alto nível) na última década. A Polônia começou num patamar mais alto e levemente cadente da era soviética; mas depois, recuperou-se significativamente devido ao ingresso na União Europeia (EU). A proporção da renda per capita da Polônia em relação aos EUA aumentou mais de 74% em relação a 2000. Mas esse desempenho fica menos impressionante quando é comparado com o aumento realmente fantástico da China; eis que na taxa da renda per capita da China em relação a dos EUA cresceu 314% nos últimos quarenta anos.
Agora, ao se considerar o Sul Global como um todo, vê-se que ele não está alcançando o Norte Global. Com exceção da China, há uma divergência crescente em vez de uma convergência. O gráfico acima apresentado mostra isso dramaticamente. Além disso, no estudo citado não há menção às desigualdades de riqueza e renda nos países de renda média e elas vêm aumentando desde a década de 1980, tal como mostra o Banco de Dados da Desigualdade Mundial.
O relatório do Banco Mundial termina com a observação do economista neoclássico Robert Lucas, que comparou a estratégia de desenvolvimento que levou ao crescimento econômico espetacular na Coréia à realização de um “milagre”. O relatório concluiu: “dadas as mudanças na economia global desde a época em que a Coreia era uma economia de renda média, seria justo concluir que seria um milagre se as economias de renda média de hoje conseguissem fazer em 50 anos o que a Coreia fez em apenas 25. Pode até ser milagroso se eles replicarem as conquistas impressionantes de outros países bem-sucedidos, como Chile e Polônia”.
Sim, realmente, devemos concluir que se seria, sim, um milagre, ainda mais extraordinário porque teria ocorrido sob a ameaça crescente do aquecimento global.
*Michael Roberts é economista. Autor, entre outros livros, de The great recession: a marxist view (Lulu Press) [https://amzn.to/3ZUjFFj]
Tradução: Eleutério F. S. Prado.
Publicado originalmente em The next recession blog.
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