A dominação pela cultura

Imagem: Clem Onojeghuo
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Por LUIS EUSTAQUIO SOARES*

Há uma guerra sem e com quarteis levada a cabo há pelo menos desde 11 de setembro de 2001, com o objetivo de transformar o capitalismo em um neofeudalismo

Panorama

Com Marx e Engels, considerando o materialismo histórico-dialético, é preciso sempre e de modo dinâmico assumir a perspectiva epistemológica de que não seja a consciência que determina a realidade e também de que não seja a realidade em si mesma que determina a consciência.

Pensar que seja a consciência que determina a realidade, ainda em interlocução com Marx e Engels, é acreditar em quixotescas ações imaginárias de não menos quixotescos sujeitos imaginários, convergindo com a teologia e, assim, com céu dos princípios, sem lastro nas relações sociais, econômicas e culturais de produção, históricas e materialmente situadas.

Adotar, por sua vez, o princípio de que a realidade determina a consciência é acatar, ainda em diálogo com Marx e Engels, que a história e com esta a civilização seja uma coleção de fatos mortos, porque assim tem sido a realidade do materialismo oligárquico ocidental dos últimos dois mil e quinhentos anos: guerras de saqueio, escravização, servidão e superexploração, colonização, genocídios.

Interagindo com a segunda e a terceira notas apresentadas, tem-se: (i) aquela diz respeito a formas de representação do mundo e da vida antirrealistas ou idealistas, típicas das circunstâncias históricas típicas da tradição oligárquica ocidental, sem relação de destino com a totalidade do ser social, tendo em vista as formações econômico-sociais concretas nas quais somos o que efetivamente temos sido, opressores e/ou oprimidos, a depender da posição que ocupemos na unidade da contradição das lutas de classes.

(ii) A terceira é empirista ou pseudorrealista pois recorta e reifica a realidade histórica, estando relacionada com formas de representação da natureza e das classes sociais exploradas, marcando-as como vulneráveis, manipuláveis e matáveis; (iii) ambas, a segunda e a terceira, ocultam a luta de classes em escala planetária, nacional e local.

(iv) Ambas naturalizam e eternizam o passado opressor no presente oprimido, desqualificando a práxis individual e coletiva baseada na consciência plena de que tudo é histórico e, assim, mutável, transformável; (v) ambas encarnam-se respectivamente nas classes opressoras e nas oprimidas (naturalizando-as), no processo histórico real que está na base de suas existências antirrealistas (oligarquias, pequena-burguesia) e pseudorrealistas (a classe operária, quando submetida).

A epistemologia e a estética marxianas se implicam, se consequentes e dialéticas, com a interface intrínseca, em cada época oligárquica, da relação entre antirrealismo e pseudorrealismo, para em processo situar materialmente o que importa no âmbito da economia política estética e epistemológica: o realismo científico e artístico, considerando as objetivas relações de produção de um dado período histórico.

O materialismo científico-estético é, pois, realista e ser realista não significa de forma alguma acatar a realidade existente. Pelo contrário, significa conhecê-la e objetivá-la, na sua totalidade dinâmica historicamente constituída, como condição para transformá-la coletivamente. Para isso é indispensável compreender como ocorrem, sempre objetivamente, as relações de produção antirrealistas e pseudorrealistas nas sociedades baseadas na polaridade, opressão e exploração de oligarquias contra a maioria da população e, no limite, contra, também, os ecossistemas.

Com isso se quer dizer o que está dito: as sociedades baseadas em relações sociais de produção, marcadas pela polaridade, opressão e exploração de uma minoria a sanguessugar parasitariamente a maioria, constituem-se alienadamente pela relação entre o antirrealismo e pseudorrealismo. O realismo é, pois, censurado tanto para as classes opressoras quanto para as classes oprimidas. E essa censura é efetiva, real e objetiva, porque advém das relações sociais de produção a um tempo, para ser redundante, antirrealistas (posição materialmente ocupada pelos opressores) e pseudorrealistas (posição efetivamente vivida pelos oprimidos, no âmbito do imediato-vivido, como se estivessem com as próprias mãos cegando os olhos).

Desde 2500 anos atrás, com o surgimento da oligarquia na Grécia antiga, em interação com Michael Hudson (2022), as economias do Ocidente passaram a se estruturar em torno da figura antirrealista do oligarca, que impôs ao mundo, a partir do período colonial, o estado de exceção contra os povos e a natureza em escala planetária, tornados empobrecidos e matáveis de modo pseudorrealista precisamente porque a realidade ( a própria sociedade), não lhes pertente, embora seja produzida pelo trabalho coletivo.

A dialética entre consciência e realidade pressupõe mais dialética, isto é, nem consciência autônoma, como ação imaginária de sujeitos oligárquicos imaginários antirrealistas; nem realidade não menos autonomizada, para não dizer reificada como coleção de fatos mortos antirrealistas.

A guerra de classes será sempre vencida pelos opressores quando estes forem o sujeito do antirrealismo e os oprimidos acatarem a condição de objetos passivos da coleção de fatos mortos, vivendo efetivamente como zumbis. Ob.: É evidente que, como classe oprimida, ser sujeito do antirrealismo é uma quimera pseudorrealista.

Em obras como Contribuição à crítica da economia política, de Marx, Anti-Dühring de Engels, Materialismo e empiriocriticismo, de Lênin, a epistemologia marxiana adquiriu consistência própria, opondo-se tanto ao antirrealismo oligárquico-burguês quanto ao pseudorrealismo das ciências e estéticas positivistas, tendencialmente predispostas a representar a natureza e os povos como coleções de fatos mortos e as classes opressoras como civilizadas, humanas, ideais de ego.

O fascismo nesse contexto não é a exceção, mas a regra latente do sistema oligárquico ocidental. Este, em tempos de crise ou de tendência da queda da taxa de lucro aciona os seus agentes ou lumpens, a fim de fazê-los agir fora dos referenciais ou sistemas de aparência legais e institucionais antirrealistas então existentes, impondo a coleção de fatos mortos como a regra expandida – que na verdade sempre foi, em contextos em que dominam o antirrealismo oligárquico e o pseudorrealismo positivista, na carne vida da natureza e dos povos.

O supremacismo oligárquico ocidental, na dialética entre antirrealismo e pseudorrealismo, impõe-se e se atualiza permanentemente ao protagonizar o estado de exceção não menos permanente contra os povos. Isto é: tem que matar, empobrecer, sacrificar, para se fazer como Deus, no pêndulo – e de modo antirrealista – perante os mortais pseudorrealistas no Pelourinho do cotidiano sequestrado pelas oligarquias nacionais e imperialistas.

As elites ocidentais têm ocupado uma dimensão supostamente teológica e transcendental da seguinte maneira: escondem o seu lado oligárquico, ao se apresentarem como aristocratas, civilizadas, letradas, democráticas, politicamente corretas, procurando de todos os meios se separar da coleção de fatos mortos que impõem sem trégua à maioria global e à biodiversidade da natureza, condenados ao empirismo da vivissecção sem fim.

A principal forma objetiva de fazê-lo, de ser o sujeito oligárquico do morticínio geral (sem se revelar ou se deixar apanhar em flagrante delito) tem sido desde sempre pela dominação financeira, porque esta garante-lhe a condição de classe parasitária, rentista, separada dos comuns mortais.

O machismo, o racismo e as mais diferentes formas de homofobia se tornaram na história do Ocidente oligárquico e patriarcal variações étnicas e de gênero das coleções de fatos mortos impostas contra a classe trabalhadora e contra a natureza.

O livro Poéticade Aristóteles ratificou, no campo estético, a relação oligárquica ocidental entre antirrealismo e pseudorrealismo ( idealismo e empirismo) da seguinte maneira: (a) gênero trágico-épico, analisado como da e para a nobreza (os oligarcas) interpretado como expressão estética da figuração, como heróis, da particularidade humanizada do varão oligarca belicista; (b) o gênero lírico (machistamente feminizado) reduzido aos segmentos sociais que vivem no ócio, à sombra das guerras de saqueio das sagas míticas do primeiro gênero; (c) a comédia e as variações do cômico referidas no geral à plebe, representada de modo pseudorrealista, empirista, vulnerável, risível, animalizada, matável.

A mimesis da divisão social do trabalho do gênero estético proposta por Aristóteles, além de ratificar a relação entre antirrealismo e pseudorrealismo, hierarquizando-a, mistifica o sujeito estético da ação histórica, replicando a interface machista entre ativo e passivo. Explicando melhor: a suposta nobreza do gênero trágico-épico ou épico-trágico masculinizada tem como inconsciente político a ideologia de que apenas a aristocracia (na verdade a oligarquia) pode enfrentar o destino, isto é, a história, forçando o porvir.

Por sua vez, o gênero lírico, como expressão de uma subjetividade sem chão, passou a ser concebido e produzido como pura fuga da história. No que tange à comédia, tendencialmente se expressa como empirista e passivo gênero que tem servido para desqualificar e desumanizar a mínima possibilidade do sujeito-plebe, como sujeito ativo do destino comum, da história de todos e de ninguém.

Da era da oligarquia europeia

Os oligarcas do Império Romano do Ocidente, ao concentrarem grandes extensões de terra, protagonizaram, não sem muitas guerras, o processo de formação econômico-social medieval, ocupando a posição de senhores feudais especializados em extorquir rendas de camponeses, então tornados servos. Com o navegador Cristóvão Colombo, em 1492, assim como com Vasco da Gama em 1498, a mentalidade ao mesmo tempo escravista e feudal da tradição oligárquica ocidental, iniciou a sua expansão para e contra os chamados, no contemporâneo, povos da maioria global, doravante concebidos epistemologicamente ( e esteticamente) como matáveis, pseudorrealistas, potencialmente servos e novos escravizados.

A expansão comercial colonialista do Ocidente europeu espalhou pelo mundo a sua tradição supremacista, atualizando a relação entre sujeitos imaginários, com suas ações imaginárias; e as coleções dos fatos-povos matáveis, potencialmente ( e genocidados em atos) tornados seus novos servos e escravizados.

O Ocidente oligárquico (uma redundância em si), na sua era greco-romana, foi logocêntrico (logos, a palavra, o pensamento, sopro de Deus), pois fez da prosódia oligárquica uma solução divinamente imaginária em interface mítica com a ancestralidade transcendental, heroica, divina.

Os períodos colonialista, capitalista e imperialista europeus foram fundamentalmente grafocêntricos, dividindo o mundo entre letrados (sábios, intelectuais, cientistas…) e iletrados (improdutivos, ignorantes, ingênuos), alfabetizados e analfabetizados.

Sob o ponto de vista antropológico-cultural, a pele branca cristocêntrica ocidental tornou-se a medida de todas as coisas. O outro ou a alteridade ( o não ocidental) transformou-se em etnias não-brancas, com a pele negra ocupando uma posição antípoda; e tornada o outro do outro ou a alteridade das alteridades, em relação às alteridades não-brancas indígenas da América Latina, da África do Norte, da Ásia, da Oceania.

A expansão colonial-capitalista-imperialista europeia, assim, foi a responsável pela absoluta condição de matável dos povos negros, escravizando-os e tornando-os o critério de “matabilidade” para todas as demais alteridades, não apenas étnicas, mas também de gênero, econômica, cultural, não-letrada, religiosa.

Matável, na tradição oligárquica supremacista ocidental, sempre foi e é a classe trabalhadora, escravizada, servilizada, superexplorada, desumanizada. O colonialismo ocidental a tipificou na pele negra. Essa observação é importante porque é fundamental não se deixar apanhar pela dominante ideologia sionista da era da dominação norte-americana, que separa de modo antirrealista gênero, etnia e classe, inventando hipócritas e não menos antirrealistas categorias como a que diz respeito à suposta interseção entre raça, gênero e classe, que nunca leva efetivamente em conta a classe social, a dos matáveis, as dos não oligárquicos, a da maioria global que também inclui a classe trabalhadora branca e heterossexual, sobretudo a dos países tornados países de povos matáveis, de modernização tardia, como os da América Latina, por exemplo; e também os países centrais do eixo imperialista estadunidense-europeu.

Sob o ponto de vista da epistemologia realista, há identidade e há alteridade em relação dialética na sociedade e na natureza. A primeira é a que se deixa visualizar, identificar, designar. Por exemplo, um botão de rosa. A segunda diz respeito à lei geral do movimento; lei universal e onipresente porque tudo que supostamente é deixa de ser permanentemente, nos níveis subatômicos, microscópicos, assim como no macro, cosmológico.

Tudo é antes de tudo, assim, alteridade de si mesma; um botão de rosa é o seu devir flor, que devém semente, que… O modelo de realização do sistema oligárquico europeu impôs-se como identidade única, colonizando todas as formas de alteridade, inclusive as europeias, forçadas, para dialogar com o livro Pele negra, máscaras brancas de Frantz Fanon, a mimetizar as máscaras da identidade oligárquica eurocêntrica, a fim de evitar serem concebidas como coleções de fatos mortos pseudorrealistas, uma vez que ser alteridade passou a ser visto como inferior, sacrificável, matável.

Uma observação

Considerando que a alteridade-mor do sistema oligárquico ocidental, desde a Antiguidade greco-romana, tem sido e é a classe trabalhadora, extorquida em escala planetária a partir do sistema capitalista europeu, é necessário recordar que este último não foi homogêneo, como de resto nada é. Em seu interior, o operariado foi se tornando uma classe gradativamente revolucionária, com vistas a se constituir como sujeito coletivo a disputar o futuro a partir do presente.

Nesse contexto, tornou-se a referência laica e imanente da emergência do pensamento marxiano, a partir do princípio científico (sim, o marxismo é a ciência das ciências humanas) de que a história, porque sempre em movimento, porque marcada pela luta de classes, não é um conjunto de ações imaginárias antirrealistas de sujeitos imaginários e tampouco uma coleção de fatos mortos pseudorrealistas.

A era da oligarquia europeia não foi, pois, unidimensional. Conheceu as lutas de classes protagonizadas pela alteridade-mor, a laboral, como as de 1848 e as de 1871, as da própria burguesia revolucionária e também as que se expressaram como lutas religiosas, tendo sido fundamentalmente expressões inconscientes de lutas de classes camponesas no final da Idade Média.

Foi essa Europa das alteridades operárias e mesmo burguesas (em sua fase revolucionária, com o Iluminismo) que se tornou a referência das revoluções anticoloniais do século XX, como, ainda no período colonial, a do bolivarianismo latino-americano, com seu Iluminismo da Pátria Grande anticolonial, como as dos soviéticos, a dos chineses, vietnamitas, norte-coreanos, cubanos no século XX. Foi, enfim e em começo, a Europa da Eurásia laica multipolar laboral, da maioria multipolar da atualidade.

No Livro VII de A República, com a alegoria da caverna, Platão antecipou o que viria a ser o sistema de mimesis ( representação) da oligarquia eurocêntrica. Para tratar da relação entre educação e ignorância, tendo Sócrates como personagem-narrador, descreveu uma caverna onde prisioneiros (presos desde a infância, amarrados nas pernas e nos pescoços) estavam condenados a olhar só para frente. Atrás deles, havia uma colina com uma fogueira; e entre eles e a fogueira, havia uma estrada ascendente que dava para o exterior (a luz do sol), com pessoas passando e carregando todos os tipos de objeto, animais.

Tudo que os condenados veem são imagens projetadas no fundo da caverna. Essas imagens seriam o simulacro, a cópia da cópia ou a forma de falso conhecimento dos néscios, ignorantes. Entretanto, se saíssem da caverna e vissem a luz do sol, poderiam ver o mundo e seus seres, tendo o sol como metáfora do Ser, e com este do bem, do belo e do justo. A oligarquia da era eurocêntrica se apresentou para o mundo colonizado como o próprio Ser, o belo, o bem e o justo, representando (mimesis) a maioria global como o sítio histórico-geográfico do simulacro, da cópia da cópia, da ignorância, dos condenados à “caverna” da inferioridade, distantes que estariam do sol oligárquico ocidental. É, assim, uma forma de mimesis que tem como figura de linguagem a metáfora por ter como fundamento a comparação: o sol ou o ser ou a oligarquia europeia e as suas cópias e simulacros.

Da era da oligarquia norte-americana

As inúmeras guerras religiosas ocorridas na Europa no decorrer do século XVI e no do XVII foram o sintoma do fim das relações medievais de produção e a emergência das novas forças produtivas oligárquicas ocidentais que iriam posteriormente protagonizar a formação econômico-social do capitalismo, a partir: (1) da acumulação primitiva do capital sobre os despojos do mundo medieval, com o inferno posto na matabilidade sobretudo dos camponeses.

(2) Da necessidade de unidade nacional razão por que os principados e feudos deveriam ser senão destruídos remodelados em torno de um só soberano, como o rei, a fim de, a partir de seus países, iniciar a expansão colonial como a segunda forma de acumulação primitiva do capital, às custas da maioria global. Nesse contexto, reproduzindo alegoricamente a fuga dos judeus do Egito pelo Mar Vermelho e manipulados pelo Coroa Britânica, a chegada dos primeiros Peregrinos europeus no chamado Novo Mundo, no navio Mayflower, em Massashusetts em 1620 definiu em perspectiva o advento da era norte-americana da oligarquia ocidental, considerando a seguinte particularidade: a fuga da luta de classes, tendo em vista o mito do Destino Manifesto para a conquista da Terra Santa, com o retorno de um excepcionalismo pré-adâmico, paradoxalmente no futuro de uma ilusão/catarse cinematográfica.

Na relação entre um excepcionalismo pré-adâmico projetado para o futuro do Destino Manifesto, tendo o presente alargado (a própria história humana) como instrumento de manipulação a um tempo antirrealista e pseudorrealista, o axioma da era da oligarquia estadunidense tornou-se: dinheiro nu (dólar), isto é, sem limites de quaisquer natureza; e trabalho nu, em dois sentidos interrelacionados: qualquer trabalho é trabalho para o dinheiro nu, trabalho de guerras sem fim, trabalho de saqueios, trabalho de prostituição, de ditadores, torturadores, nazistas, trabalho de manipulação de desejos, esperanças; todas as formas de trabalho existentes e a existir não devem oferecer a mínima resistência ou limite para a voragem sem fim do dólar nu, o que se traduziu na prática com o “trabalho” de genocídio dos “peles vermelhas” e a transformação da guerra de extermínio em gênero cinematográfico, o faroeste.

Um traço que distingue o capitalismo oligárquico ianque do europeu está intimamente relacionado com o fato de ter se constituído ao mesmo tempo como metaocidental ( a oligarquia das oligarquias do Ocidente, desde à Grécia antiga), metacapitalista e metaimperialista. Como ultraimperialista, ocupou e tem ocupado uma posição senhorial (uma oligarquia de sacada) relativamente às contradições de lutas de classes ocorridas no interior de países como Inglaterra, França, Alemanha. Aproveitando-se de seu excepcionalismo político-geográfico (Atlântico e Pacífico, separando-os da Europa) manipulou nos bastidores as disputas político-militares entre as principais potências europeias, ao mesmo tempo em que procurou por todos meios evitar que no interior de seu território os trabalhadores (negros, brancos, antes de tudo) se unissem, antecipando, manipulando e administrando a divisão entre a classe operária negra e branca, por exemplo, ao fomentar e financiar milícias supremacistas como Ku Klux Klan.

Seguindo o princípio imanente e absolutamente pragmático do dólar nu e tendo como trabalho nu a própria história cultural-material da humanidade, esse capital constante, a oligarquia estadunidense desenvolveu-se como revisionista de tudo que existe, já existiu. Diferentemente de Moisés, que proibiu o culto à imagem, fez e tem feito a base de seu complexo estratégico de dominação cultural planetária o culto à imagem, editada e reedidata ao infinito como a quintessência do antirrealismo. a transformar a realidade em pseudorrealismo a ser combatido, atacado, vilipendiado, genocidado.

Se a era da oligarquia estritamente europeia foi grafoesférica, a dividir o mundo em letrados e iletrados, a estadunidense tornou-se em processo iconoesférica, não sendo por acaso, a propósito, que tenha feito da indústria cultural um esteio fundamental de sua hegemonia, seja na era da televisão, seja na era das interconectadas infraestruturas físicas (fibra óptica, satélite, cabo, hardware, software) da telemática. Assumiu, assim, a vanguarda da materialidade dos meios de produção cultural, transformando a cultura em meio de produção de cultos sem fim aos “bezerros de ouro” do dólar nu, às expensas do trabalho nu, porque em seu interior tudo que reluz de modo antirrealista é fetichizado como se ouro fosse, o Ser em sua quintessência, razão suficiente (ou a sua absoluta falta), como veio a ocorrer, para romper com o lastro no ouro físico, de fato.

A era da hegemonia da oligarquia estadunidense se divide em credora e devedora. No primeiro caso, a do bem-estar social, havia capitalismo produtivo e havia classe operária. Havia, também, a partir da década de 60 do passado século, o desejo de alguns países europeus, como a França, de sair de sua esfera de domínio; e, sim, havia a URSS, o socialismo real. Nesse contexto, como resposta no âmbito do “bezerro de ouro”, os EUA editaram, como produto de sua indústria cultural, a seguinte e poderosa arma biopolítica: a invenção da juventude, com o epicentro em “Maio de 68” francês, uma revolução colorida contra a França do General Charles de Gaulle.

A invenção biopolítica da juventude semilaica, anárquica, empoderada e sexualmente desreprimida define o “bezerro de ouro” da fase de bem-estar social da hegemonia oligárquica ianque. Doravante, na sua imanente (corporal) dimensão revisionista, a esquerda das revoluções precedentes, em todos os quadrantes da Terra, foi transformada em velha, anacrônica, superada e autoritária (para não dizer totalitária), com a “nova esquerda” sem “confiar em ninguém com mais de trinta anos”, para lembrar a canção de Marcos Valle e Paulo Sérgio do Valle de 1971, bem à hora do dia, de modo antirrealista, como tem sido típico da pequena-burguesia brasileira.

No contexto brasileiro, o Tropicalismo e a chamada Poesia Marginal se tornaram a cópia da cópia dos “bezerros de ouro” da juventude transviada estadunidense, com seus empoderados, vaidosos, irracionalistas e anarquistas encarnados, no estilo de vida romântico-reacionário da época, como são o exemplo de Caetano Veloso, que compôs a canção que simbolizou essa fase da hegemonia oligárquica de Tio Sam no país, “É proibido proibir”, de 1968; e o poeta Paulo Leminski, com sua poética despojada, marcada por uma voz lírica convergente com a subjetividade típica das circunstâncias subjetivas típicas histórico-sociais típicas da juventude transviada.

O sistema de mimesisda era da oligarquia estadunidense não é platônico, não interatua no mundo pela relação comparativa, metafórica, mas pelo uso do procedimento metonímico. Seria mais certo designá-lo como aristotélico, de Poética, obra em que a mimesis está demarcada pela relação entre o gênero e a posição social das personagens ou voz lírica, no caso do poema, com formas de subjetividade vinculadas à posição de classe. Pensemos a respeito a partir de duas categorias: a de fetichismo da mercadoria e a de reificação.

No primeiro caso, o fundamento é metafórico porque pressupõe o “tal como” à época do fetichismo tribal; no segundo, por sua vez, está em jogo o deslocamento da totalidade para as suas partes autonomizadas. Nesse contexto, a canção citada de Caetano Veloso só superficialmente pode ser analisada como um protesto à ditadura militar ou ao AI-5. É, antes de tudo, uma reificação do ser da era da juventude ianque, o ser do ser ou a reificação da reificação.

A consequência da observação precedente distingue radicalmente o modelo de realização, via mimesis, do período europeu para o norte-americano. Este captura alteridade e as multiplica de modo reificado, marcando-as como a presença a si (ou não) do Ser da era oligárquica de Tio Sam. Aquela, por sua vez, condenando as alteridades à condição de simulacros, as inferioriza, desumaniza.

De forma alguma o modelo europeu é pior ou melhor que o estadunidense. São distintos e assim devem ser analisados dialeticamente, com o do Tio Sam marcando-se como um processo de subsunção/captura mais avançado e dinâmico que o eurocêntrico, além de ser realizado no âmbito da cultura ou dos meios de produção de “bezerros de ouro” da indústria cultural da oligarquia ianque. A própria cultura, assim, é reificada, separada da dimensão econômica e social, razão pela qual, sob o ponto de vista coletivo e tendo como base a dimensão econômica real, a miséria, a violência, o racismo, o genocídio, de maneira pseudorrealista, dominam implacavelmente contra os povos e a vida na Terra, com a tendência de ocultamento/esquecimento da memória das lutas de classes realistas protagonizadas pelas classes subalternas.

A segunda fase da hegemonia estadunidense é a atual, a da era do ultraimperialismo do cartão de crédito, improdutivo, parasitário. Diferentemente da primeira, nesta o processo de reificação/captura de alteridades se intensifica, multiplica-se, adquirindo uma dimensão messiânica, com dois eixos: (i) o do retorno à Mayflower (movimento para o passado pré-adâmico) com as alteridades de gênero e étnicas reificadas e transformadas nos novos Peregrinos da Terra Santa e, como tais, intocáveis, puros (puritanos), essências transcendentais do Ser antirrealista ocidental.

(ii) O da projeção/atualização do imaginário do Antigo Testamento, Deus-trovão, protagonizada pelo neopentecostalismo popularmente pseudorrealista, projetado para o futuro, sem receio de “sujar as mãos de sangue nas guerras santas” do presente, de modo empirista no plano do imediato vivido.

Considerando a relação entre dólar nu/trabalho nu e o efeito de cinema do complexo estratégico da dominação estadunidense, a era do ultraimperialismo devedor montou um estúdio de esquerda e outro de direita, com a finalidade de transformar a luta de classes real entre a classe trabalhadora e os donos dos meios de produção em luta messiânica entre puritanos e neopentecostais, com os primeiros ocupando o lugar da esquerda operária e os segundos substituindo a representação partidária dos burgueses por uma aliança populista e direta entre o líder (os pastores dos bezerros de ouro) e o povo de Deus de Israel, no contexto judeu-cristão; ou o líder e o povo em guerra santa pela conquista do Grande Califado, no que diz respeito à manipulação da escatologia árabe realizada historicamente pelas oligarquias britânicas (início do século XX) e estadunidenses (sobretudo de Ronald Reagan até à presente dada).

Chegamos, assim, à era da esquerda fake (puritana) e da direita fake (libertária) com algumas diferenças entre as duas escatologias da oligarquia da dominação estadunidense: a primeira, como antirrealista, encarna-se na ideia platônica como cópia intocável do sol ianque; a segunda, como pseudorrealista, assume-se como simulacro, vara de porcos; a primeira, sem relação direta com qualquer forma de religião, concebe-se entretanto como sagrada, divina; a segunda, sendo evangélica, neopentecostal, jihadista…, faz-se na prática como profana, mentirosa, artificiosa, dissimulada; a primeira acredita no ser-cópia do Ser, na verdade de sua identidade (cópia) essencialista; a segunda detém distanciamento, sabe manipular, é absolutamente pragmática.

Da dominação pela cultura

No livro A mais-valia ideológica, o filósofo e poeta venezuelano, Ludovico Silva, desenvolveu o conceito de mais-valor ideológico, diverso da categoria clássica de mais-valor. Enquanto este diz respeito à extração econômica, sob a forma de lucro, renda e juro, do excedente do trabalho do operário, o primeiro extrai “a mais-valia ideológica que se traduz como escravidão inconsciente ao sistema. […] Trata-se, em síntese, de um excedente de energia mental do qual o capitalismo se apropria. (SILVA, 2013, p.182)

É esse excedente de energia mental ao mesmo tempo individual e coletivo que é apropriado por Estados Unidos por meio de sua indústria cultural em escala mundial e multitudinária. Plataformas como Netflix, Amazon, HBO Max, entre outras,capturam e transmitem filmes do mundo inteiro, extraindo mais-valor ideológico deles, ao integrá-los à esfera da cultura oligárquica dominante do esquerdismo e direita fakes.

 Situação semelhante ocorre, em tempo real, com os usuários dos stories de diferentes plataformas como WhatsApp, Facebook, Instagram, reforçando a separação ideológica entre segmentos da cultura woke e da neopentecostal, turbinando-os por meio de algoritmo e Inteligência artificial, essa ferramenta de potência revisionista ao infinitésimo que captura o mais-valor ideológico da cultura e ciência realistas, transformando-as em antirrealistas, se puderem estar a serviço da dominação oligárquica estadunidense; ou pseudorrealistas, sobretudo quando têm relação com a soberania nacional e a emergência da civilização multipolar.

E por falar nesta, é comum ouvir e ler por todos os lados que a oligarquia do mais-valor ideológico-cultural está em bancarrota, com a emergência de China, que superou economicamente EUA; e de Rússia, que s sobrepujou militarmente. Com o advento da IV Revolução Industrial, o conceito de forças produtivas se complexifica, sobretudo considerando os âmbitos da biotecnologia e da nanotecnologia, que potencializam a reconfirmação da natureza ( e com esta da vida) e da matéria; e a dimensão cosmológica, com a colonização do espaço sideral ocorrendo a olhos vistos, com a vanguarda de oligarcas como Elon Musk e Jeff Bezos.

A dominação pela cultura, particularidade soft da hegemonia ianque, encontra novos cenários de guerra. Não é correto afirmar que EUA perderam essa batalha. Pelo contrário. A maioria global precisa afirmar-se de modo realista, unindo-se e acumulando forças para enfrentar o que está em jogo, sob o ponto de vista da oligarquia ocidental, de modo semelhante ao que se seguiu com o protagonismo dos novos oligarcas do Império Romano em decadência: a constituição de relações feudais de produção. com os oligarcas, com seus butins de guerra, transformando-se em senhores feudais.

Há, enfim, uma guerra sem e com quarteis levada a cabo há pelo menos desde 11 de setembro de 2001, com o objetivo de transformar o capitalismo em um neofeudalismo. O projeto para um novo século americano não apenas não acabou ou está derrotado, mas também e sobretudo se propõe ser totalmente distinto da sociedade industrial do século XX.

É indispensável, pois, autossuficiência cultural acompanhada com a conquista da propriedade pública dos novos meios de produção da cultura coletiva soberana, a fim de impedir a extorsão do mais-valor ideológico.

*Luis Eustáquio Soares é professor titular do Departamento de Letras da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Autor, entre outros livros, de A sociedade do controle integrado (Edufes).

Referência


ECHEVERRÍA, Bolívar. Crítica de la modernidad capitalista. La Paz, 2011.

ENGELS, Friedric; MARX, Karl. A ideologia alemã. Trad. Rubens Enderle, Nelio Schneider, Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.

Lênin, Vladimir. Materialismo y empiriocriticismo. Notas críticas sobre uma filosofia reaccionaria. Buenos Aires: Ediciones Estudio, 1973.

KARL, Marx. Contribuição à crítica da economia política. Trad. Florestan Fernandes. São Paulo: Expressão Popular, 2008.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. Tradução Álvaro Pina e Ivana Jinkings. São Paulo: Boitempo, 2010.

SILVA, Ludovico. A mais-valia ideológica. Trad. Maria Ceci Araújo Mosocsky. Florianópolis: Editora Insular, 2013.


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