A economia política dos jogos de azar

Imagem: Darius Bright
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Por RODRIGO SIQUEIRA RODRIGUEZ*

A mercantilização dos jogos de azar no Brasil não apenas reflete uma falha regulatória, mas também evidencia uma crise social e econômica que afeta diretamente os mais vulneráveis

Introdução

O mercado de apostas esportivas e jogos de azar ocupa as páginas dos noticiários econômicos, policiais e de saúde pública do Brasil, sendo um dos desafios emergentes de políticas públicas enfrentados no pós-pandemia. De acordo com um levantamento do Instituto Locomotiva (2024), 25 milhões de brasileiros começaram a apostar nos primeiros sete meses de 2024, enquanto 52 milhões de brasileiros apostaram em jogos de azar nos últimos cinco anos.

Esses números revelam o tamanho e a penetração desse fenômeno no país, demonstrando que 48% dos apostadores de 2024 são novos jogadores, o que reforça a necessidade urgente de uma regulamentação mais rigorosa e de políticas públicas de proteção.

O perfil dos apostadores apontado nesse estudo indica que 80% pertencem às classes C, D e E, ou seja, os segmentos mais vulneráveis da população, que possuem menos margem de manobra financeira para suportar perdas. Adicionalmente, 86% dos apostadores estão endividados, e 64% estão negativados na Serasa, o que evidencia o impacto financeiro direto que essa prática tem nas famílias brasileiras.

Esse cenário é agravado pelo fato de que 63% dos apostadores afirmam que tiveram parte da renda comprometida com as apostas, levando muitos a sacrificar compras essenciais. De acordo com a Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (2024), 23% deixaram de comprar roupas, 19% deixaram de fazer compras no supermercado, e 11% deixaram de gastar com saúde e medicação para apostar.

O Banco Central noticiou em setembro de 2024 que as transferências para as casas de aposta ampliaram a inadimplência da população de baixa renda, além de um crescimento das apostas entre os beneficiários do Bolsa Família.

A prática das apostas online também revela um padrão perigoso de repetição, com 60% dos ganhadores reapostando parte ou todo o prêmio após ganhar uma primeira vez. Além disso, 67% dos entrevistados pela Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo conhecem alguém viciado em apostas esportivas, e 60% relatam impactos emocionais negativos, como ansiedade (41%), estresse (17%) e culpa (9%). Esse comportamento compulsivo não apenas deteriora a saúde mental dos apostadores, mas também tem consequências sérias nas relações pessoais: 30% afirmam que as apostas causaram prejuízos em suas relações de cunho familiar.

O Brasil, hoje, é o 3°. maior mercado de apostas do mundo, com um crescimento de 281% entre 2019 e 2024. Esse rápido aumento, aliado à falta de uma regulação efetiva, está criando um ambiente de risco para a sociedade, especialmente para os mais jovens. 28% dos jovens entre 18 e 24 anos afirmam que deixaram de comprar algo que precisavam ou gostariam para apostar, evidenciando que o problema é ainda mais intenso entre a população mais jovem (SBVC, 2024; Locomotiva, 2024).

Este artigo resgata brevemente o histórico do jogo de azar no Brasil para debater o seu problema crescente a partir de 2018 e suas novas características, agora associadas à apropriação financeira da classe trabalhadora de um modo generalizado. Além disso, o artigo apresenta propostas de políticas públicas, sendo a limitação das apostas uma das principais pautas a serem defendidas por movimentos sociais.

O jogo de azar no Brasil

Ciclos rápidos de crescimento dos jogos de azar não são fenômenos novos no Brasil. Durante a primeira metade do século XX, os jogos de azar foram amplamente difundidos a partir de cassinos luxuosos, como o Cassino da Urca no Rio de Janeiro, o Cassino Ahú em Curitiba e o Cassino Quitandinha em Petrópolis. A proibição dos cassinos ocorreu por meio do decreto-lei nº 9.215, de 30 de abril de 1946 do presidente Dutra, em particular porque “a tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro e contrária à prática e à exploração e jogos de azar”, e a partir desse decreto os jogos de azar no Brasil se tornaram uma contravenção.

As loterias também são jogos de azar que crescem na primeira metade do século XX, em particular aquelas extraoficiais, como o jogo do bicho, criminalizado antes dos cassinos em 1941 a partir da lei das contravenções penais (decreto-lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941). A criminalização não impediu a continuidade da atividade, que seguiu crescendo também durante a segunda metade do século XX aos dias atuais.

As loterias oficiais se estabelecem principalmente nos anos 1960, com a loteria da Caixa Econômica Federal adquirindo o direito de monopólio sobre a prática durante o governo Jânio Quadros, em 1961, mas sua regulamentação só ocorre na ditadura, a partir do decreto-lei nº 204, de 27 de fevereiro de 1967 durante o governo Castello Branco. Nesse cenário, curiosamente, as loterias se tornam um serviço público, ao mesmo tempo em que é um crime que deixa de ser punível devido a uma regulamentação específica.

A partir dos anos 1990 e em um contexto de liberalização econômica, o Brasil viveu um novo crescimento dos jogos de azar a partir dos bingos e videobingos. A Lei nº 8.672/1993 sancionada pelo presidente Itamar Franco, conhecida como “Lei Zico”, permitia que os esportes olímpicos angariassem recursos por meio de bingos. A regulamentação dos bingos ocorreu um pouco mais adiante, a partir da lei Nº 9.615/1998, também conhecida como “Lei Pelé”. A grande expectativa dos lobistas do bingo nesse contexto também era a ampliação do bingo eletrônico, que era um sucesso em países onde eram legais.

Essas regulamentações foram revogadas na medida em que se passou a viver uma verdadeira epidemia de irregularidades nas casas de bingo no Brasil, em especial a exploração das máquinas de caça-níqueis, que diferentemente do bingo eletrônico que se propunha a ser uma mera interface para um sorteio de bingo, possuem probabilidades e sistemas eletrônicos manipuláveis.

A exploração dos caça-níqueis representou uma nova era dos jogos de azar para os bicheiros, que passaram a explorar a atividade em seus territórios. Os bingos se tornaram verdadeiros centros de lavagem de dinheiro e, além disso, os problemas de saúde pública associados à atividade começaram a ficar cada vez mais evidentes.

Diante desses problemas e por conta de um escândalo envolvendo um de seus assessores, o presidente Lula sanciona a MP n°168/2004 em que “Fica proibida, em todo território nacional, a exploração de todas as modalidades de bingo, bem como os jogos em máquinas eletrônicas, denominadas “caça-níqueis”, independentemente dos nomes de fantasia”.

Alguns bingos seguiram em funcionamento por meio dos limbos jurídicos a partir dessa medida provisória, embora o período entre 2004 e 2018 seja marcado pelo crescimento das loterias federais e estaduais e, no campo da contravenção, os bingos clandestinos, o jogo do bicho e as máquinas caça-níqueis. As loterias oficiais cresceram com as chamadas loterias instantâneas, popularmente conhecidas como “raspadinhas” e a segmentação de produtos para diferentes públicos, como a Lotofácil em 2003.

Nesse período, também crescem os instrumentos de modalidade de aposta, com a incorporação formal do “bolão”, a repetição de apostas (popularmente “teimosinha”) e as apostas em meio eletrônico. Os “bolões” inclusive passaram a se tornar um fenômeno cultural de fim de ano das famílias e empresas brasileiras, com a criação em 2008 do concurso da “Mega-Sena da Virada”, com um prêmio maior que a Mega-Sena tradicional e que não acumula, ou seja, há garantia que haverá um vencedor do prêmio.

A partir de 2018 o Brasil é capturado pelas apostas online. O termo mais adequado para se referir a esse processo é captura pois, com a sanção da Lei 13.756/2018 pelo presidente Michel Temer, as casas de aposta online passam a dominar todos os espaços publicitários do Brasil, dos jornais impressos aos vídeos de TikTok e Instagram.

O que de fato ocorre implicitamente com a sanção dessa lei é a criação da segurança jurídica necessária para que essas casas operem no Brasil sem assumirem os eventuais ônus decorrentes da natureza da atividade, como a lavagem de dinheiro, o vício em jogos de azar, os casos de suicídios e demais questões de saúde pública decorrentes da atividade de apostas.

Mesmo criando a segurança jurídica, o ordenamento jurídico brasileiro ainda carece de normas eficazes para a regulamentação das apostas esportivas, o que gera incertezas quanto à legalidade da atuação dessas empresas no país. A Lei 13.756/2018 estabeleceu que a modalidade de apostas de quota fixa deveria ser regulamentada pelo Ministério da Fazenda dentro de dois anos, mas essa regulamentação não foi efetivamente implementada pelo Poder Executivo.

Além disso, o artigo 50 da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688/1941) não se aplica às plataformas de apostas sediadas no exterior, pois a legislação brasileira sobre contravenções penais tem validade apenas dentro do território nacional.

Diante desse cenário, houve uma grande abertura para a atuação de empresas estrangeiras no Brasil, incentivada pela perspectiva do governo de maior arrecadação tributária, geração de empregos e investimentos no setor esportivo. No entanto, ainda persistem questionamentos jurídicos sobre a legalidade das apostas esportivas, sua regulamentação e sua caracterização como jogos de azar, o que poderia implicar em infrações penais (Aquino, 2022).

A falta de regulação dessa lei se arrastou até o governo Lula, quando se sanciona a Lei 14.790/2023, conhecida como “lei das bets”, se estabelece um controle maior das casas de apostas regulamentadas, exigindo que se estabeleça personalidade jurídica e sede administrativa no Brasil. Outros aspectos da lei visam conter as consequências mais evidentes à sociedade brasileira do problema dos jogos de azar dos últimos cinco anos, regulamentando em particular a publicidade, medidas de proteção ao consumidor e combate a fraudes e lavagem de dinheiro.

Ainda assim, é importante ressaltar que o debate em torno dessa regulação foi muito pouco levado em termos de saúde pública, mas em termos dos ganhos orçamentários que poderiam vir a ocorrer a partir das alíquotas aplicadas às empresas.

É importante destacar que essa lei e a anterior regulamentam principalmente as apostas de quota-fixa, na qual se sabe previamente o possível prêmio, com um foco específico nas apostas esportivas. Jogos como o popularmente conhecido como “tigrinho” (fortune tiger) e outros que fazem parte da modalidade de caça-níquel online seguem acontecendo por essas mesmas casas de aposta em um “vazio legal”, pois não foram regulamentados, mas também não foram expressamente proibidos. O mesmo ocorre com cassinos online, que atualmente não estão regulamentados.

A economia política dos jogos de azar no Brasil

No dia 26 de novembro de 2024, durante o intervalo do Jornal Nacional, a Esportes da Sorte, uma das casas de apostas online do Brasil, veiculou um comercial emblemático sobre as apostas. Nele, dois amigos conversam entre si sobre ir ao espaço, levando o espectador a entender que um duvidou, logo apostou, que o outro nunca iria ao espaço. Ao final da peça, um dos homens aparece como astronauta “vencendo” a aposta e o lema “apostar é da nossa natureza, apostar demais é que não é” aparece na tela.

As apostas, incluindo as apostas esportivas, são mais antigas que o capitalismo. A relação entre esportes e apostas remonta às civilizações antigas, como Egito, Grécia e Roma, onde competições e jogos de azar eram comuns. Os ingleses já apostavam amplamente em corridas de cavalo antes mesmo da revolução industrial. Se a humanidade está disposta a se entreter ao assumir riscos ao longo da sua história, quais são os problemas dos jogos de azar?

Para isso, não se pode reduzir os jogos de azar por uma perspectiva moralista que condena o jogo por ser contrário a valores específicos de uma sociedade ou nação. Também não se pode tratar do jogo de azar como um problema de natureza econômica, na medida em que os fluxos de distribuição de riqueza promovidos a partir dele não geram o desenvolvimento econômico adequado.

Entender o problema dos jogos de azar exige explicar como suas propriedades se ressignificam nas estruturas da sociedade que podem ser observados a partir de fenômenos relativamente generalizados. Não há como falar dos jogos de azar fora de um contexto de desenvolvimento das relações capitalistas. Nesse sentido, o jogo de azar inserido em relações capitalistas segue uma dinâmica completamente distinta do caso em que ocorre fora dessas relações.

No contexto das relações capitalistas mais desenvolvidas, o jogo de azar não é meramente uma fonte de entretenimento dissociada dos outros aspectos da vida social. O jogo de azar se torna uma das engrenagens da dinâmica social capitalista na medida em que se torna um espaço crescente e regular de apropriação de riqueza da classe trabalhadora, em especial os estratos mais pobres e vulneráveis.

Diferentemente de outras sociedades, o capitalismo vende a possibilidade de mobilidade social como parte do seu sistema de valores. A possibilidade de crescimento por meio do esforço, acumulando a renda do trabalho e convertendo-a em capital por meio de aplicações, ou uma ideia de negócio de baixo custo que pode render fortunas com um novo conceito são partes estruturantes da crença na meritocracia e na livre concorrência do modo de produção.

Personalidades que saem dos espaços mais pobres de todo o mundo para a riqueza financeira rapidamente se tornam exemplos de sucesso, seja como empresários, empreendedores, artistas ou influencers.

Para Karl Marx em O capital, a questão se apresenta a partir da mobilidade entre capitalistas e trabalhadores, como uma forma de “recrutamento” de pessoas com talentos para a gestão do capital: “O fato de que, desse modo, um homem sem fortuna, mas com energia, seriedade, capacidade e conhecimento dos negócios, possa tornar-se um capitalista – e o valor comercial de cada indivíduo é estimado mais ou menos corretamente sob o modo de produção capitalista em geral – é bastante admirado pelos economistas apologéticos, embora esse mesmo fato produza um número indesejado de novos cavaleiros da fortuna, que entram em competição com os diversos capitalistas individuais já existentes, e reforce a dominação do próprio capital, ampliando sua base e permitindo-o recrutar sem interrupção forças novas do substrato da sociedade. […] O domínio de uma classe é tanto mais sólido e perigoso quanto maior é a capacidade de essa classe dominante assimilar os homens mais importantes das classes dominadas”. (Marx, 2017, p.724-725)

A possibilidade de ascensão entre classes como um dos fatores estruturantes do capitalismo levou Milanovic (2019) a cunhar o termo “capitalismo meritocrático liberal” para se referir especificamente a algumas regularidades mais específicas do capitalismo ocidental, em particular dos Estados Unidos, como a inexistência de barreiras legais que impeçam os indivíduos de atingirem uma determinada posição na sociedade.

O destaque trazido no termo dizia respeito principalmente àqueles profissionais como médicos, consultores financeiros, gestores e profissionais de elite, incluindo a área de tecnologia que ascendem socialmente a partir da renda do trabalho e bonificações por gerarem lucros maiores ao capital. No Brasil, só a título de exemplo, um chefe executivo de banco privado costuma receber entre 20 e 60 milhões de reais por ano.

A partir dessa dimensão meritocrática do capitalismo, os mais ricos são aqueles que além de possuir maior renda, são talentosos em suas áreas e possuem alta remuneração em suas profissões. Desse modo, então, o caminho-chave para a mobilidade social seria a educação. A racionalização burguesa desse processo se deu a partir das teorias do capital humano na segunda metade do século XX. A educação se capitalizou, pois agora ela se torna um custo (ou investimento) para se ter um provável fluxo maior de retornos.

Assim, há uma rota relativamente clara pela qual as pessoas podem alcançar a melhoria financeira e o enriquecimento: “em seu formato mais popular (científico ou não), a teoria do “capital humano” limita-se a traduzir supostas regularidades empíricas observadas entre a desigualdade de renda e a desigualdade no estoque individual de “capital humano” (destacando-se os atributos ligados ao processo educacional) em relações de causalidade do seguinte tipo: indivíduos que, por motivos quaisquer, decidem racionalmente investir menos em suas qualificações (educacionais) tornam-se indivíduos relativamente pouco produtivos e, portanto, usualmente incapazes de ocupar posições mais rentáveis no mercado de trabalho”. (Medeiros, 2013, p. 291)

Essa tese em defesa da mobilidade social por meio do capital humano, que é uma plataforma bem articulada no mundo por diversos think tanks e, no Brasil, pode ser ilustrada na atuação no IMDS de personalidades como o banqueiro Arminio Fraga e o apresentador de televisão Luciano Huck. Porém, essa conformação da mobilidade social vem perdendo espaço para perspectivas cada vez menos mediadas de enriquecimento.

Na medida em que a geração de riqueza na sociedade é constrangida pela necessidade de processos localizados no espaço e no tempo, como por exemplo, a produção e comercialização das mercadorias, formas de aparente superação dessas restrições saltam aos olhos. A primeira e mais elementar é a do capital portador de juros que, ao emprestar dinheiro a juros, recebe mais dinheiro ao final do que possuía no começo do processo como se o dinheiro emergisse magicamente.

Nesse caso, ainda que pouco importe a forma e a finalidade como o dinheiro é pontualmente utilizado, o dinheiro crescerá ao fim do ciclo. Ele é “a forma do capital par excellence”, na medida em que o seu “caráter autorreprodutor do capital, o valor que se valoriza a si mesmo, a produção do mais-valor, apresenta-se como qualidade oculta, em estado puro” (Marx, 2017, p. 733).

Para Marx, não há dúvidas que a existência do capital a juros afeta a percepção humana sobre a geração de riqueza, mas além disso, se torna a própria expressão do processo de riqueza, que no interior de seus esquemas mais completos de reprodução D-M…P…-M-D’ se convertem em simples D-D’. Mas o capital ainda passa por restrições nesse contexto, predominantemente as condições temporais e do mercado de crédito, que também se fundam em elementos objetivos como o nível e ritmo da atividade econômica e os ciclos produtivos.

Diante dessa característica, todo dinheiro é, na mão de qualquer um, rendimento em potencial.[i] Qualquer pessoa no mundo hoje pode acessar, mesmo com a renda do trabalho, as mais diversas e quase infinitas opções de investimento oferecidas, seja no mercado de crédito, imobiliário, de fundos internacionais etc.

Nessa dinâmica de acumulação de riqueza, não há necessidade intrínseca de que o ganho nessas operações advenha da mais-valia no interior do processo produtivo, ou seja, em associação direta com o capital industrial. Também não há necessidade intrínseca de ser remunerado pelo processo produtivo, como os ganhos com movimentos especulativos (Lapavitsas, 2014).

Para Lapavitsas (2014), a grande questão aqui é que uma parte do lucro financeiro adquirido nessa dinâmica é redistribuição de renda sem a contrapartida de um processo produtivo. Esses ganhos de capital de natureza especulativa representam, em sua perspectiva, um “jogo de soma zero” que inclui apropriação de mais-valia futura e renda pessoal. Ou seja, há uma parcela cada vez mais expressiva dos ganhos que superam as temporalidades do processo produtivo e são caracterizadas como apropriações de renda da esfera produtiva.

O que isso tem a ver com jogos de azar? Muitas dessas formas de negociação especulativas são praticamente idênticas a jogos de azar. A maioria dos estudos sobre jogos de azar não estendem sua análise às atividades especulativas de mercado pois se presume que essas decisões são tomadas com base em fundamentos econômicos, porém são atividades que frequentemente envolvem apostas em ações voláteis e arriscadas com informações limitadas e horizontes de lucro imediato e possuem um mercado muito semelhante, inclusive o caso dos mercados de criptoativos.

A modalidade mais popularmente conhecida desse tipo de negociação especulativa é o day trading,[ii] mas é possível ampliar o escopo para toda modalidade de ativo financeiro ou derivativo que não está associado a oferta de bens ou serviços.

As apostas esportivas funcionam de modo muito similar a essas modalidades de mercados financeiros especulativos, sendo caracterizado como uma bolsa de apostas. Da mesma forma que, no mercado financeiro de derivativos, por exemplo, do dólar, há aqueles que apostam em sua alta versus aqueles que apostam em sua queda nos próximos segundos, em uma partida de futebol, se opõem aqueles que acreditam se o time X fará gols versus os que acreditam que o time X não marcará gols.

Geralmente, para cada evento, as apostas no sucesso são denominadas de “back” e as de insucesso de “lay”. Ambos os lados das apostas são tomados por apostadores. As pessoas costumam acreditar que, nas apostas esportivas, elas estão disputando sua aposta contra a casa de apostas, porém as casas de apostas nunca fazem parte das apostas, elas geram receitas a partir de uma comissão calculada sobre os ganhos líquidos de um evento.

Por exemplo, em uma partida de futebol entre Flamengo e Fluminense, o jogador A aposta R$ 100 na vitória do Flamengo com prêmio (ou odds) de 1,90 por real apostado. O jogador B, por sua vez, aposta na derrota do Flamengo, igualando o valor da aposta e com o mesmo prêmio de 1,90 por real apostado. Se o Flamengo vence, o jogador A recebe R$ 190 (incluindo o valor apostado), com um lucro líquido de R$ 90.

Caso contrário, B seria o vencedor e receberia respectivamente o mesmo valor. No somatório das apostas, a casa de apostas sempre recebe R$200 dos apostadores e repassa R$190, gerando R$10 de comissão, pois um sempre irá ganhar e o outro sempre irá perder. Em outras palavras, não há cenário em que a casa de apostas perca dinheiro. Nos cenários no qual o book de apostas está desfavorável para um lado ou outro, as casas de apostas limitam os valores apostados ou ajustam os odds, de modo que nunca incorrem em prejuízos com as operações dos apostadores.

A diferença principal entre a bolsa de valores e a bolsa de apostas é que a primeira se restringe a objetos do mundo financeiro convertidos em ativos e derivativos. Nas bolsas de apostas, qualquer evento do mundo pode ser convertido em uma aposta desde que haja alguém disposto a apostar a favor e contra determinado evento. Nesse sentido, todo e qualquer evento se torna uma possibilidade de enriquecimento. Hoje existem mercados de apostas que variam desde quem irá ganhar uma eleição presidencial, divórcio de celebridades, quem será o próximo papa, vencedores de Oscar e outros prêmios artísticos, até mesmo apostas em quais famosos irão falecer em determinado ano.

Soma-se a isso também as bolsas de criptomoedas, que seguem um comportamento similar. Inicialmente fundadas e negociadas pautadas de acordo com seus potenciais de inovação tecnológica e no conceito de mercados monetários liberais, cada vez menos as criptomoedas são orientadas por esses conceitos. Se há liquidez e potencial de valorização, qualquer criptomoeda vale, a ponto de se popularizar a criação de “memecoins”, criptomoedas sem utilidade e sem finalidade.

Nesse caso, o movimento de apropriação financeira começa em um grupo de compradores que promove um “rali” nas criptomoedas, acelerando sua apreciação no mercado e atraindo outros compradores e, na medida em que seus valores são inflados em casas que ultrapassam 1000%, há uma liquidação em massa dessas operações por parte dos principais portadores dessas moedas, deixando os compradores seguidores com prejuízos no mercado caso não se antecipem a esse movimento.

Esse fenômeno pode durar poucas horas, como aconteceu com a memecoin $LIBRA, que começou a se valorizar rapidamente após o endosso do presidente argentino Javier Milei em 14 de fevereiro de 2025. Em aproximadamente cinco horas, o valor de mercado da $LIBRA saltou de US$ 0,12 para US$ 4,56 por unidade, atingindo uma capitalização de mercado de US$ 4,5 bilhões e, após atingir esse valor, teve uma queda de 93% com a liquidação dos portadores da criptomoeda.

Os sinais de esquemas fraudulentos no mercado de criptoativos ou investimentos fraudulentos não deixam de atrair as pessoas. Mesmo conscientes dos riscos, uma vez que não existe nenhum produto ou serviço real em contraprestação, a questão toda é que a valorização do ativo ocorrerá e cessará em algum ponto, sendo o mais importante identificar o momento correto de inflexão.

A CPI das pirâmides financeiras, encerrada em outubro de 2023, identificou ao menos 40 empresas suspeitas de golpes em criptomoedas e estimou R$ 95 bilhões em fraudes resultantes predominantemente da apropriação de renda de pessoas mais pobres. A grande questão em comum com as apostas é que há uma possibilidade de ganho e pouco importam os meios ou o racional do processo de ganho, elementos característicos da apropriação financeira sob a lógica da financeirização.

A conversão de eventos do mundo em possibilidades de enriquecimento de um modo generalizado contém a mesma contradição apreendida por Marx entre valor e valor de uso na mercadoria. Uma vez que a vitória do Fluminense ou a eleição de Donald Trump contenha essa pequena possibilidade de enriquecimento, eventos das mais variadas formas de sociabilidade humana, como torcer e votar, se convertem em eventos financeiros a partir das apostas.

As pessoas subordinam suas emoções a uma dinâmica financeira própria, mensurada em termos de odds, ganhos e perdas potenciais, mercantilizando os eventos da natureza e da sociedade. Na lógica da dominância financeira ou financeirização, isso significa a conversão de eventos da realidade em ativos negociáveis (assetization).

Para os trabalhadores, isso significa que a possibilidade de enriquecimento não precisa ser intrinsecamente mediada por um projeto bem estabelecido educação, formação ou crescimento profissional. A ideologia social-democrata do desenvolvimento da classe trabalhadora perde espaço para modos de enriquecimento imediatos em preceitos ideológicos que cada vez mais estão sendo caracterizados como ultraliberais.

Em especial os profissionais e acadêmicos da educação no Brasil vêm se debruçando sobre esse tema, na medida em que há um desmantelamento dos projetos educacionais em favor de um currículo que “assassina o conhecimento” (Süssekind, 2019) em favor de formas mais pretensiosamente mais imediatistas de enriquecimento. Por que ensinar português e matemática ao jovem se, com um curso de “influencer”, ele tem a possibilidade de enriquecer com venda de publicidade? (Alves, 2021)

Diante desse cenário, não surpreende que o público-alvo das casas de apostas sejam justamente os trabalhadores das classes B e C, com rendimento médio familiar entre R$ 2.000 e R$ 11.000, sendo a possibilidade de enriquecimento a motivação principal para apostar, e não o entretenimento e que aproximadamente dois terços utilizam a renda principal para a realização de apostas, e não a renda extra (Locomotiva, 2024; SBVC, 2024; Ipec, 2024). Desse modo, os jogos de azar acabam por cumprir uma função social na sociedade do capital, evidentemente ilusória e limitada, de que é possível enriquecer com a aposta certa.

A principal tarefa das casas de aposta nesse modelo é atrair novos consumidores aos jogos de azar, por isso suas despesas se reduzem praticamente à publicidade e tecnologia. As casas de aposta gastam algo entre 20% e 50% da sua receita bruta com marketing, sendo uma parcela dessa despesa diretamente com clubes de futebol, uma vez que as apostas esportivas são a porta de entrada para os demais modos de apostar, em especial os caça-níqueis virtuais.

Além disso, as casas de aposta precisam ser facilmente acessadas pelos mais diferentes meios, agradáveis e sempre com novidades para estimular a continuidade dos apostadores, o que inclui a distribuição de bônus para apostadores iniciantes e brindes para apostadores inativos voltarem a acessar suas plataformas. Influenciadores são utilizados para divulgar as plataformas desenvolvendo estratégias para ganhos de apostas e divulgando novas modalidades de jogos. Essas estratégias variam desde tentativas de racionalização do valor esperado das apostas até a definição da hora certa para apostar em um caça-níquel.

Os caça-níqueis digitais, que hoje recebem nomes amigáveis (Figura 1), incluindo o “Coelhinho”, o Mogli”, e o “Panda”, sendo o “Tigrinho” (Fortune Tiger) o mais popular no Brasil. Esses jogos possuem mascotes desenhados para atrair o público infanto-juvenil e há um universo de publicidades irregulares de influenciadores menores de idade nas redes sociais divulgando esse tipo de modalidade de aposta.

Nesse caso, diferente da bolsa de apostas, o estímulo ao comportamento de risco é potencializado por efeitos visuais viciantes em apostas de pequeno valor que podem ser repetidas por horas. Essas modalidades de jogo são mais voltadas para capturar um público que tenha uma maior tendência ao vício, além de menor capacidade de dimensionar ganhos e perdas, inclusive pessoas de baixa renda que tendem a aceitar, sob a influência das redes sociais, que é possível obter ganhos consistentes com o jogo de azar.

Figura 1: Jogos caça-níqueis voltados para o público infanto-juvenil e que operam ilegalmente no Brasil

Apesar do estímulo e tendência ao vício, o jogo de azar não pode ser reduzido a um problema patológico de saúde pública a grupos específicos (ludopatia) mas em seu teor estrutural que abarca a mercantilização da vida na sociedade do capital. Ao mesmo tempo em que diversas pessoas desenvolvem comportamento de vício por conta dos estímulos promovidos por esses jogos, o que possui uma literatura muito ampla na psiquiatria, a articulação social estabelecida pelos jogos de azar, em especial no pós-pandemia, é indissociável de uma análise mais abrangente do papel que essas novas formas sociais estão adquirindo no complexo da reprodução social da classe trabalhadora.

Nesse sentido, estamos falando de uma parcela expressiva dos mais de 50 milhões de brasileiros, equivalente a um terço da classe trabalhadora brasileira, que vêm apostando nos últimos cinco anos. Esse número, que segue em tendência crescente, é reflexo de uma sociedade que fomenta as pessoas a arriscarem o seu já limitado patrimônio por uma chance de enriquecer.

Entre os que ganham e perdem, nesse jogo de soma negativa, pessoas estão deixando de comprar vestuário, supermercado e até mesmo medicamentos para apostar. Pessoas com maior tendência ao comportamento de vício vendem imóveis, liquidam investimentos, algumas até ganham, mas seguem apostando e inevitavelmente perdem. Na próxima seção, vamos apresentar um pouco mais dos detalhes de como a vida dessas pessoas está se modificando e como ele está se generalizando.

Políticas públicas e a regulamentação dos jogos de azar

No segundo semestre de 2024, uma comissão foi criada no Fórum Permanente de Desenvolvimento Estratégico do Estado do Rio de Janeiro da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) para discutir o problema dos novos jogos de azar conhecido como bets no Estado do Rio de Janeiro. Dessa comissão foi elaborada uma minuta com sugestões para diversos projetos de lei que poderiam ser somados aos projetos de lei que já estavam em andamento na casa sobre o tema.

Durante a apreciação da comissão, os relatos sobre como as casas de apostas fazem parte da vida do trabalhador foram surpreendentes. Há, por exemplo, diversos casos relatados de motoristas de aplicativo que jogam roletas de cassino enquanto estão dirigindo e nos intervalos entre as corridas. Outros casos destacavam um envolvimento cada vez mais precoce das pessoas com jogos de azar, incluindo a publicidade infantil desses jogos.

Em uma das reuniões da comissão, o professor e psiquiatra Hermano Tavares, um dos fundadores do Ambulatório do Jogo Patológico (Amjo) vinculado ao Instituto de Psiquiatria da USP foi convidado para dimensionar os novos aspectos do problema dos jogos de azar no Brasil.[iii]

Em sua fala, ficou patente como a volta do jogo de azar ocorreu sem que houvesse qualquer processo de diálogo com a sociedade civil. Hermano Tavares afirmou que “Na penúltima semana do governo Temer, em uma madrugada, a gente acordou e o jogo estava legalizado”, sendo que as contrapartidas para o financiamento da saúde pública decorrente dos vícios em jogo de azar não haviam sido estabelecidas, o que não mudou até hoje.

Quando se trata do jogo de azar como um problema de saúde pública, se pensa principalmente naqueles que, por conta da emoção e alienação[iv] promovida ao apostar e como eles se convertem em pessoas dependentes dessas emoções e alienações. Diferentemente da dependência química, as pessoas com dependências emocionais e de comportamento nos jogos de azar, como elencadas por Hermano Tavares, estão associadas a grupos de risco com taxas de suicídio muito maiores que outros vícios, podendo chegar a algo entre 15% e 20%.

Embora esse grupo de risco seja uma parte reduzida da população (menos de 5%), se trata da população mais vulnerável que precisa de um atendimento especializado. O descaso com a saúde pública dos vulneráveis ao jogo de azar no Brasil é tão grande que, durante a investigação da comissão, simulando ser uma pessoa com problemas de jogo, fomos sugestionados em muitos casos a voltar a apostar por meio de posts patrocinados, influenciadores do Youtube e até sites públicos que possuem seus subdomínios sequestrados para divulgar plataformas clandestinas (Figura 2).

Figura 2: Resultados selecionados de pesquisas do Google sobre problemas com jogos de azar

Para esses casos, as políticas públicas devem ser voltadas para medidas específicas às pessoas com comportamento de risco, que são voltadas para a prevenção, tratamento e apoio aos indivíduos que já demonstram sinais de vício em jogos de azar (ludopatia) ou comportamento excessivo nas apostas. Essas medidas são focadas em serviços de saúde e suporte psicológico, além de incluir programas de exclusão voluntária e educação sobre os riscos das apostas.

Da comissão, foram sugeridas cinco medidas específicas que poderiam ser implementadas no Rio de Janeiro: (i) Programa de autoexclusão de casas de apostas gerido por órgão do Estado do Rio de Janeiro; (ii) Disponibilização de programas de psicoeducação e autoavaliação para apostadores identificados com padrão excessivo de gastos de apostas, conforme já apresentados por alguns Projetos de Lei em andamento na Alerj (PL 4092/2024, PL 2096/2023); (iii) Treinamento da rede de atenção psicossocial e particularmente dos CAPS – Centros de Atenção Psicossocial para acolhimento e tratamento de indivíduos diagnosticados com transtorno do jogo ou ludopatia.

(iv) Disponibilização de atendimento público ao apostador por linha telefônica e digital. O atendimento será feito por especialista da saúde com conhecimento dos transtornos associados às apostas e (v) Estabelecimento de um conselho estadual independente multidisciplinar e de especialistas voltado para a avaliação dos jogos de azar que contenham elementos lesivos e predatórios, como o estímulo à ilusão de controle dos resultados.

A preocupação com as pessoas em situação de vulnerabilidade aos jogos de azar deve ser sempre a prioridade, pois são elas que estão envolvidas nos relatos sobre as consequências sociais mais dramáticas do fenômeno do jogo, que variam desde o afastamento e brigas familiares, ruína financeira com a venda de bens e patrimônio até o suicídio. Hoje mecanismos de monitoramento dessas pessoas vulneráveis é muito disperso e as próprias casas de aposta terceirizam essa responsabilidade para organizações que sequer possuem escritório físico no Brasil.

As medidas específicas são centrais para as políticas públicas e, no caso brasileiro, ficaram de fora de boa parte das discussões no âmbito do Governo Federal sobre a regulamentação dos jogos de azar. Por outro lado, as medidas seletivas são as que estão sendo mais legisladas em todo o Brasil. Elas são direcionadas a grupos específicos com o objetivo de restringir comportamentos de risco em apostas.

Essas ações visam proteger grupos mais vulneráveis, como menores de idade, e reduzir a exposição a práticas prejudiciais associadas ao jogo. No caso do Estado do Rio de Janeiro, foram sugeridas duas medidas amplamente aceitas: (a) Combate à publicidade em jogos de azar, já apresentados em projetos de Lei na Alerj (PL 2096/2023, PL 2576/2023, PL 3789/2024, PL 3854/2024, PL 4092/2024) e (b) Mecanismos de controle para impedir que indivíduos abaixo de 18 anos apostem, criando multa para as casas de apostas e intermediárias que descumprirem essa medida.

São esses os casos que andam em mais evidência, por envolver o público infanto-juvenil. O programa Criança e Consumo, do Instituto Alana, abriu uma denúncia no Ministério Público do Estado de São Paulo contra a Meta (Facebook) por identificar influenciadores menores de idade divulgando sites de apostas para menores:

Ao mesmo tempo que a denúncia detalha as práticas dos influenciadores mirins ao divulgarem as casas de apostas, ela também destaca o papel dos anunciantes nas situações de ilegalidade expostas, uma vez que se aproveitam da vulnerabilidade e da ingenuidade dos jovens para aumentar sua base de clientes. Tanto as crianças e adolescentes que veiculam as casas de apostas online, com a perspectiva de obter recompensas financeiras e contribuir com a própria subsistência ou a de sua família, quanto seus públicos mirins que recebem as publicidades, sofrem exploração comercial por parte das empresas anunciantes, uma vez que têm suas vulnerabilidades exploradas em prol de interesses econômicos e mercantis alheios. (Criança e consumo, 2024)

Desse modo, as medidas seletivas e específicas tratam da atenção aos diferentes grupos vulneráveis, seja na inibição do acesso, no caso das medidas seletivas, e no tratamento daqueles que já sofrem com o vício, no caso das medidas específicas. Por fim, as medidas gerais, são medidas indiscriminadas e aplicadas a todo os envolvidos e são aquelas com maior potencial de conter as tendências mais estruturais do processo, pois envolvem um processo regulatório mais amplo. O principal problema delas é que são medidas que deveriam em tese ser elaboradas no âmbito federal, havendo muita dificuldade para sua implementação como regulação estadual.

Da comissão, foram sugeridas três medidas gerais que poderiam ser implementadas no Rio de Janeiro, embora se saiba de antemão da dificuldade de implementação dessas medidas: (1) Toda e qualquer aposta no Estado do Rio de Janeiro deve ser feita mediante cadastro do CPF do apostador. O Governo Estadual deve estimular a averiguação da incompatibilidade entre a renda declarada e gastos com apostas que possam estar associados a crimes como fraudes, estelionato e lavagem de dinheiro no território fluminense.

(2) Bloqueio de depósitos PIX e demais transações financeiras para casas de apostas e intermediárias das casas de apostas entre as 00h e as 06h. 3) Estabelecimento de limite diário de depósitos em casas de apostas compatível com a renda declarada do apostador (1% da renda mensal declarada por dia ou 5% da renda declarada em um intervalo de trinta dias).

Uma vez que as casas de apostas já se estabeleceram a um ponto que hoje se encontra difícil sequer conjecturar sua revogação por parte do legislativo e executivo federal, a forma de contenção de danos mais eficiente seria, com destaque para medida geral número 3, limitar a capacidade de apropriação financeira das casas de aposta, uma vez que muitas sequer disponibilizam extratos de ganhos e perdas dos jogadores.

Em outras palavras, é preciso definir quais seriam os padrões socialmente aceitáveis para essa modalidade de apropriação financeira. Isso só pode ser efetivamente estabelecido com o cruzamento de informações da receita federal e das casas de aposta sob uma denominação que enfatize “a limitação de perdas dos jogadores de bets”, estabelecendo constrangimentos para que se aposte mais a partir de um determinado gasto.

Essa seria uma medida efetiva de contenção de danos de formas de apropriação financeira sobre a classe trabalhadora. Em muitos países da Europa, como a Bélgica e a Alemanha, há um teto semanal ou mensal de apostas permitido por jogador que varia entre 800 e 3000 euros mensalmente (200/750 euros semanalmente) estabelecido por comissões nacionais de jogos de azar. Em alguns casos, apostadores com renda e interesse em apostar mais podem solicitar via formulário alteração dessa margem.

O modelo norueguês é um pouco distinto, estabelecendo um monopólio da atividade e, como contrapartida, um sistema mais rigoroso de investigação do comportamento de vício, além do limite de 2000 euros mensais nas apostas. Muitos países delegam ao próprio apostador a definição desse limite, muitas das vezes um limite estabelecido em cada casa de aposta.

Para fins de comparação com a regulação europeia, o Brasil possui 71 casas de apostas licenciadas pelo Ministério da Fazenda com os dados atualizados no dia 20/02/2025, e 6 casas de apostas não licenciadas que operam por meio de decisão judicial favorável. No Brasil não há qualquer limite legalmente prescrito ao apostador, seja voluntário ou obrigatório.

Tabela 1. Regulação dos limites de apostas na Europa (2022) e Brasil (2025)

PaísNúmero de casas de apostas licenciadasPrescrição de limites nas apostas (voluntário ou obrigatório).Limites legalmente prescritos (voluntários ou obrigatórios). Os limites se aplicam por titular de licença, salvo indicação em contrário
Alemanha44SimLimite de depósito total obrigatório de até € 1.000 por mês + vários limites monetários voluntários por titular de licença
Áustria1SimLimite de depósito total obrigatório de no máximo € 800 por semana, vários limites obrigatórios
Bélgica76NãoLimite de depósito total obrigatório de no máximo € 500 por semana (não operacional)
Brasil71NãoNão
Bulgária12NãoNão
Croácia16NãoVários limites voluntários
Dinamarca41SimLimite de depósito obrigatório
Eslováquia17NãoVários limites voluntários
Eslovênia3NãoVários limites voluntários
Espanha81NãoLimite de depósito obrigatório de no máximo € 600 por dia, € 1.500 por semana, € 3.000 por mês + vários limites voluntários
Estônia24NãoLimite de perda voluntária
França15SimVários limites voluntários
Grã-BretanhaMais de 200SimVários limites monetários voluntários e verificações da realidade
IrlandaNãoNão
Itália96SimVários limites obrigatórios
Lituânia8NãoVários limites voluntários
Malta323SimVários limites voluntários e verificações da realidade
Noruega2SimLimite de perda total obrigatório ≈ € 2.000 por mês por titular de licença + vários limites obrigatórios (inferiores) para diferentes jogos
Países Baixos19SimVários limites obrigatórios
Polônia24NãoVários limites obrigatórios
Portugal15NãoVários limites voluntários
República Tcheca19NãoVários limites voluntários
Suécia67SimLimite de depósito/perda obrigatório (acima de ≈ € 930 por mês aciona a obrigação de investigação) + limite de tempo voluntário
Fonte: adaptado de Meerkerk (2022). Dados da Europa referentes ao ano de 2022. Dados do Brasil referentes a 20/02/2025.

O principal propósito da limitação de perdas é impedir que as pessoas vejam as apostas como um meio de resolver problemas financeiros e ter mais consciência das perdas no jogo de azar. Se o apostador estiver ganhando, ele poderá continuar apostando, pois os limites são exercidos sobre perdas após a dedução dos ganhos.

A prescrição de limites de apostas é uma tarefa que só teria efetividade se exercida no âmbito federal sob influência da sociedade civil e dos movimentos sociais. As legislações estaduais possuem uma capacidade muito limitada de enfrentar a maioria das questões que envolvem meios digitais, em particular pela carência nos órgãos de fiscalização.

Considerações finais

A falta da regulação da apropriação financeira das casas de aposta vem tornando o Brasil um dos maiores mercados mundiais dos jogos de azar. Sua magnitude ainda é pouco mensurada por avaliadores de políticas públicas, mas já se aventa seu impacto na efetividade das políticas sociais, como o Bolsa Família e a recém-nascida política do Pé de Meia.

Diante da facilidade em acessar plataformas de apostas que estão em nossos bolsos, a falta de uma regulamentação mais abrangente e a publicidade agressiva expõe de modo crescente uma parcela da população a algo muito maior que um risco financeiro e emocional. Trata-se da mercantilização de todos os aspectos da vida que inviabilizam projetos de sociedade, de educação, pautas e valores humanistas.

Diante desse contexto, é imperativo que se adotem políticas públicas eficazes e abrangentes para mitigar os impactos negativos dos jogos de azar. Mesmo regulamentado, pouco foi feito em termos de ações que visem a proteção dos grupos mais vulneráveis, a limitação da capacidade de apropriação financeira das casas de apostas e o investimento em medidas de prevenção e tratamento do vício, que deveriam ser o pressuposto para o exercício do jogo de azar no Brasil.

Os jogos de azar que estamos vendo hoje no Brasil são uma máquina geradora de prejuízos sociais ainda pouco debatidas no terreno das políticas públicas.

*Rodrigo Siqueira Rodriguez é doutor em economia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

Referências


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AQUINO, Samuel Rodrigues Maia. Jogos de azar: Uma análise de legalidade das apostas esportivas à luz do ordenamento jurídico Brasileiro, 2022.

BAKER, Scott R. et al. Gambling away stability: Sports betting’s impact on vulnerable households. National Bureau of Economic Research, 2024.

CHAGUE, Fernando; DE-LOSSO, Rodrigo; GIOVANNETTI, Bruno. Day trading for a living?. SSRN 3423101, 2020.

CRIANÇA E CONSUMO, 2024. Disponível em https://criancaeconsumo.org.br/noticias/alana-denuncia-meta-jogos-de-aposta/

IPEC – Inteligência em Pesquisa e Consultoria: Pesquisa de opinião pública sobre jogos de aposta. 2024. Disponível em: https://www.ipec-inteligencia.com.br/Repository/Files/2280/Job_24_0324_Jogos_de_aposta_Relatorio_de_tabelas.pdf.

LOCOMOTIVA, Instituto. Estudo Questin Pro: A epidemia das Bets. 2024. Disponível em: https://static.poder360.com.br/2024/08/Locomotiva-pesquisa-apostas-e-saude-mental-ago2024.pdf.

MARX, Karl. O capital-Livro 3: Crítica da economia política. Livro 3: O processo de circulação do capital. Boitempo Editorial, 2017.

MEERKERK, Gert-Jan. Gambling legislation on duty of care and limit setting in 22 European countries. Rotterdam: Dutch Gambling Authority, 2022.

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PENA, Esther Pereira de Araújo. Jogo do bicho como patrimônio cultural brasileiro: a legalização do jogo de acordo com a Constituição Federal, 2024.

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SÜSSEKIND, Maria Luiza. A BNCC e o “novo” Ensino Médio: reformas arrogantes, indolentes e malévolas. Retratos da escola, v. 13, n. 25, p. 91-107, 2019.

Notas


[i] “Com base na produção capitalista, o dinheiro – aqui considerado expressão autônoma de uma soma de valor, sendo indiferente se esta existe, de fato, em dinheiro ou em mercadorias – pode ser convertido em capital e, mediante essa conversão, deixar de ser um valor dado para se transformar num valor que valoriza a si mesmo, incrementa a si mesmo. Ele produz lucro, isto é, permite ao capitalista extrair dos trabalhadores determinada quantidade de trabalho não pago, de mais-produto e mais valor, e de apropriar-se desse trabalho. Com isso, ele obtém, além do valor de uso que já possui como dinheiro, um valor de uso adicional, a saber, aquele de funcionar como capital. Seu valor de uso consiste aqui precisamente no lucro que ele produz ao se converter em capital. Nessa qualidade de capital possível, de meio para a produção do lucro, ele se torna mercadoria, mas uma mercadoria sui generis. Em outras palavras, o capital como tal torna-se mercadoria” (Marx, 2017, p. 421-422)

[ii] No Brasil, segundo a B3, disponível em: https://www.b3.com.br/pt_br/market-data-e-indices/servicos-de-dados/market-data/consultas/mercado-a-vista/perfil-pessoas-fisicas/perfil-pessoa-fisica/, o número médio de pessoas físicas que efetuaram operações de day trade entre 2013 e 2015 era abaixo de 50 mil. A partir de 2018, esse número cresce exponencialmente, de 100 mil atingindo o auge de 568 mil pessoas físicas em 2021. Hoje, este número está abaixo de 400 mil. O crescimento de pessoas físicas no mercado de derivativos brasileiro criou um mercado próprio de venda de cursos, o surgimento de “gurus” das finanças, o crescimento das corretoras de investimento, entre outros. Chague et. al. (2020) identificaram em uma amostra que 97% dos que efetuaram operações de day trade por mais de 300 dias estavam tendo prejuízos na bolsa de valores.

[iii] A entrevista com o Prof. Hermano Tavares está disponível digitalmente em https://youtu.be/uQo5Ww6FpWY?si=bs94qnFgB3Ab7rIu

[iv] A alienação na aposta está ligada ao fato que, enquanto está apostando, você se desliga dos demais problemas e questões da sua vida, incluindo problemas familiares, amorosos, desemprego, situação financeira etc.


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