Por MARCELO FETZ, LUIZ ENRIQUE VIEIRA DE SOUZA, BRUNA PASTRO ZAGATTO e NATALY SOUSA PINHO*
O atual governo, em sua guerra contra ciência em prol da desinformação, parece sofrer de uma espécie de “complexo de Simão Bacamarte”
A eleição de Jair Bolsonaro elevou o nível de tensão entre o poder executivo e a comunidade científica brasileira. Com uma trajetória pública avessa à tomada de decisão com base em evidências e com uma campanha eleitoral fortemente alavancada pela produção de fake news, promessas danosas à educação pública, ao meio ambiente e aos direitos humanos, a ascensão da extrema direita indica um futuro pouco promissor para as relações entre ciência e sociedade, especialmente no campo das mudanças climáticas e na saúde. Os efeitos são múltiplos e intencionalmente coordenados por uma equipe de governo que estabeleceu uma cruzada cultural contra a comunidade científica por meio da criação de falsas controvérsias e de um ambiente político pauta na desinformação.
Uma amostra do que a comunidade científica vem atualmente enfrentandojá havia sido dada em 2015, quando Jair Bolsonaro, deputado federal à época, coordenou a criação do projeto de lei PL 3454/2015 que dispunha sobre a fabricação, produção e distribuição da Fosfoetanolamina Sintética à pacientes com câncer. Sem dialogar com a comunidade médica e científica brasileiras, esses parlamentares pretendiam legislar sobre o uso de uma substância sem nenhuma evidência de eficácia no tratamento da neoplasia maligna. Esse continua sendo o tom das políticas adotadas por Bolsonaro e apoiadores, especialmente nas áreas de saúde e meio ambiente: para eles, as agências de regulação sanitárias possuem autonomia, mas não são soberanas na tomada de decisão em temas que envolvem tratamentos médicos e/ou decisões técnicas. Aos poucos se estruturava no Brasil uma infraestrutura anti-científica que institucionalizava um ecossistema de desinformações, num processo de alinhamento entre a extrema direta brasileira e a extrema direita global. O modelo típico de guerra cultural baseada em teorias da conspiração passaram a se fundir com as particularidades brasileiras, dada que essa infraestrutura de pensamento e de ação política preservou princípios locais no que parece ser um movimento de expansão do modo miliciano de atuação.
O cenário desastroso de fato se concretizou e de maneira muito mais potente do que se imaginava. As ações tomadas pela equipe de governo durante a pandemia de Sars-Cov, quando Bolsonaro defendeu o uso, a fabricação e indicação do coquetel hidroxicloroquina e azitromicina no tratamento preventivo e clínico de quadros leves e graves de Covid-19, contrariando informações científicas e protocolos médicos globais, podem ser citadas como outro exemplo. Bolsonaro exonerou Henrique Mandetta, ministro da saúde, pelo seu não alinhamento público na defesa do uso da hidroxicloroquina como forma segura e eficiente para o tratamento da Covid-19. Um segundo ministro, Nelson Teich, abandonaria o governo pelo mesmo motivo, ou seja, a não defesa da adoção de medidas sanitárias de distanciamento social. Após as duas substituições, o ministério da saúde passaria a ser conduzido por um militar interino, Eduardo Pazuello, o qual manteve alinhamento com as ideias de Bolsonaro, contrariando evidências científicas básicas numa escalada cada vez maior de falta de transparência na condução da pandemia em território brasileiro. Como é de se esperar, as respostas obscurantistas à pandemia não foram as únicas reações anti-científicas tomadas pelo governo de Bolsonaro, pois a guerra contra as evidências e informações se transformou em fundamento básico da governança desenvolvida por sua equipe. As reações do governo ao aumento do desmatamento da Amazônia, por sua vez, demonstram a existência desse sistema articulado e meticulosamente construído para a deslegitimação da instituição científica e de sua forma de conhecimento.
A Amazônia exerce papel fundamental na regulação do clima global. De acordo com Carlos Nobre, são pelo menos cinco funções essenciais exercidas pela floresta: reciclagem de umidade, nucleação de nuvens, bomba biótica, rios aéreos e freio de arrumação nos ventos. Juntos, esses cinco fatores criam as condições necessárias para o equilíbrio climático de ampla escala, não apenas do Brasil, mas do planeta como um todo. A proteção da floresta é de fundamental importância para a manutenção do funcionamento básico do clima planetário e requer, conforme destaca Nobre, um conjunto de ações que possibilitem a existência da floresta: popularizar a ciência da floresta, zerar o desmatamento, acabar com o fogo, a fumaça e a fuligem, recuperar o passivo do desmatamento e engajamento e comprometimento na governança climática da região por parte de entes públicos e privados. Esse sistema de proteção foi aos poucos sendo construído no Brasil com a ajuda de instituições públicas e privadas nacionais e internacionais, um esforço científico-político que tem incrementado o estoque de conhecimento acerca da região, com especial destaque para o controle e monitoramento do desmatamento, das queimadas e consequente controle do avanço da fronteira agropecuária e agrícola sobre a floresta. Nesse aspecto, destaca-se a atuação do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Sob o governo da extrema direita brasileira, a infraestrutura tecnocientífica de monitoramento da Amazônia realizado pelo INPE tem sido alvo de ataques coordenados constantes.
O INPE realiza o monitoramento do desmatamento da floresta amazônica desde a década de 1970. O atual Programa de Monitoramento da Amazônia e Demais Biomas (PAMZ+) conta com três sistemas complementares de mapeamento de dados por meio de sensoriamento remoto, o Programa de Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (PRODES), o Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (DETER) e o sistema de mapeamento do uso e ocupação da terra, TerraClass. Os ataques a esse sistema foram iniciados no final do primeiro semestre de 2019, quando o INPE divulgou relatório que apontava aumento de 88% no desmatamento da floresta amazônica em comparação com o mesmo período no ano anterior. A publicação chamou a atenção da comunidade científica internacional e de setores comprometidos com o equilíbrio ambiental global por evidenciar o descaso da gestão bolsonarista com as metas de redução de desmatamento da região. A reação de Bolsonaro e de sua equipe de governo, em especial o ministro do meio ambiente Ricardo Salles, foi i) desqualificar a os dados produzidos pelo Prodes e Deter, ii) censurar a publicação das informações estatísticas, transformando-as em dados sigilosos (controlados pelo ministério) e iii) criar um ecossistema de desinformação com base em falsas controvérsias numéricas sobre os dados de desmatamento Ricardo Salles afirmou que os dados do Inpe eram imprecisos, mas não ofereceu evidências dessa imprecisão. Sugeriu, assim, que o monitoramento do INPE fosse substituído por sistemas privados de vigilância por meio da compra de pacotes de serviços sigilosos por parte do governo federal. O ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, afirmou que as informações do INPE eram manipuladas, sem oferecer provas disso. Bolsonaro disse que se tratava de “um número absurdo como aquele de que eu desmatei 88% da Amazônia. Eu sou o ‘capitão motosserra’. Se divulga isso, é péssimo para a gente”. Ricardo Galvão, diretor do INPE à época, foi exonerado de sua função por defender a qualidade das informações produzidas pelo INPE e a transparência e publicidade dos dados sobre o desmatamento ocorrido na floresta amazônica. A demissão de Ricardo Galvão foi anunciada no início de agosto de 2019 por Marcos Pontes, ex astronauta e Ministro da Ciência e Tecnologia de Bolsonaro, ratificando a existência de um sistema intencional de produção de informações e contra-informações científicas. Essa guerra contra a ciência tem sido aperfeiçoado nos últimos meses com a participação cada vez mais efetiva do poder executivo e das forças armadas brasileiras – as queimadas na região amazônica e no pantanal se transformaram na principal arena de desinformação do governo Bolsonaro.
Os retrocessos no controle e monitoramento do desmatamento na Amazônia, revelados na crise entre o governo Bolsonaro e o INPE, repercutiram imediatamente no mídia global. O The Economist destacou o aumento no desmatamento, relacionando-o à anistia concedida por Ricardo Salles e Jair Bolsonaro e ao aumento da impunidade nos crimes ambientais; o The New York Times publicou artigo que alertava sobre a redução dos esforços para combater a extração ilegal de madeira, a pecuária e a mineração na região Amazônia sob o governo de extrema direita de Jair Bolsonaro; a revista Science enfatizou as falas de Bolsonaro, qualificando como mentirosos os dados publicados pelo INPE; a revista Nature apontou as tensões entre ciência e política no Brasil promovidas pela gestão do “Trump Tropical”, uma alusão às semelhanças entre Donald Trump e Jair Bolsonaro; o britânico The Guardian enfatizou o aumento das queimadas e o ritmo alarmante do desmatamento enquanto o governo de Jair Bolsonaro busca reinventar dados em vez de lidar com os culpados. Ainda no mês de agosto de 2019, Noruega e Alemanha suspenderam repasses ao Fundo Amazônia, fundo criado em 2008 para o financiamento de projetos voltados para a redução do desmatamento na floresta amazônica. A reação de Jair Bolsonaro às críticas realizadas por Angela Merkel e Manuel Makron ao aumento do desmatamento e às queimadas na Amazônia provocaram tensão diplomáticas entre os países. Na noite do dia 14/09/2019 Bolsonaro deu a seguinte declaração: “Eu queria até mandar um recado para a senhora querida Angela Merkel, que suspendeu US$ 80 milhões para a Amazônia. Pegue essa grana e refloreste a Alemanha, ok? Lá está precisando muito mais do que aqui”.
O INPE, desde a saída de Ricardo Galvão, passou a ser dirigido por Darcton Policarpo Damião, militar da aeronáutica sem experiência em gestão científica e com produção acadêmica insignificante. A troca de direção modificou a forma de governança do instituto, com maior concentração de poder decisório e redução de diálogo entre os diferentes níveis administrativos. De acordo com cartas abertas divulgadas por cientistas do INPE, a atual gestão criou estruturas paralelas fortemente hierarquizadas semelhantes às adotadas por órgãos militares brasileiros. A política orçamentaria federal para a área de ciência e tecnologia também merece destaque pelos cortes regulares, especialmente nas áreas sensíveis à Amazônia e mudanças climáticas no Brasil. De acordo com a Controladoria-Geral da União (CGU), apenas 13% do orçamento disponível para a área de mudanças climáticas foi utilizado no ano de 2019. Observa-se situação semelhante no empenho da verba disponível no Fundo Nacional sobre Mudanças do Clima (FMNC), tendo sido aplicadas apenas 9% do montante de capital disponível, e no empenho de verbas para o programa de Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade, no qual foi utilizado 14% do capital disponível. O INPE, que possui suas atividades financiadas pela Agência Espacial Brasileira (AEB) e pelo Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), sofrerá novamente com cortes, de acordo com sua previsão orçamentária para 2021. Enfrentando cortes desde 2016, a situação do INPE em 2021 será crítica, pois a AEB reduziu em 49% o repasse de verbas enquanto o MCTI reduziu o repasse em 14%, totalizando um orçamento de 79.7 milhões de reais. Esse valor zera a dotação orçamentária para a realização de pesquisas e investimentos em material permanente, a exemplo de equipamentos laboratoriais, insumos e publicações científicas, mantendo apenas o pagamento de salário para os cientistas que compõem as equipes de pesquisa do INPE. A possibilidade de que o sistema científico brasileiro entre em colapso nos próximos anos é, portanto, real.
Com o desmonte da infraestrutura de monitoramento, dos órgãos de fiscalização e da desqualificação do conhecimento produzido pela comunidade científica brasileira por parte do governo de Jair Bolsonaro, o resultado não poderia ser diferente: desde 2019, os dados de desmatamento e queimadas na região amazônica têm apresentado crescimento. De acordo com Raoni Rajao em artigo recentemente publicado na Science, aproximadamente 2% das propriedades rurais localizadas no cerrado e na Amazônia brasileiras são responsáveis por 62% de todo o desmatamento ilegal da região, o que refuta a tese governamental de que o desmatamento e as queimadas são ações realizadas por pequenos produtores e em pequenas propriedades. A precarização do sistema de monitoramento e de punição aos desmatadores, rotina desde a ascensão da extrema direita brasileira, tem exposto cada vez mais a intencionalidade e robustez do ecossistema de desinformação produzido pela equipe de governo de Jair Bolsonaro. Um exemplo disso foi a estratégia de guerra criada na Operação Verde Brasil 2, sob o comando do vice-presidente e general da reserva Hamilton Mourão. O objetivo da operação era dar uma resposta as críticas nacionais e internacionais quanto à impunidade e ao possível alinhamento entre governo federal, desmatadores e garimpeiros. Os hotspots de desmatamento selecionados pelo comando do exército por meio do sistema Deter-INPE poupou, de acordo com fiscais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (IBAMA), regiões nas quais há atuação de madeireiras e garimpos que utilizam maquinário pesado para as suas operações. O Ministério da Defesa ainda pretende adquirir um microssatélite para “aprimorar” o monitoramento realizado pelo INPE, ampliando o que defendem ser a busca pela soberania brasileira na Amazônia. O implemento técnico por detrás da aquisição criará um gap na cobertura territorial da Amazônia, pois o novo satélite leva 66 dias para cobrir todo o território amazônico enquanto os satélites utilizados pelo INPE no sistema DETER fazem o mesmo monitoramento remoto em apenas 2 dias.
Muitos outros exemplos poderiam ser citados, como no caso dos conflitos contra as universidades federais encabeçados pelo ex ministro da educação Abraham Weintraub, os ataques feitos pelo ex ministro da cidadania Osmar Terra à validade científica do 3° Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira, realizado pela Fiocruz, entre outros. Ainda que os casos sejam diferentes em sua concepção, o argumento utilizado pelo governo é padronizado e direcionado para a criação de falsos embates ideológicos: as controversas se dariam pela presença indevida de “ideologias de esquerda” sustentadas pelos cientistas, comprometendo, assim, a objetividade científica dos estudos. Ao que parece, o atual governo, em sua guerra contra ciência em prol da desinformação, parece sofrer de uma espécie de “complexo de Simão Bacamarte”, personagem de Machado de Assis na obra “O Alienista”. Com o passar dos dias, o atual governo irá se radicalizar a ponto de se considerar o único ente na sociedade desprovido de “viés ideológico”, o que provocará sérios danos à democracia brasileira.
*Marcelo Fetz é professor de sociologia na Universidade Federal do Espírito Santo(UFES).
*Luiz Enrique Vieira de Souza é professor de sociologia na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
*Bruna Pastro Zagatto é pesquisadora de pós-doutorado em ecologia política na Université Libre de Bruxelles.
*Nataly Sousa Pinho é graduanda em Ciências Sociais na Universidade Federal da Bahia (UFBA).