Por OSNAN SILVA DE SOUZA*
Estamos na presença de uma democracia na qual a maneira como os negros são tratados serve de inspiração e modelo ao hitlerismo
“Na minha opinião, a república americana não celebrará um outro centenário. Pelo menos, não com a Constituição e as leis atuais. O sufrágio universal é o fundamento de todo e qualquer mal neste país (…). O sufrágio universal é um constante elemento de fraqueza e nos expõe a muitos perigos que, de outro modo, poderiam ser evitados” (Woodrow Wilson, 1876).
1.
Durante o UOL News, de 22 de janeiro de 2025, foi exibida uma matéria na qual, com tom de curiosidade, se divulgou que o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, enfeita o seu gabinete com cópias da Constituição norte-americana. As imagens mostram réplicas emolduradas de documentos históricos dos Estados Unidos, como a Declaração de Independência.
O assunto surge no ensejo das discussões sobre a posse de Donald Trump e as medidas já adotadas pelo novo representante do império. A apresentadora do programa, Raquel Landim, narrou o caso com muito entusiasmo: “é interessante. A democracia americana é simbólica para o mundo”.
Em seguida, o colunista Tales Faria – notadamente progressista e crítico da extrema direita –, em consonância com Raquel Landim, observa que Donald Trump estaria na contramão dos princípios democráticos, liberais e constitucionais de sua nação: “o Donald Trump não é só um autocrata pessoalmente, ele é um candidato a ditador na democracia mais antiga do mundo (…). Ele está pondo em risco a base do pensamento democrático no mundo”. Para Tales Faria, o ponto mais eloquente da constituição norte-americana é o que diz: “todos os homens são criados iguais e são dotados de certos direitos inalienáveis”.[i] O novo presidente estaria tentando romper com tal princípio.
Há um certo louvor à constituição e à democracia norte-americanas, como se vê, na forma como o ministro do STF organiza o seu gabinete, no entusiasmo da apresentadora e nas análises de Tales Faria. O sistema político dos EUA é apresentado como a base da democracia não somente no Ocidente, mas no mundo! É um exemplo simbólico. Não apenas isso: o líder da extrema direita e novo chefe do Executivo é concebido como uma mutação abrupta, um tipo de anomalia ou um ponto fora da curva na história dos presidentes daquele país. No entanto, sabemos que as questões históricas são mais complexas.
2.
Nesse sentido, os estudos realizados por Domenico Losurdo podem nos ser úteis para compreender um pouco melhor tal problemática. Como se sabe, o filósofo italiano dedicou-se a pesquisar, de maneira meticulosa e aprofundada, a história do liberalismo e do sufrágio universal no Ocidente (sobretudo França, Inglaterra e EUA), rompendo com mitos, perspectivas lineares e de causa e efeito. Ao debruçar-se numa densa documentação e dialogar com autores de diversas matizes, Domenico Losurdo nos permite apreender um pouco melhor sobre “a maior (e agora a basilar e mais antiga, nas palavras de Tales Faria) democracia do mundo”.
No prefácio à edição brasileira de Democracia ou Bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal, Domenico Losurdo denuncia um mito construído e disseminado pela linguagem dominante: no Ocidente, sob a liderança dos EUA, o liberalismo teria, de forma gradual, progressiva e linear, se transformado em democracia – “uma democracia cada vez mais ampla e rica”.[ii] Também faria parte desse mito a ideia de harmonia entre o livre mercado capitalista e a democracia.
Trata-se, com efeito, de um mito dominante nos nossos dias, mas que pode ser visualizado já em Alexis de Tocqueville, para quem “os Estados Unidos constituem o único verdadeiro modelo de democracia”, ao mesmo passo que “descreve com lucidez e sem indulgência o tratamento dado aos peles vermelhas e aos negros” naquele país.[iii]
Domenico Losurdo demonstra que a narrativa que apresenta os EUA como o baluarte da democracia ocidental – uma democracia que surge por impulso da tradição liberal – ignora a opressão que recai sobre as populações indígenas e negras, mesmo após o fim da escravidão. Desconsidera ainda as lutas por emancipação, direitos e acesso à cidadania por parte dos excluídos. Na verdade, estamos diante de um argumento que não se sustenta perante a investigação histórica. Já foi dito, inclusive, que durante o século XX os EUA não se configuraram como uma democracia, no sentido propriamente de um sufrágio efetivo.
Escreve o filósofo italiano: “Deixemos de lado os peles vermelhas, ou melhor, os sobreviventes: na teoria, passaram a gozar de direitos políticos em 1887; mais, na realidade, através de vicissitudes no sentido e noutro, só viram reconhecida pelo Congresso a condição de cidadãos americanos em 1924 e, de todo modo, estados como Novo México e o Arizona lhes recusaram o direito de voto até 1948. Em relação a outra minoria racial, ainda no segundo pós-guerra vemos as classes dominantes no Sul condenar as tentativas de abolir a poli tax e de impor o registro eleitoral dos negros, “sem considera a sua inteligência e capacidade”, como um atentado criminoso à melhor “herança anglo-saxã”, como a tentativa de reduzir os americanos autênticos “ao nível de uma raça bastarda e inferior”.[iv]
Mas não apenas negros e indígenas veem em seu caminho obstáculos para a fruição da cidadania plena ou mesmo do sufrágio efetivo nos Estados Unidos do século XX: juntam-se a esses indivíduos os brancos pobres, que sofrem restrições censitárias pelo menos até a década de 1970: “São de 1966 as sentenças da Corte Suprema que declaram a inconstitucionalidade das normas que impõe, como pré-requisito para ser reconhecido titular do título de voto, um certo nível de alfabetização e o pagamento do imposto eleitoral; enquanto é de 1972 a sentença que declara a inconstitucionalidade da norma, naquele momento ainda em vigor no Texas, que subordina o requisito da elegibilidade ao pagamento de uma soma proporcional a importância do cargo para o qual se pretende candidatar”.[v]
A questão racial ganha grande destaque nas obras de Domenico Losurdo, sobretudo para se refletir sobre capitalismo, liberalismo e democracia. O eminente filosófico demonstra que é impossível uma leitura crítica e meticulosa sobre os grandes fenômenos que ocorrem ao longo da história no Ocidente sem trazer ao centro das discussões o papel relegado e exercidos pelos negros.
Nesse sentido, em Contra-história do liberalismo somos levados a perceber que, na tradição liberal, os mais entusiastas defensores da liberdade eram aqueles que não apenas se opunham ferrenhamente ao fim da escravidão, como a concebia como um “bem positivo”. Vejamos: “na Revolução Americana, a Virgínia desempenha um papel de destaque: aqui há 40% dos escravos do país, mas daqui surge o maior número de protagonistas da revolta que explode em nome da liberdade”.[vi]
Não apenas isso. É significativo pensar que: “Em 32 anos dos primeiros 36 e vida dos Estados Unidos, quem ocupa o cargo de presidente são os proprietários de escravos provenientes da Virgínia. É essa colônia ou esse estado, fundado sobre a escravidão, que fornece ao país os seus estadistas mais ilustres; só para lembrar: George Washington, James Madison e Thomas Jefferson – autores, respectivamente, da Declaração de Independência e da Constituição Federal de 1787 –, os três proprietários de escravos”.[vii]
3.
Não se trata de retornar ao passado com um dedo acusador, muito tentar ignorar a relevância dos eventos históricos que ocorrem nos EUA no final do século XVIII e primeira metade do XIX. As análises de Domenico Losurdo, no entanto, chamam atenção para o movimento acrítico, alicerçado no mito propagado pela linguagem dominante, que enaltece o sistema americano como o baluarte da democracia ocidental.
Ao apresentar os EUA como “a maior, mais simbólica e mais antiga do mundo”, quem fica ausente é a História: não é negligenciável o peso que a escravidão negra (e o extermínio dos “peles-vermelhas”) exerce sobre o país no seu conjunto: “nas primeiras eleições presidenciais, entre 1788 e 1848, todas, salvo quatro, colocaram um proprietário de escravos do Sul na Casa Branca”.[viii]
Isso não é tudo: em Os Estados Unidos e as raízes político-culturais do nazismo, Domenico Losurdo examinou como o Estado Racial e a white supremacy norte-americanos – com o seu programa de reafirmação das hierarquias raciais, estreitamente ligado a um projeto eugenista – exerce forte influência sobre a Alemanha, os ideólogos do Terceiro Reich e o próprio Hitler: “É elemento central da propaganda nazista a construção de um Estado racial. Pois bem, quais eram, naquele momento, os possíveis modelos de Estado Racial? A legislação segregacionista na África do Sul fora largamente inspirada no regime da white supremacy, implementado no Sul dos EUA, após o fim da Reconstrução. Somente um modelo está em ação e a sua influência sobre o nazismo não pode ser ignorada”.[ix]
Estamos na presença de uma democracia na qual a maneira como os negros são tratados serve de inspiração e modelo ao hitlerismo. Com efeito, trata-se de certa ingenuidade ou ignorância (quando não uma desfaçatez!) louvar como “maior democracia do mundo”, um símbolo do Ocidente ou a mais antiga democracia do mundo um país, como nos mostra Domenico Losurdo, que durante muito tempo foi um Estado racial com um regime de white supremacy.
Com o retorno de Donald Trump ao poder, presenciamos choros emocionados e louvores da extrema-direita brasileira, sobretudo dos seus grandes líderes, que veem no novo representante do império um farol para o Brasil e o mundo. Nesse sentido, os Estados Unidos são concebidos não apenas como a nação guia do Ocidente liberal e democrático, mas, agora, também como o guia para aqueles com notáveis inclinações ao fascismo (como acabamos de ver, algo que tem precedente em sua história).
Diante de tal desafio, seria irresponsável e vacilante apenas vislumbrar o atual governo norte-americano como “a mesma coisa” do(s) anterior(es). Mais perigoso ainda, porém, é o movimento de conceber o trumpismo como um fenômeno anômalo ao americanismo; uma corrupção à saudável e progressiva história da democracia estadunidense; ou visualizar Donald Trump como corrupção à linearidade dos presidentes norte-americanos.
*Osnan Silva de Souza é doutorando em história na Unicamp.
Notas
[i] UOL News. Erika Hilton x Nikolas, ex-PRF indiciados por tentar impedir votos, governo Trump e mais. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wNLcm4AH8iQ. (Entre os minutos 1:24:00 – 1:34:20).
[ii] Domenico Losurdo. Democracia ou Bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio. Editora UFRJ/ Editora UNESP, 2004, p. 9.
[iii] Op. Cit., p. 29.
[iv] Op. cit., p. 52.
[v] Ibidem.
[vi] Domenico Losurdo. Contra-história do liberalismo. São Paulo: Ideias e Letras, 2020, p. 27.
[vii] Op. cit.
[viii] Op. cit., p. 28.
[ix] Domenico Losurdo. Os Estados Unidos e as raízes político-culturais do nazismo In: Jones Manoel (org). Colonialismo e Luta Anticolonial. Desafios da revolução no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2021, p. 113.
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