Por HEATHER COX RICHARDSON*
O legado do governo Trump
No dia 20 de Janeiro de 2017, Trump fez seu juramento de posse e proferiu o discurso da “Carnificina Americana”, descrevendo a América como uma paisagem infernal. Então, tudo começou. Trump prometeu rasgar as normas e os limites para “secar o pântano”. Ele preencheu posições de seu governo com agentes políticos e nomeou seu genro Jared Kushner para administrar tantos projetos que teria sido cômico, se não fosse sério. As políticas promovidas por sua administração frequentemente eram apressadas e mal concebidas; quando as cortes as derrubavam, Trump reclamava do “Estado Profundo”.
Dias depois de assumir o poder, ele determinou a proibição de viagens direcionada aos muçulmanos, a primeira em uma série de ações no decorrer de sua presidência destinadas a subordinar as pessoas de cor aos americanos brancos. O racismo em sua retórica e em suas legislações atraiu supremacistas brancos e os transformou em seguidores. Nos dias 11 e 12 de Agosto de 2017, eles se revoltaram em Charlottesville, na Virgínia. Seu protesto contra a remoção de uma estátua do General Confederado Robert E. Lee transformou-se em uma tentativa de criar uma vanguarda política.
A manifestação “Unite the Right” terminou em violência, ferindo mais de 30 pessoas e matando Heather Heyer, de 32 anos, cuja última publicação no Facebook, antes de unir-se ao contraprotesto em Charlottesville, dizia: “Se você não está revoltado, não está prestando atenção”. Três dias depois dos tumultos, questionado sobre os protestos violentos em Charlottesville, Trump disse que “você… tinha pessoas que eram pessoas muito boas, em ambos os lados”. Isso foi interpretado, corretamente, como uma defesa, por parte de Trump, dos supremacistas brancos e das suas gangues, uma defesa dramaticamente ilustrada no verão de 2020, quando ele e seu procurador-geral William Barr usaram tropas federais contra os protestantes pacíficos do Black Lives Matter. Na primavera de 2017, uma nova crise surgia no horizonte. O FBI investigava a cooperação da campanha presidencial com espiões Russos. O ex-conselheiro de segurança nacional de Trump, o general-tenente aposentado Michael Flynn, tinha mentido ao FBI sobre conversas com o então embaixador russo Sergey Kislyak, e Trump pressionou o então diretor do FBI James Comey para que interrompesse a investigação da agência sobre Flynn. Quando Comey recusou, Trump o demitiu, levando o vice-procurador Rod Rosenstein a nomear o procurador especial Robert Mueller (o então procurador-geral Jeff Sessions tinha recusado sua nomeação porque ele também mentira sobre conversas com os russos) para investigar os laços entre os oficiais da campanha de Trump e agentes russos.
Ambos o relatório de Mueller e o relatório do Comitê de Inteligência do Senado (com liderança Republicana) determinaram que agentes russos tinham interferido nas eleições de 2016 para ajudar Trump. Eles indicaram que funcionários da campanha de Trump sabiam o que os russos estavam fazendo e estavam dispostos a aceitar sua ajuda. O Comitê de Inteligência do Senado também notou que o presidente da campanha de Trump, Paul Manafort, ofereceu informações internas sensíveis sobre a campanha para um agente russo na Ucrânia. Trump continuou a chamar tais alegações de a “Farsa Russa”, mas observadores notaram que, de todas as suas rixas com outros líderes, ele parecia estranhamente solícito ao Presidente da Rússia Vladimir Putin. Trump chegou ao poder com uma economia em expansão. Nos primeiros três anos de sua presidência, a economia continuou a crescer, em parte devido às reduções de impostos que cortaram o imposto empresarial em 40%. Trump prometeu que estes cortes seriam o “combustível de foguete para nossa economia”, mas o crescimento econômico continuou em torno de 2,9%, o mesmo patamar desde 2015, e mais de 60% dos benefícios dos cortes foram para aqueles 20% no topo da escada econômica. Mesmo antes da pandemia, projetava-se que as políticas econômicas de Trump adicionariam US$10 trilhões à divida nacional até 2025, um aumento de mais de 50%.
E, então, chegou a pandemia. Em um primeiro momento, Trump minimizou a crise. Depois, insistiu que os Democratas, que exigiam que ele a enfrentasse, estavam exagerando: ele a chamou de uma “farsa” Democrata. A pandemia afundou a economia, minando seu maior argumento para a reeleição e, no verão de 2020, o governo decidiu que sua melhor opção seria reabrir as escolas e a economia, e tentar atingir a imunidade de rebanho através das infecções. O resultado foi um desastre. Hoje, no último dia do governo de Trump, o número oficial de americanos que perdemos para a Covid-19 ultrapassou 400.000. Trata-se, aproximadamente, do mesmo número de pessoas que perdemos na Segunda Guerra Mundial. A pandemia levou 22 milhões de pessoas ao desemprego e negócios à falência. Conforme a economia hesitante minava os planos de Trump para a reeleição, ele tentou destruir a confiança nos votos pelo correio, tentando levar as pessoas a votar pessoalmente. Então, quando isso não funcionou, ele forçou a ideia de que os Democratas iriam roubar as eleições. Ainda que seus adversários Democratas Joe Biden e Kamala Harris tivessem vencido as eleições por mais de 7 milhões de votos populares e garantido o Colégio Eleitoral com 306 votos contra 232, Trump e seus apoiadores continuaram insistindo que a eleição fora roubada.
No dia 6 de Janeiro de 2021, Trump e outros membros importantes de seu governo reuniram seus apoiadores para atacar a contagem das cédulas eleitorais certificadas para Biden e Harris. Encorajada pelo presidente, a multidão marchou em direção ao Capitólio com o plano de interromper a votação. Eles sobrepujaram a polícia, matando um oficial; invadiram o edifício; e ficaram a minutos de conseguir tomar nossos líderes eleitos como reféns, ou, talvez, de executá-los nas forcas que construíram.
Na sequência do ataque ao Capitólio, a Câmara dos Representantes impediu Trump pela segunda vez – a primeira foi em 2019, depois que ele reteve recursos destinados à Ucrânia, aprovados pelo Congresso, em uma tentativa de intimidar o recém-eleito presidente ucraniano a anunciar uma investigação contra o filho de Joe Biden, Hunter, na esperança de enfraquecer Biden como um potencial rival nas eleições de 2020.
Logo, Trump deixa a Casa Branca amanhã tendo que enfrentar um segundo julgamento de impeachment no Senado.
Trump dividiu o partido Republicano. Seus verdadeiros fiéis pretendem transformar a América em uma nação de direita, branca, cristã, encarnada no Relatório 1776 apresentado ontem pelo governo. Nos últimos dias de governo, o Secretário de Estado de Trump, Mike Pompeo, está claramente tentando se posicionar para uma candidatura presidencial em 2024, tweetando, a partir da conta governamental oficial do Departamento de Estado, uma longa lista do que considera suas conquistas. Hoje, o Senador Josh Hawley, sob suspeita de incitar os revoltosos de 6 de Janeiro com seu apoio à exclusão dos votos de Biden do Colégio Eleitoral, atrasou a nomeação do Secretário de Segurança Interna por ser contrário aos planos de Biden para criar uma via para a cidadania de imigrantes sem documentos. Republicanos do establishment tentam retomar o controle do partido. Depois da tentativa de golpe, em janeiro, algumas empresas anunciaram que não iriam mais fazer doações aos Republicanos que votaram por desafiar os votos eleitorais certificados, enquanto outros declararam uma moratória em todas as despesas políticas. A virada empresarial contra a ala Trumpista do partido Republicano fortaleceu a espinha dorsal dos Republicanos do establishment. Hoje, o líder da maioria no Senado, Mitch McConnell (R-KY) levantou-se no Senado e colocou Trump no centro do ataque ao Capitólio do dia 6 de Janeiro. “A multidão foi alimentada por mentiras” disse McConnell. “Eles foram provocados pelo Presidente e por outras pessoas poderosas.”
McConnell continuou. Ele afirmou que nenhum partido tem um mandato amplo após as eleições de 2020, o que, disse ele, significa que os Democratas não têm o direito de avançar com uma “mudança ideológica radical”. Ele se refere, é claro, aos planos do presidente eleito Biden e da vice-presidente eleita Kamala Harris, planos que ele tem todas as intenções de interromper.
Hoje, o presidente eleito Joe Biden chegou à Base Aérea Andrews. Ele viajou em um avião privado, já que Trump se recusou a estender-lhe a tradicional cortesia de um avião militar oferecido por um presidente de saída para um entrante. Trump não estará presente no juramento de Biden; ele partirá para a Flórida pela manhã. Em seu lugar, três dos outros ex-presidentes vivos estarão presentes à posse: o republicano George W. Bush e os democratas Bill Clinton e Barack Obama. É um grupo de ex-presidentes unidos para enfatizar a transição pacífica de poder. Trump não estará lá.
A maré já está se voltando contra ele. O vice presidente Mike Pence anunciou que não poderá estar presente na cerimônia de despedida de Trump, já que, em vez disso, participará na posse de Biden. O líder da minoria na Câmara, Kevin McCarthy (R-CA) e McConnell – que se tornará líder da minoria amanhã, assim que dois senadores Democratas da Georgia forem jurados – também não irão se despedir de Trump: eles estarão na igreja, com Biden, antes de sua inauguração.
Amanhã, ao meio dia, o presidente-eleito Joe Biden fará o juramento de posse. Ele pretende trazer o governo de volta ao princípio que o partido Democrata defende desde o final do século XIX: de que o governo federal tem um papel a exercer na resposta às necessidades dos Americanos ordinários. Ele também assumiu a ideia Democrata tradicional de que o governo deve realmente se assemelhar às pessoas que representa. Em uma reprimenda implícita ao nacionalismo branco de Trump, ele montou o conjunto mais diverso de agentes na história Americana. Eles também são extraordinariamente bem qualificados e têm muitos anos de experiência no governo.
Biden e Harris já delinearam um governo muito diferente do de Trump. Sua primeira tarefa é combater o coronavírus. Biden quer 100 milhões de vacinas em seus primeiros 100 dias de presidência, e mobiliza a Agência Federal de Gestão de Emergência (FEMA) e a Guarda Nacional para fazer com que isso aconteça. Para reconstruir a economia, eles desenvolveram um pacote de ajuda destinado a proteger as crianças, em primeiro lugar, e depois as mulheres e famílias. Ele reivindica uma expansão do auxílio alimentar e a proteção dos alugueis e das hipotecas, assim como uma expansão dos benefícios de desemprego e o pagamento de uma parcela única de auxílio.
O governo de Trump talvez termine onde começou. Neste fim de semana, o líder da oposição russa, Alexei Navalny, retornou à Rússia depois de seu envenenamento quase fatal por agentes de Putin, em Agosto. Após sua chegada na Rússia, as autoridades imediatamente o detiveram. Trump recusou-se a unir-se às outras nações em condenar o envenenamento mas, ontem, o senador Mitt Romney (R-UT) exigiu que os EUA responsabilizassem Putin pela “corrupção e ilegalidade do regime de Putin”. Unindo-se a Romney na exigência de novas sanções contra a Rússia estava uma sequência de senadores de ambos os partidos. A lei é chamada “Responsabilizando a Rússia pela Lei de Atividades Malignas”.
*Heather Cox Richardson é professora de história no Boston College (EUA). Autora, entre outros livros, de To Make Men Free: A History of the Republican Party(Basic Books).
Tradução: Daniel Pavan.
Publicado originalmente em Letters from an American.
Notas
https://www.cnn.com/videos/politics/2021/01/19/biden-lands-washington-joint-base-andrews-vpx.cnn
https://www.politifact.com/article/2019/apr/26/context-trumps-very-fine-people-both-sides-remarks/
https://www.cnn.com/2021/01/19/politics/mitch-mcconnell-rioters-provoked/index.html
https://www.cnn.com/2021/01/19/politics/mitch-mcconnell-rioters-provoked/index.html
https://www.romney.senate.gov/sites/default/files/2020-09/09.24.2020%20Navalny%20bill.pdf