A passagem do Papa Franciso

Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil
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Por SALEM NASSER*

Eu gostava do Papa, sobretudo, por ele ter escolhido para si o nome “Francisco.” Mal acredito que nenhum outro pontífice o tivesse feito antes dele!

 1.

“Cristo ressuscitou, de verdade ressuscitou!” Esta frase me vem sempre à mente e é com ela que saúdo meus amigos cristãos quando da Páscoa! Ela me vem da convivência com o mundo do cristianismo oriental, ortodoxo, especificamente libanês. Na sociedade libanesa, todos, cristão e muçulmanos, cumprimentam todos em cada festa religiosa, cristã ou muçulmana. Eu gosto desse sinal de sincretismo religioso.

Eu já disse aqui e repito que gosto muito do Cristo e de Maria, mãe do Cristo. Lembrei outro dia da canção em que a “criança na caverna e sua mãe Maria são dois rostos a chorar” diante da profanação da Cidade Santa e do sofrimento dos palestinos. Chegada a Páscoa, queria retraçar no mapa o caminho que teria feito o Cristo, a Via Dolorosa, e marcar o lugar de seu suplício, o lugar em que Maria chorou por ele, para dizer ao mundo que tudo isso que é lembrado nesses dias aconteceu na Palestina, e que a ressureição também se deu na Palestina! Não é possível ser fiel à mensagem do Cristo e ao simbolismo da Páscoa se lembramos essas coisas sem lembrarmos da Palestina e de seu sofrimento!

Este ano, coincidam no tempo as Páscoas judaica, católica e protestante, e ortodoxa. A Páscoa judaica lembra e comemora a libertação dos judeus oprimidos e escravizados e o fim do seu exílio. Digo eu que tampouco esta Páscoa pode ser celebrada sem que se lembre da Palestina em que todo um povo é submetido à opressão, à violência, e empurrado para o exílio, para o desterro. Esquecer da Palestina seria trair o espírito e o simbolismo dessa Páscoa também.

Assim como gosto do Cristo e de Maria, e como gosto dos símbolos do sagrado, que sempre interpreto no sentido do que penso ser melhor para a Humanidade, gosto também, como um personagem dos contos árabes (a que voltarei um dia), de mergulhar no sentido das palavras. Percebo ao longo do tempo, e depois de um ou outro mergulho, que “Páscoa” significa passagem, passagem por cima, saída de um estado e entrada em outro. Os judeus teriam feito a passagem da escravidão para a liberdade; o Cristo teria saído da morte para retornar à vida.

2.

Este ano, mal tinha acabado a Páscoa, recebemos a notícia da morte do Papa Francisco. Desde minha infância, conheço a magnitude do evento que é a morte de um Papa e sei como o mundo inteiro estará ocupado com o tema. Em parte, penso, a atenção, a emoção, o excitamento, decorrem do fato de que o Papa aparece aos olhos do mundo não apenas como chefe religioso de uma das vertentes do cristianismo, mas se mostra e é representado como monarca.

Isto não decorre somente do fato de que ele é um chefe de Estado, mas é indicado por todo o fausto que cobre a vida, e a morte, do Bispo de Roma e pelos detalhes rituais e litúrgicos que chegam ao conhecimento das pessoas. Além disso, há a emoção da expectativa sobre a eleição do novo pontífice, esta última igualmente recheada de detalhes, rituais, símbolos. Tudo isso é enormemente atrativo!

Todos, então, falam do assunto e o acompanham. E claro, como todos temos, nos tempos em que vivemos, acesso a algum público, muita gente resolve embarcar no evento da passagem de uma pessoa importante para promover a si mesmo ou suas agendas. Sobram então relatos sobre “quando encontrei fulano – ainda que com o Papa Francisco isso seja mais raro – eu fiz isto ou aquilo”; conta-se mais sobre si mesmo do que se fala sobre o falecido ou seu legado. E sobram referências que dizem, por exemplo, das causas que fulano – neste caso o Papa Francisco – apoiava; quer-se aproveitar o momento para dar visibilidade à causa. Ambos movimentos são legítimos ainda que eu perdoe melhor o segundo do que o primeiro.

Um exemplo atual do segundo caso? As muitas postagens sobre como o Papa Francisco apoiava a causa dos palestinos e condenava as ações militares de Israel contra os mesmos. Bem, eu direi algo diferente…

Mas antes de assumir os riscos daí decorrentes, quero dizer que gostava bastante do Papa Francisco. Não quero fazer um uso estratégico da sua pessoa ou da sua morte, não quero elevar a mim mesmo falando dele – nem teria como fazê-lo – e não quero fazer dele um trampolim para minhas causas. Quero, primeiro, fazer minha homenagem e dizer do que me agradava no Papa Francisco. E quero também falar sobre alguns temas que me ocupam e sobre como os vejo materializados na experiência da Santa Sé e do Papa.

3.

Eu gostava do Papa, sobretudo, por ele ter escolhido para si o nome “Francisco.” Mal acredito que nenhum outro pontífice o tivesse feito antes dele!

Minha relação com São Francisco não começou muito bem: adolescente, interessado em leitura para poder escapar ao mundo, ensaiei ler O pobre de Deus de Nikos Kazantzakis – salvo engano, era o primeiro livro da assinatura do Clube do Livro, feita pela minha mãe – e não gostei. Não lembro agora mesmo o porquê, mas lembro de não ter gostado e não ter seguido adiante.

Muitos anos depois, tendo visitado inúmeras igrejas e apreciado suas riquezas, e tendo invariavelmente estranhado a existência das lojas de lembranças – o que sempre me fez pensar na cena bíblica em que o Cristo expulsa os cambistas do templo –, São Francisco me apareceu sob nova luz quando visitei a Igreja da Santa Cruz, em Florença. Gostei do modo como aquela igreja refletia a escolha franciscana pelo despojamento e senti que São Francisco e os franciscanos estavam mais próximos do exemplo do Cristo.

A escolha do nome pelo Papa me pareceu um gesto cheio de simbolismo que lembrava a Igreja e o clero sobre a necessária aderência à mensagem do Cristo. E a escolha veio acompanhada de outros pequenos gestos, relatados aqui e ali, mas que não posso verificar, relacionados às vestimentas, à alimentação, ao luxo… Isso, no entanto, tem suas limitações quando se é Papa.

A minha descoberta, tardia, do encontro de São Francisco com os muçulmanos me fez apreciar mais o Santo e a escolha feita pelo Papa.

Outra razão que me fazia gostar do Papa Francisco era o fato de ser ele jesuíta. Não sou especialista e, portanto, só consigo explicar pobremente a ligação entre esse fato e a minha apreciação. Gosto do rigor e da predileção dos jesuítas pelo estudo e pelo aprendizado. Talvez goste dos jesuítas por ver em cada um deles um potencial Padre Antonio Vieira?… Nenhum outro Papa era jesuíta, e nenhum outro havia escolhido o nome “Francisco”… Fico me perguntando quanto sentido faz essa combinação…

Hoje, enquanto o mundo se divide entre os que lamentam que o Papa Francisco não tenha podido reformar a Igreja Católica – como pensam, talvez, que teria gostado de fazer – e os que desejam se afastar o mais rápido possível do seu exemplo por considerarem que com ele a Igreja deixou de ser propriamente “Católica,” noto que o Papa falecido esteve prisioneiro de contradições insolúveis.

A primeira contradição evidente é justamente esta: muitos esperam das religiões que elas se adaptem aos novos tempos, novos valores, novos costumes; mas até onde pode ir a religião neste exercício de atualização sem se desnaturar? Até onde poderia ter ido o Papa Francisco, atendendo aos demandantes de reformas, sem negar os pilares do cristianismo católico?

Mas a contradição que mais me interessa é esta segunda: o Papa Francisco queria lembrar o exemplo do Cristo e queria, por seus gestos, mostrar que acreditava nos votos de humildade, modéstia, pobreza; mas estava preso aos palácios, ao mármore, ao veludo, ao fausto mais absoluto… É verdade que, combinado ao fato de que a história da Europa fez do Papa um monarca entre monarcas, esse fausto é o que torna o pontífice católico o mais notável entre todos os líderes religiosos do mundo. Nisto, sempre pensei que a Igreja Católica tinha feito uma escolha estratégica inteligente, ao perceber o efeito que têm sobre os homens e mulheres o brilho do ouro e a sofisticação dos ritos.

Lembro agora da parábola do Grande Inquisidor, contida no romance Os Irmãos Karamazov – e que será objeto do meu Evangelho para meus Filhos – em que o velho inquisidor admoesta o Cristo, retornado a uma Sevilha em que um dia antes haviam sido queimados os hereges, por não ter percebido que os homens não podiam carregar, nem queriam, o peso da liberdade, o que havia forçado a Igreja a desfazer o estrago…

E assim como não podia despojar-se de tudo que pesou sobre seus ombros a partir do momento em que aceitou ser Papa, e porque não falava apenas pela consciência de um homem de fé, porque precisava fazer os cálculos de um chefe de Estado entre outros, o Papa Francisco não podia falar livremente sobre os temas trágicos da nossa atualidade.

Eu sei que o Papa Francisco esteve doente nos últimos tempos e que seu sofrimento era grande, e sei que muitos lembraram de como ele denunciou os massacres em Gaza, mas sinto que também ele, o Papa, se viu forçado a lidar com esse tema dentro dos limites que os jogos de forças políticas impunham; ele também sentiu a pressão e cedeu, penso eu…

Finalizo dizendo que não é minha intenção criticar o Papa Francisco, que admirei muito, mas denunciar a máquina que nos faz prisioneiros a todos…

Ofereço meus pêsames a todos os católicos e a todos aqueles que tinha por Francisco carinho e admiração.

*Salem Nasser é professor da Faculdade de Direito da FGV-SP. Autor de, entre outros livros, de Direito global: normas e suas relações (Alamedina) [https://amzn.to/3s3s64E]


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