Por CARLOS TAUTZ*
Liberais-fascistas têm acordos contra a estatal e as reservas brasileiras. Mas, o que pensa Lula, o favorito para outubro?
As principais candidaturas do liberal-fascismo (JairBolsonaro e JoãoDoria) já tornaram pública uma grande e comum certeza para as eleições presidenciais de outubro: a única estratégia para superar fortes resistências nacionalistas e conseguir privatizar a Petrobras – a jóia da coroa que estrutura energética e simbolicamente a nação brasileira – seria fatiar a companhia para, depois, entregá-la em frangalhos e barata ao capital internacional.
Os planejadores das campanhas de ambos os candidatos têm muitíssimo claro que petróleo é poder na mais alta escala. Por isso, antecipam-se em fechar acordos nessa área. E, mesmo que as pesquisas indiquem desde já a inviabilidade de Dória, um fascista pela defesa do mercado extremo, é emblemático que o candidato do epicentro paulista do capitalismo nacional se apresse – a exemplo do que também fez Bolsonaro – a revelar o que planeja para o petróleo, a mais importante área da economia real.
Na estratégia liberal-fascista, a venda da estatal se torna necessária para alcançar o verdadeiro objetivo final: o controle do pré-sal por parte de empresas sediadas em países enriquecidos – entre elas, Shell, ExxonMobil e Chevron (EUA), BP (Inglaterra) e talvez algumas estatais chinesas e francesas.
Interessadas nessa megamamata também estão as atravessadoras internacionais de petróleo (no Brasil, apelidadas de “importadores”). Elas são controladas por fundos financeiros ligados aos piores interesses – de contrabandistas e traficantes internacionais de armamentos a ditaduras carniceiras, como a da dinastia Saud, que desde 1932 controla a Arábia Saudita com mão de ferro e apoio dos EUA.
O lobby dos fundos financeiros é bem articulado. Mantêm sob contrato o Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), pertencente a Adriano Pires. Manjadíssimo lobista sempre a postos na Globonews para quem melhor lhe remunerar a opinião, Pires recentemente quase alcançou um dos mais importantes cargos da República.
No início de abril, Bolsonaro quis impor o “independente” Pires na presidência da Petrobras, mas desistiu meia hora após o setor de compliance da companhia revelar a longa ficha corrida do elemento. No universo paralelo do bolsonarismo, correu a versão de que a intenção de Bolsonaro, ao escolher Pires, seria “obrigar a empresa a baixar o preço dos combustíveis”. Em verdade, é outra a explicação e tem a ver com as conexões do setor petróleo no Brasil com interesses internacionais .
Afinal, por sua absoluta centralidade na forma hegemônica de produzir e acumular, em nível global, a série de complexos industriais e financeiros condensados nas extensas e profundas cadeias petroleiras – seja no Oriente Médio, na Rússia ou no Brasil – é o setor das burguesias internas que mais claramente expressa projetos de classe para o crescimento econômico e a consequente inserção internacional peculiar dos países onde estão sediadas.
Esta situação fica explícita, por exemplo, em algumas das principais circunstâncias energético-financeiras da invasão da Ucrânia pela Rússia. Assim, apesar de as sucessivas sanções que lhe são impostas pelos EUA e a União Européia (UE), a Rússia – que tem um PIB menor do que o Brasil – utiliza os equipamentos bélicos mais modernos e financia a guerra através da crescente exportação por alguns de seus principais produtos: carvão mineral, gás natural e petróleo aos carbo-dependentes países da própria UE – à frente, a Inglaterra, o aliado alfa dos EUA.
O salto na frente de Bolsonaro e Dória
Por aqui, as candidaturas de Bolsonaro e de Doria provavelmente já fecharam acordos e saltaram na frente quanto à alienação do controle estatal sobre a Petrobras. A entrega total da companhia completaria um processo que já começou em 2016, após ter-se consumado o golpe, com a progressiva e acelerada diminuição da companhia.
A Petrobras perdeu parte da preferência na exploração do pré-sal; ficou sem duas refinarias; e viu o seu recém-demitido presidente e general Luna e Silva perpetrar a perversa entrega aos acionistas de R$101 bilhões dos R$106 bilhões lucrados pela empresa em 2021.
A distribuição de tantos dividendos sobre o lucro contraria até a lógica de auto/re-financiamento padrão no setor petróleo. Estivéssemos em um regime democrático de direito, perto de 70% do lucro gerados pela empresa teriam sido reinvestidos. Assim, a Petrobras poderia sustentar a alta escala de que precisa para se manter como um elemento fundamental da garantia de segurança energética interna ao Brasil.
Para se ter uma ideia da importância da empresa na vertebração da economia brasileira, e de como o golpe de 2016 também significou um ataque de morte à companhia, basta recordar uma pesquisa elaborada em 2020 pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos na Federação Única dos Petroleiros (Dieese-FUP).
A pesquisa mostrou que a participação da Petrobras na Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF, ou seja, o tipo de investimento mais relevante numa economia complexa) do Brasil vem caindo anualmente, com tendência a ter diminuído ao mais em 2021. Em 2014, mostrou o Dieese, a Petrobras sozinha representava 7,6% de toda FBCF do País. Mas, esse percentual desabou para 3,8% em 2020.
Em outras palavras: o golpe instaurou um regime em que foi possível retirar da Petrobras o poder de auto-sustentação e de ganhos potenciais entre os maiores de sua história (vide a disparada recente nos preços do petróleo devido à guerra na Ucrânia).
Os golpistas que agora se apressam em colocar a estatal à venda quebraram-lhe primeiro as pernas ao enfraquecer a sua estrutura verticalizada de produção (do poço de petróleo ao poste de energia elétrica). Essa verticalização garantia à estatal brasileira a impressionante escala para competir muitas vezes em superioridade com quaisquer outras empresas de energia do planeta.
“É muito simples”, ensinou com aquela tradicional arrogância tucana o economista Henrique Meirelles durante recente convescote financiado pelo Bradesco. No evento, segundo a Folha de São Paulo, foi apresentado o plano de Doria para vender a Petrobras, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, no caso raro de o candidato Lancoste conseguir se eleger.
“Divide a empresa [a Petrobras] em três ou quatro, privatiza essas companhias, e elas vão competir. Aí o mercado determina”, receitou Meirelles, que foi Secretário de Fazenda de São Paulo na gestão Dória, onde privatizou de aeroportos a estradas. Fora do governo, ele agora coordena o programa do neotucano pré-candidato ao Planalto.
Ex-presidente do BankBoston, Meirelles é daqueles políticos que cultivam a aura de isenção técnica como forma de transitar em qualquer governo. Insistindo nessa mentira e contando com a cumplicidade de quem a aceita, ele presidiu o Banco Central nos dois mandatos de Lula (2003/11) e foi Ministro da Fazenda do golpista Michel Temer (2016/18). Em 2018, concorreu à Presidência pelo MDB.
Proteção institucional do pré-sal
Hoje, o assanhamento dos privatistas às vésperas da eleição não acontece à toa. Eles sabem que o acesso completo das multinacionais ao pré-sal só acontecerá se, antes, a Petrobras for retirada do caminho.
Por via da legislação do regime de partilha do petróleo (último ato assinado por Lula ao fim do seu segundo mandato, em 22 de dezembro de 2010, destinado a reger a exploração do pré-sal), a estatal é, de fato, uma barreira institucional à desnacionalização das principais reservas brasileiras. Ao obrigar relevante participação da estatal na exploração do pré-sal, a Lei garante que a fortuna derivada do petróleo se espraie pela economia e seja dirigida a sanar as necessidades do povo brasileiro, o real proprietário dessa riqueza natural.
Assim, Bolsonaro e Doria sustentarem a privatização significa cumprir o papel de agentes mercantis de destruição da nacionalidade brasileira. Entende-se. A história mostra que o maior movimento de massas já organizado neste país e impôs ao mais nacionalista dos presidentes, Getúlio Vargas, sancionar a lei 2004, em 1953, para criar o monopólio estatal do petróleo e a Petrobras. Ato estruturante e longevo de soberania nacional, a Lei do Petróleo só foi destruída em 1997. Foi revogada pela raiva anti-getulista do neoliberalissimamente vaidoso Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
E Lula?
Neste cenário, é urgente saber qual a posição de Lula, o candidato do campo popular e democrático, favorito nas pesquisas de intenção de voto, único capaz de bater Bolsonaro, que vem conversando frequentemente com banqueiros e demais figuras centrais do capitalismo no Brasil.
Como serão tratados os temas do petróleo e da Petrobras caso ele seja eleito? Haverá revogação das normas que permitiram aos golpistas privatizar partes da Petrobras, entregues ao capital especulativo desde Temer? Será refeita e ampliada a legislação da partilha, como acontece por exemplo na Noruega, país cuja legislação sobre o petróleo inspirou o Brasil? Esses temas serão tratados no programa de governo que Lula promete divulgar até o final de abril?
Em um encontro recentemente realizado no Rio de Janeiro, na sede da Federação Única dos Petroleiros – fortíssima aliada de Lula e do PT –, o candidato foi sutil porém claramente cobrado a se posicionar – o que não fez na oportunidade. “O problema que temos não é geológico nem econômico”, disse a Lula e à Gleisi Hoffman, presidente do PT, o geólogo Guilherme Estrela, que liderou a equipe da Petrobras que descobriu o pré-sal. “Se fosse, eu e o (José Sergio) Gabrielli resolveríamos”, disse Estrela, referindo-se ao economista e professor da Universidade Federal da Bahia, que dirigiu (2003/05) e presidiu (2005/12) a Petrobras nos governos petistas.
“Perdemos o Brasil. O Brasil e a Petrobras não são mais nossos”, alertou Estrela a Lula. “Esse é o problema que temos de enfrentar. Perdemos a soberania nacional. Por que a Petrobras e a Eletrobrás são importantes? Porque energia é um elemento básico da soberania das nações. A nação que não tem a soberania completa sobre a produção energética não é soberana. Esse é o desafio que nós temos: recuperar a soberania nacional. A Petrobras nasceu nas ruas, tem a alma do povo brasileiro. A Petrobras ‘precisa’ ser destruída porque assim esses caras destróem o nosso sentimento se soberania, de auto-estima e de confiança”.
A todos, em seu eterno discurso de salvador da pátria arrasada, Lula embrulha em embalagem sedutora a suposta necessidade de formar uma frente amplíssima, que inclui até quem apoiou o golpe há apenas seis anos, para derrotar Bolsonaro. Então, como se posicionará essa frente amplíssima, repleta de gente que representa setores anti-nacionais e contrários à soberania defendida por Estrela?
Somente o próprio dono de fato do PT conhece os limites dos acordos fechados para garantir a vitória em outubro e, depois, aquilo que ele chama de viabilidade de seu provável governo. Ninguém mais sabe se essa governabilidade imaginada pelo petista – que em suas primeiras gestões foi nacionalista quanto ao petróleo – pode, em tempos de crise, vir a passar por mais privatização de ativos da Petrobras, a maior empresa do hemisfério sul; a grande indutora do desenvolvimento brasileiro; enfim, o ícone de brasilidade manchado com o sangue de quem perdeu até a vida por defender a máxima “o petróleo é nosso”.
Há um enorme sinal de interrogação sobre qual será a estratégia adotada e o raio de manobra permitido ao petista diante da enorme crise política – e, eventualmente, até institucional – que advirá da tomada de posições de força, na linha defendida por Estrela – que está muito longe de ser um radical.
Operação acalma banqueiro
O fato é que a operação acalma banqueiro, operada até aqui por Lula, inclui aceitar na vice da chapa de Lula um notório golpista: o ressuscitado tucano de alma Geraldo Alckmin. Prócer do PSDB até há 15 minutos, inviabilizado no partido sob controle do neotucano Doria, Alckmin carregará para sempre a pecha do ex-governador de São Paulo em cujo governo professores/as e estudantes eram cruelmente espancados pela covarde PM paulista. Mesmo que agora tenha sido abençoado pelo babalorixá do PT, Alckmim nunca deixará de ser o inesquecível comandante-em-chefe do massacre de sem tetos em Pinheirinho (2010).
Além disso, embora Alckmim tenha saído formalmente do PSDB – partido que sempre defendeu a queima da Petrobras em praça pública –, não é racional supor que ele e seus iguais (José Serra e Aloysio Nunes, por exemplo, que abençoam a aliança com Lula) tenham mudado tanto de opinião do dia para a noite.
Afinal, aos olhos dessa gente que nasceu no Brasil, mas que ama e pensa como capitalistas estadunidenses e europeus, a “heresia” que a maior estatal brasileira comete há 69 anos tem sido o fato de sempre encontrar e viabilizar a exploração de crescentes reservas de petróleo de ótima qualidade, mesmo estando o óleo em algumas das porções mais inóspitas da Terra.
Uma proeza política, tecnológica e econômica que, bem utilizada, ainda pode levar esta Nação a acumular força e capital suficientes para passar a fazer parte do grande jogo internacional. Porém, aí já não mais como quintal dos EUA, condição a que nos submeteram o PSDB de FHC, de Alckmin e dos ex-chanceleres Serra e Nunes, que sempre exerceram o poder sob inspiração de Washington.
É possível que o programa de Lula ainda não contenha a resposta a algumas dúvidas levantadas nesse artigo. Mas, é já necessário deixar claro que a condição de único candidato capaz de bater Bolsonaro não dá a Lula um cheque em branco para devaneios neoliberais.
*Carlos Tautz é jornalista e doutorando em história contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF).