A profanação da Kombi

image_pdf

Por EUGÊNIO BUCCI*

O comercial da marca alemã é um descalabro ofensivo à arte, à música brasileira e à memória cultural do Brasil

Na segunda-feira, dia 10 de julho, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) abriu representação para avaliar uma campanha que a Volkswagen lançou para comemorar seus 70 anos de Brasil. Isso quer dizer que há um problema ético na peça publicitária. Ficou chato para todo mundo. O que mais incomodou as audiências menos insensíveis foi a trucagem por meio da qual a cantora Elis Regina, morta há 41 anos, foi posta para interpretar uma canção de Belchior enquanto pilota uma Kombi na contramão.

Você deve ter visto isso aí na TV ou na internet. Não é algo agradável aos olhos. Nem aos ouvidos. Com todo o respeito aos escapamentos dos automóveis, o comercial da marca alemã é um descalabro ofensivo à arte, à música brasileira, à memória de quem já partiu desta para a desconhecida e, sobretudo, às pessoas que, por ainda não terem falecido, tiveram de ser expostas a tamanha atrocidade.

O que o Conar vai decidir agora não importa. O mais crucial, nesta hora macabra, é compreendermos, com juízo crítico, por que a publicidade se sente autorizada a fazer do acervo cultural de um povo inteiro essa maçaroca monstruosa. O que foi isso? Como isso se tornou possível?

O comercial da Volks se permitiu editar a composição clássica de Belchior, Como nossos pais. Na verdade, o que fizeram foi esquartejar a letra, os compassos, o andamento. O verso “você diz que depois deles não apareceu mais ninguém” sumiu do mapa, embora fosse o centro nervoso da intenção do poeta. Vai ver ele foi tirado de lá justamente por isso. Alguém submeteu sua obra a uma lobotomia perversa, ao lado de outras amputações tópicas. E tudo isso em nome do quê? De vender veículos automotivos? Belchior, que cantava “ano passado eu morri, mas este ano eu não morro”, morreu de novo. E de novo, e de novo. Ele está aí, morrendo em horário nobre.

Quanto a Elis Regina, foi exumada por truques malfeitos que, segundo se propagandeou, contaram com o auxílio de Inteligência artificial. Ora, senhores. Ora, senhoras. Haja mau gosto. Haja apostasia. Haja profanação. A Kombi, das nossas memórias mais inocentes, mais preciosas, ressurge no papel de um féretro de mortos-vivos artificiais a serviço do entretenimento, como num cortejo de seres frankensteinianos sem pé, sem cabeça, sem coração e sem espírito.

Sim, a gente já viu um milhão de vezes pequenas obras primas do cancioneiro serem mutiladas pelos bisturis do que chamam de “alma do negócio”. Sim, isso não é novidade. A turma autoproclamada criativa joga as recordações afetivas da gente em liquidificadores de titânio e as transforma em gororoba de defeitos audiovisuais que não têm princípio, nem vergonha, nem senso de responsabilidade estética. Desde sempre é assim, já sabemos.

Ou, sejamos menos vagos, é assim desde que os jornais industriais começaram a circular nas grandes cidades. Mas agora, francamente, o que pensar dessa dissecação despirocada? Este pessoal não tem respeito por Belchior, que morreu em 2017? Não presta nenhuma reverência a Elis Regina? Será que não existe lugar para a consternação na ganância dos anunciantes e na vaidade marquetófila?

No mercado dos anúncios de mercadorias, a senectude (70 anos!) não é sinônimo de maturidade, de mansidão, de serenidade, mas de um furor adolescente em torno do “vil metal” – expressão que a Volkswagen também teve o capricho de expulsar da letra de Belchior. Triste fim da poesia.

Mais uma vez fica provado que as estratégias do advertising constituem o cemitério da arte, ainda que se valham, aqui e ali, de subterfúgios que de longe lembram expedientes dos artistas genuínos. Na campanha da Kombi embalada, Belchior e Elis Regina são evocados como retalhos do que foram. Cacos de si. Carcaças em ferrugem. Ferro-velho.

Mas não é só na publicidade. O entretenimento – que engloba a publicidade – funciona como a propaganda ininterrupta de si mesmo, como se fosse um mercado anunciante expandido. Muita gente de boa vontade ainda vê ilhas de beleza sublime na massa imensa do entretenimento, mas cabe duvidar. Acima de tudo, o entretenimento opera como negócio – e apenas residualmente lança mão de um pot-pourri de artes caídas.

Seu propósito é cativar as audiências para torná-las, como o verbo prenuncia, cativas – prisioneiras, “fidelizadas”, encabrestadas. Onde a arte liberta a imaginação humana, o entretenimento adestra. Onde o artista revela, o entretenimento veda. Onde a arte desarranja o que era sabido e abre portais que deixam ver, num relance fugidio, a face desafiadora das coisas que não sabemos, o entretenimento ergue seus currais de influência e mando.

“O que é a aura?”, perguntou-se uma vez Walter Benjamin, pensando sobre esse mistério na obra de arte. Ele mesmo respondeu: “É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”. Isso você não encontra no entretenimento, a não ser como lapso ou como falsificação. Quanto ao mais, o que nos resta é embarcar na Kombi apocalíptica.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica).

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES