A raiva das massas

Imagem: Aleksandar Pasaric
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Por RICHARD D. WOLFF*

Os líderes europeus e seus partidos continuam a calcular qual seria a melhor forma de recuperar o poder depois que o perderam

Na esteira de sua enorme derrota em 30 de junho de 2024, quando 80% dos eleitores rejeitaram o presidente “centrista” francês Emmanuel Macron, ele disse que entendia a raiva do povo francês. No Reino Unido, o conservador e perdedor Rishi Sunak disse o mesmo sobre a raiva do povo britânico; o líder trabalhista Keir Starmer diz agora que compreende por que a raiva está explodindo em seu país. É claro que essas frases desses políticos geralmente significam pouco ou mesmo nada; elas não implicam numa mudança de rumo substantiva.

Esses líderes europeus e seus partidos continuam a calcular qual seria a melhor forma de recuperar o poder depois que o perderam. Nisso, eles são como os democratas norte-americanos após o desempenho de Joe Biden em seu debate com Donald Trump, agora em 2024, ou como os republicanos nos EUA após a derrota de Donald Trump, em 2020. Em ambos os partidos, um pequeno grupo de líderes e de doadores toma sempre todas as decisões importantes, mas organiza depois o teatro político para ratificá-las “democraticamente”. Mesmo uma surpresa como a de Kamala Harris, que substituiu Joe Biden na corrida eleitoral, é apenas um pequeno desvio no rumo costumeiro da política contemporânea.

No entanto, ao contrário de Donald Trump, essa nova candidata perdeu já a oportunidade de se identificar e de organizar uma base de massa formada por pessoas furiosas. Donald Trump conseguiu chegar a essa identificação dizendo em voz alta – e grosseiramente – aquilo que políticos tradicionais pensam, mas consideram que não devem dizer em público, sobre imigrantes, mulheres, OTAN e tabus políticos tradicionais.

Essa situação permitiu que Donald Trump insistisse que fora enganado e que havia vencido a eleição de 2020. A raiva massiva das populações que se sentem vitimizadas em suas vidas cotidianas encontrou um porta-voz que alegava em voz alta ter sido vítima de um complô dos políticos tradicionais. Donald Trump e a sua base entenderam que, juntos, podem transformar os seus vitimadores em vítimas.

Nenhum líder importante no Ocidente coletivo, incluindo Donald Trump, parece “entender” realmente porque a raiva dos eleitores pode ser explorada politicamente. Ao perderem, eles geralmente se tornam apenas capazes de culpar os seus oponentes na próxima eleição. Joe Biden culpou Donald Trump por uma economia “ruim” em 2020, enquanto Donald Trump apontara para essa mesma culpa em 2016; em breve, ele passará a culpar Kamala Harris. Os oponentes presidenciais culpam o outro pela “crise da imigração”, por proteger inadequadamente a indústria norte-americana da concorrência chinesa, dos déficits orçamentários do governo e das exportações de empregos.

Nenhum líder convencional “entende” (ou ousa sugerir) que a raiva massiva hoje em dia pode ser mais do que uma coleção de reclamações e de demandas específicas (sobre armas, aborto, impostos e guerras). Mesmo os demagogos que gostam de falar sobre “guerras culturais” não ousam perguntar por que tais “guerras” estão em alta agora. Os irritados que proferem o “Make America Great Again” (MAGA) são notavelmente vagos e mal-informados, tal como os seus críticos apontam. Raramente esses críticos oferecem explicações alternativas persuasivas para a raiva que se expressa por meio da palavra MAGA – isto é, explicações que não sejam nem vagas nem mal-informadas.

É de se questionar, em particular, se a raiva que o movimento MAGA expressa diz respeito a um sofrimento genuíno, massivo, que ainda não entendeu a sua própria causa? Essa causa não poderia ser nada menos do que o declínio do capitalismo ocidental e de tudo o que ele representa. Se tabus ideológicos e antolhos impedem admiti-lo, os resultados desse declínio – ansiedade, desespero e raiva – podem se concentrar em bodes expiatórios adequados? Trump e Biden, Macron e Sunak e tantos outros não estariam escolhendo bodes expiatórios alternativos para mobilizar uma raiva que eles não entendem e que não ousam investigar?

Afinal, o capitalismo ocidental não é mais o mestre colonial do mundo. O império americano, que sucedeu aos impérios europeus, está agora também em declínio. O próximo império será chinês ou, então, alternativamente, a era dos impérios terminará dando lugar a uma genuína multipolaridade global. O capitalismo ocidental também não é mais o centro de crescimento dinâmico do mundo; eis que este se moveu para a Ásia.

O capitalismo ocidental está claramente perdendo a posição que mantinha como poder supremo unificado e autoconfiante, poder este que costuma atuar por trás do Banco Mundial, das Nações Unidas, do Fundo Monetário Internacional e do dólar americano como moeda mundial.

Em termos de poder econômico global, medido pelos PIBs nacionais, os Estados Unidos e seus principais aliados (G7) estão ficando para trás; eles têm um PIB total agregado que já é significativamente menor do que os PIBs agregados da China e de seus principais aliados (BRICS). O tamanho dos dois blocos de poder econômico global fora aproximadamente igual em 2020. Contudo, a diferença entre eles tem aumentado desde então e continuará certamente a aumentar nos próximos anos.

A China e seus aliados do BRICS cada vez mais se apresentam como o bloco mais rico da economia mundial. Nada preparou as populações do capitalismo ocidental para essa nova realidade e para os seus efeitos. Em especial, partes dessas populações estão sendo forçadas a absorver os fardos pesados do declínio do capitalismo ocidental; sentem-se, por isso, traídos, abandonados e com raiva. As eleições são apenas um canal por meio da qual expressam esses sentimentos.

A minoria rica, poderosa, mas pequena, que domina no capitalismo ocidental pratica uma combinação de negacionismo e de ajustamento diante do próprio declínio. Os políticos predominantes, a grande mídia e os acadêmicos continuam a orar, escrever e agir como se o Ocidente ainda fosse globalmente dominante. Para eles, ensimesmados em suas formas de pensar, o domínio global ganho na segunda metade do século passado não terminou e não vai terminar. As guerras na Ucrânia e em Gaza testemunham esse negacionismo, exemplificando os erros estratégicos, por certo dispendiosos, que ele produz.

Quando não negam a nova realidade, porções significativas dos ricos e dos poderosos que governam as corporações do capitalismo ocidental estão fazendo reajustes na política econômica que preferem; mantêm o neoliberalismo, mas introduzem nele doses de nacionalismo econômico. A principal justificativa para esse tipo de ajuste é que ele serve à “segurança nacional”, ou seja, ele pode ao menos retardar a “agressividade da China”. Internamente, os ricos e poderosos de cada país usam suas posições e recursos para transferir os custos do declínio do capitalismo ocidental para a massa de seus concidadãos de renda média e para os mais pobres. Eles pioram as desigualdades de renda e riqueza, cortam os serviços sociais governamentais e endurecem os comportamentos policiais e as condições das prisões.

Esse negacionismo facilita o declínio contínuo do capitalismo ocidental. Muito pouco é feito – e tarde demais – já que os problemas ainda não foram apreendidos como tais. A deterioração das condições sociais decorrentes desse declínio, especialmente para as pessoas de renda média e para os pobres, oferece oportunidades para os demagogos de direita. Eles continuam a culpar os imigrantes estrangeiros, o poder estatal excessivo, os democratas, a China, o secularismo, o aborto e os inimigos que combatem por meio da guerra cultural, pelo declínio; ao fazê-lo, esperam reunir um eleitorado grande que os tornem vencedores na disputa política corriqueira.

Infelizmente, os críticos de esquerda se concentram apenas em tentar refutar as alegações da direita sobre tais bodes expiatórios. Embora as refutações apresentadas sejam frequentemente bem documentadas e eficazes no combate midiático, em especial contra a mídia de direita, a esquerda raramente invoca argumentos explícitos e bem sustentados sobre os vínculos da raiva das massas com o declínio do capitalismo.

A esquerda falha muito ao não enfatizar que os reguladores do governo, por mais bem-intencionados que sejam, se sujeitaram ou foram capturados pelos especuladores capitalistas do setor privado.

Assim, a massa de pessoas se tornou cada vez mais profundamente cética quanto à capacidade do governo para corrigir ou compensar as falhas do capitalismo. As pessoas entendem, muitas vezes apenas intuitivamente, que o problema de hoje é a fusão dos capitalistas com governos omissos. A esquerda e a direita popular se sentem cada vez mais traídas pelas promessas de políticos do espectro que vai da centro-esquerda ao centro-direita.

A intervenção do governo mudou muito pouco na trajetória do capitalismo moderno. Para um número crescente de pessoas, os políticos de centro-esquerda e de centro-direita parecem servos dóceis iguais dessa fusão entre capitalistas e governos impotentes. Ora, essa fusão constitui o capitalismo moderno com todos os seus fracassos e todas as suas falhas. Assim, a direita de hoje é bem-sucedida ao se retratar como não centrista; ela apresenta candidaturas explicitamente polares. A esquerda é mais fraca porque muitos de seus programas parecem ainda ligados à ideia de que boas intervenções governamentais poderiam corrigir ou compensar as deficiências do capitalismo.

Em suma, a raiva das massas não é conectada ao declínio do capitalismo, em parte porque a esquerda, a direita e o centro negam, evitam ou negligenciam que esse vínculo exista. A raiva das massas não se traduz ou ainda não se move por uma política anticapitalista explícita, em parte porque poucos movimentos políticos organizados se mostram capazes de mostrar outro caminho.

Assim, Rachel Reeves, chanceler do Tesouro no novo governo do Partido Trabalhista da Grã-Bretanha, anuncia alegremente que “não há muito dinheiro aqui”. Desse modo, ela prepara o público – e desculpa preventivamente o novo governo – para o quão pouco ele poderá fazer. Ela vai além e define como o seu principal objetivo “desbloquear o investimento privado”. Até as palavras que escolhe soam bem aos ouvidos dos velhos conservadores; elas dizem aquilo que eles próprios diriam se fossem governo. No capitalismo em declínio, as mudanças eleitorais podem e muitas vezes servem para evitar ou pelo menos adiar uma mudança real.

As palavras de Rachel Reeves garantem às grandes corporações e ao 1% mais rico que o Partido Trabalhista, agora sob a condução de Keir Starmer, não vai tributá-los pesadamente. Isso é música para eles já que é justamente nas grandes corporações e nos bolsos dos ricos e dos muito ricos que há “muito dinheiro”. A riqueza desse 1% poderia facilmente financiar uma reconstrução genuinamente democrática de uma economia britânica seriamente esgotada após a crise de 2008. Em contraste, os programas conservadores típicos que priorizam o investimento privado são aquilo que levaram o Reino Unido ao seu triste estado atual. Eles eram o problema; eles não são a solução.

O Partido Trabalhista já foi socialista. O socialismo já significou uma crítica completa do sistema capitalista e a defesa de algo totalmente diferente. No passado, os socialistas buscaram vitórias eleitorais para ganhar o poder de governo com o fim de fazer uma transição para uma ordem pós-capitalista. Mas o Partido Trabalhista de hoje jogou fora essa história. Ele quer administrar o capitalismo britânico contemporâneo com um pouco menos de severidade do que os conservadores.

Trabalha para persuadir a classe trabalhadora britânica de que algo “menos duro” é o melhor que eles podem esperar. E os conservadores britânicos podem de fato sorrir e aprovar condescendentemente tal Partido Trabalhista ou até mesmo passar a discutir com ele quanta dureza o capitalismo de hoje “precisa”.

Emmanuel Macron, que também já foi socialista, desempenha agora um papel semelhante na França. De fato, o mesmo acontece com Joe Biden e Donald Trump nos Estados Unidos, Justin Trudeau no Canadá e Olaf Scholz na Alemanha. Todos oferecem receitas administrativas para levar a frente o capitalismo em decadência. Nenhum deles tem programas destinados a resolver os problemas básicos, acumulados e persistentemente não resolvidos do capitalismo em sua fase atual.

As soluções exigiriam primeiro admitir quais são esses problemas: instabilidade ciclicamente recorrente, distribuições cada vez mais desiguais de renda e riqueza, corrupção monetária da política, mídia de massa e cultura e políticas externas cada vez mais opressivas que não conseguem compensar um capitalismo ocidental em declínio. O negacionismo coletivo que prospera em todo Ocidente impede que esses problemas possam ser enxergados; impede também que soluções novas possam ser pensadas e apresentadas em programas que visam obter uma mudança real. Os governos alternativos atuais apenas administram; eles não ousam liderar. Um regime liderado por Kamala Harris e Tim Walz romperia com esse padrão?

Se chegar ao poder, a sua administração certamente oscilará entre políticas de livre comércio e políticas protecionistas – tal como os governos capitalistas anteriores o fizeram. Nos Estados Unidos, os passos recentes do Partido Republicano, assim como do Partido Democrata, em direção ao nacionalismo econômico são exceções aos compromissos generalizados com a globalização neoliberal; são exceções que visam e se esmeram em buscar votos.

As megacorporações ocidentais, incluindo muitas sediadas nos Estados Unidos, dão boas-vindas ao novo papel da China como campeã global do livre comércio (mesmo se está sendo retaliada moderadamente por meio de tarifas e de guerras comerciais iniciadas pelo Ocidente). O apoio continua forte para as negociações para moldar divisões globais geralmente aceitáveis dos fluxos de comércio e investimento. Estes últimos são vistos como lucrativos, bem como um meio de evitar guerras perigosas.

Nas próximas eleições, o confronto entre o livre comércio e as tendências protecionistas continuarão a aparecer. Mas o fator mais fundamental nas eleições deste ano nos Estados Unidos é a raiva difusa que foi despertada no Ocidente Coletivo por seu declínio histórico; eis que os efeitos desse declínio afetam a massa dos cidadãos comuns sem que eles possam compreendê-lo. Como essa raiva moldará as eleições?

A extrema direita reconhece e cavalga a raiva mais profunda sem aclarar, é claro, a sua relação íntima com o estado do capitalismo. Marine Le Pen, Nigel Farage e Donald Trump são exemplos. Todos eles zombam e ridicularizam os governos de centro-esquerda e centro-direita que apenas administram o que descrevem como um navio afundando que precisa de uma liderança nova e diferente. Mas sua base de doadores (capitalista) e sua ideologia de longa data (pró-capitalista) os impedem de ir além de encontrar um bode expiatório (imigrantes, minorias étnicas, sexualidades heterodoxas e demônios estrangeiros).

A grande mídia também não consegue entender a relação da raiva das massas com o capitalismo. Assim, eles descartam a raiva como irracional, afirmando que foi causada por “mensagens” inadequadas de influenciadores em busca de prestígio e dinheiro. Por muitos meses, os principais especialistas econômicos lamentaram a “estranha” coexistência de uma “economia forte” – mostram as pesquisas – com uma decepção massiva sobre uma “economia ruim”. Por “estranho” eles querem dizer “estúpido” ou “ignorante” ou “politicamente motivado/desonesto”: conjuntos de palavras muitas vezes condensados pelo termo “populista”.

A esquerda tem ciúmes da significativa base de massas da extrema direita que, como se sabe, penetrou agora em grandes contingentes da classe trabalhadora. Na maioria dos países, o movimento de esquerda passou as últimas décadas tentando manter sua base na classe trabalhadora; contudo, o movimento de centro-esquerda, que era dominante nessa corrente política, fazia tudo para minar essa base. Isso levou até mesmo os comunistas e anarquistas a aderirem a teses socialistas e liberais-democráticas cada vez mais “moderadas”.

Essa mudança incluiu minimizar a busca por um pós-capitalismo, amplamente diferente daqueles do passado, em favor do objetivo imediato de lutar por um capitalismo mais suave e humano que seria promovido pelo Estado; nesse capitalismo, os salários e os benefícios seriam maiores, os impostos seriam mais progressivos, ciclos seriam mais bem regulamentados e as minorias seriam menos oprimidas. Para essa esquerda, a raiva das massas que ela era capaz de reconhecer advinha de fracassos em alcançar um capitalismo mais suave e fomentado pelo Estado, não do declínio do capitalismo ocidental.

À medida que o centro dinâmico do capitalismo foi se movendo para a Ásia e para outros lugares do Sul global, o declínio se instalou entre seus centros antigos, os quais estavam mais ou menos abandonados. Os capitalistas do velho centro participaram e lucraram muito à medida que o sistema realocava seu centro dinâmico. Os capitalistas, tanto estatais quanto privados, nos novos centros lucraram ainda mais. Nos velhos centros, os ricos e poderosos transferiram o fardo do declínio para as massas.

Nos novos centros, os ricos e poderosos reuniram a nova riqueza capitalista principalmente em suas mãos, deixando apenas o necessário para satisfazer grandes porções das classes trabalhadoras. É assim que o capitalismo funciona e sempre funcionou. Para a massa de empregados, o movimento ascendente do centro dinâmico do capitalismo, em que eles trabalhavam e viviam, parecia agradável e esperançosa.

Mas isso foi desaparecendo à medida que o declínio foi se instalando na sociedade. Ora, essa descida da prosperidade provoca depressão e traumas. A queda sem consciência, sem admissão e sem discussão, transforma-se em raiva.

*Richard D. Wolff é economista. Fundou o portal Democracy at Work. Autor, entre outros livros, de Capitalism’s Crisis Deepens (Haymarket).

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Publicado originalmente no portal Counterpunch.


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