Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO*
O encantado e o desencantado trocaram de lugar; o aparentemente encantado agora se tornou desencantado e vice-versa
Este artigo pretende expor resumidamente a tese do filósofo freudo-marxista Adrian Johnston sobre o lugar da religião nos últimos dois séculos frente à secularização produzida pelo crescimento exponencial das relações mercantis. Ele quer saber, dizendo de outro modo, como a religião ocupou o espaço social conforme ocorreu o desenvolvimento do capitalismo. A sua exposição encontra-se num extenso artigo publicado na revista Philosophy Today, em 2019: The triumph of theological economics: god goes underground, título que pode ser assim traduzido: O triunfo da teologia econômica: deus se tornou subterrâneo.
Johnston se inspira numa prédica de Jacques Lacan deixada nas linhas de seu famoso seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, de 1964: “a verdadeira fórmula do ateísmo não é que Deus esteja morto… a verdadeira fórmula do ateísmo é que Deus se tornou inconsciente”. Se assim for, isso mostra que o governo da divindade sobre a sociedade é tão poderoso que apenas pode ser abandonado na aparência; quando isso ocorre, quando os crentes se tornam descrentes, ele vai sobreviver oculto no inconsciente daqueles que agora são “ateus” – incluindo-se nessa categoria os que se assumem agnósticos e aquele que o são devido ao seu comportamento social, mas não se assumem como tais. Mais do que isso, Johnston sustenta que a crença em um ser todo poderoso, quando passa a ser renegada explicita ou implicitamente, se torna ainda mais enérgica, pois agora ela passa a reinar sobre os “sujeitos” sociais sem que eles o saibam.
Eis o que ele próprio diz: “Minha intervenção (…) inspira-se especialmente na sóbria consideração de Jacques Lacan sobre o “triunfo da religião”, mote que desafia as expectativas de Freud de que a secularização iria se ampliar e se aprofundar [com o desenvolvimento do capitalismo]. Argumento que os fenômenos sociopolíticos das últimas décadas testemunham que as superestruturas religiosas se infundiram nas superestruturas econômicas. Afirmo que essa dinâmica foi tão longe que a humanidade contemporânea é agora amplamente secular quando acredita ser religiosa e religiosa quando acredita ser secular”.
Como a psicanálise faz afirmações sobre a psique dos indivíduos e a tese mantida por Johnston refere-se à sociedade como um todo, a passagem que faz de um nível a outro requer uma justificação. E esta lhe parece imediata: como a religião existe simultaneamente como realidade pessoal e coletiva, ela pode ser alvo de uma crítica histórico-materialista na perspectiva da crítica da economia política. Eis que a consideração da interação entre a religião e o sistema do capital é importante – como ainda se verá – para compreender tanto a resilência histórica do capitalismo como certos desenvolvimentos degenerativos do liberalismo no campo da direita.
De qualquer modo, a referida continuidade desafia não apenas as expectativas de Freud quanto ao desaparecimento da religião, mas também de muitos outros que viveram no período histórico em que predominaram as esperanças de “progresso” incitadas pelo advento do Iluminismo. Acreditou-se, então, principalmente nos meios intelectuais europeus, que o desenvolvimento científico e tecnológico tornaria o culto de um ser divino, pouco a pouco e cada vez mais, uma exceção, ou mesmo, uma relíquia da história. De qualquer modo, sabe-se que a religião deixou de fato de subsumir a sociedade em uma totalidade ética inescapável, para se tornar uma questão de foro individual.
Mesmo os jovens Marx e Engels não escaparam de acreditar numa progressiva dessacralização da sociedade e, assim, no avanço avassalador da secularização com o desenvolvimento do capitalismo. E isso está implícito no modo como trataram o papel transformador da burguesia no Manifesto comunista; eis que essa classe social, na visão deles, seria portadora de um progresso material e cultural de grande valor para a humanidade: “A burguesia, historicamente, desempenhou um papel muito revolucionário. Onde quer que tenha conquistado o poder, pôs fim às romanceadas relações feudais e patriarcais. Rompeu sem piedade os diferentes laços feudais que ligavam o homem a seus ‘superiores naturais’ e não deixou nenhuma outra ligação entre os homens a não ser o frio auto-interesse, o insensível ‘pagamento em espécie’. Ela afogou os mais sagrados êxtases do fervor religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês, nas águas gélidas do cálculo egoísta”.
Grosso modo, em sua obra crítica da economia política, Marx trata a religião como realidade social externa ao sistema da relação de capital e, portanto, como estranha – mera herança do passado – à superestrutura do modo de produção capitalista. Entretanto, é possível reconhecer já na noção smithiana de “mão invisível”, a transmigração da “mão visível” de Deus – elemento central da superestrutura da sociedade medieval que busca se manter na modernidade – para o sistema econômico na forma de um “espírito” que o governa divinamente em proveito da prosperidade geral. Entretanto, como se sabe, Marx considerou o argumento da mão invisível como inefetivo já que o contrário poderia ser deduzido das premissas, mas não viu nele a inserção do divino na lógica de funcionamento do sistema econômico.
Nos Grundrisse, ele escreveu: “A dependência recíproca se expressa na necessidade constante da troca e no valor de troca com a mediação de tudo. Os economistas expressam isso como segue: cada um persegue o seu interesse privado; e por esse meio favorece o interesse privado de todos, o interesse geral, sem mesmo desejá-lo ou sabê-lo. (…). Igualmente, é possível deduzir dessa frase abstrata que cada indivíduo bloqueia reciprocamente a afirmação do interesse de todos os outros, de modo que, ao invés de uma afirmação geral, a guerra de todos contra todos produz uma negação geral”.
É notório, entretanto, que uma menção à religião aparece na seção sobre o fetichismo da mercadoria do primeiro capítulo de O capital. O velho Marx diz aí que a mercadoria, apesar de parecer uma coisa trivial, contém “subtileza metafísica e manha teológica”. Entretanto, esse caráter para além de empírico do produto do trabalho no capitalismo não aponta para o ocultamento que aqui se quer apresentar. Pois, se o fetichismo indica um encantamento do mundo das mercadorias, este não provém de internalização aí de um ser divino que antes morava no céu.
Diferentemente, consiste numa ilusão real que ocorre na prática social propiciada pela economia mercantil generalizada, pois aí os agentes confundem invariavelmente a forma de valor com o suporte dessa forma, ou seja, com o valor de uso. Note-se, em adição, que o próprio Marx distinguiu entre o caso em que os produtos da mão humana assumem eles próprios uma “forma fantasmagórica” e o caso em que “os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria”. Somente esse último – mas não o primeiro – pertence, segundo ele, à “região nebulosa da religião”.
No entanto, como nota Johnston, é possível argumentar que o fetichismo é uma pista que leva a algo que se encontra mais escondido. Trata-se de um indício e ele aponta que uma sutil sacralidade parece inerente ao próprio sistema do capital. Pois, este último opera por meio das ações funcionais dos indivíduos que o compõe, mas segundo uma lógica objetiva que independente da consciência desses mesmos indivíduos. Eis que vem a ser um sistema que possui a propriedade da auto-organização, mas que não deixa de produzir crises sucessivas, as quais, aliás, são imanentes e necessárias para que o processo de acumulação de capital possa continuar. De qualquer modo, é nele que se produzem sem cessar “coisas de valor”.
Será, entretanto, um autor influenciado pontualmente pela obra de Max Weber, Ernest Bloch, o primeiro marxista a se referir ao capitalismo como religião. Segundo Michael Löwy, em A jaula de aço, Bloch, em seu livro Thomas Münzer: teólogo da revolução, Bloch acusa Calvino de querer destruir o cristianismo introduzindo uma nova religião justamente por apresentar o próprio capitalismo como religião. No entanto, foi Walter Benjamin, a partir da leitura dessa obra de Bloch, quem primeiro tentou transformar essa acusação num atributo crítico aplicável ao próprio sistema da relação de capital. Eis que, para ele, como deixou registrado num rascunho, é preciso considerar o capitalismo como uma verdadeira religião: “Demonstrar a estrutura religiosa do capitalismo – isto é, demonstrar que ele não é apenas uma formação condicionada pela religião, como pensa Weber, mas um fenômeno essencialmente religioso – nos conduziria ainda hoje às sutilezas de uma polêmica universal desmesurada (…) O cristianismo, na época da Reforma, não favoreceu o advento do capitalismo; ele se transformou no capitalismo”.
O jovem Marx previu uma dessacralização crescente da sociedade moderna, mas o que ocorreu – menciona Johnston – foi o contrário. O que o seu crítico por excelência concebeu como fonte de estranhamento, converteu-se em objeto de um respeito místico. O caráter religioso que assume perante os indivíduos alienados, manifestou-se na ideologia dos movimentos de direita e de extrema direita contemporâneos. Como se sabe, o neoliberalismo em ascensão desde os anos 1980 diviniza o sistema econômico para isolá-lo das demandas democráticas.
A liberdade que o próprio capitalismo requer para o seu funcionamento é defendida com fervor religioso. A austeridade é assumida como um dever de Estado independentemente de sua funcionalidade. O próprio sistema deixa de ser encarado como uma ordem natural para ser tomado como uma ordem moral pela economia política contemporânea. Eis que Deus, nas palavras de Johnston, caiu do céu e se tornou “subterrâneo”.
Para compreender a sacralização da própria vida econômica por parte desses movimentos, Johnston julga que é preciso repensar, sem eliminar, a distinção separadora clássica feita pelo materialismo histórico entre a infraestrutura econômica e a superestrutura social e cultural. Eis que não basta identificar o modo de produção por meio de suas relações sociais específicas para em sequência descobrir a superestrutura que lhe corresponde, como se fossem faces opostas de uma mesma realidade. Pois, não é verdade que apenas a primeira determina ou condiciona a segunda, mas sim que ambas se determinam mutuamente. Pode-se dizer, metaforicamente, que a infraestrutura e a superestrutura da sociedade são porosas – ou não completas.
Em particular, a religião tradicional mantida nunca deixa de ser afetada pela normatividade do capitalismo e este, enquanto sistema, não pode subsistir sem assumir algum caráter de esfera sagrada. Marx, pontualmente, parece às vezes detectar – afirma Johnston –, mesmo no capitalismo de seu tempo, “uma sacralidade supranaturalista, sutilmente disfarçada, que se lhe afigura como inerente ao próprio capitalismo”. Contemporaneamente, mesmo uma fusão de economia e religião se manifesta atualmente com grande força de convencimento nas frações mais pobres das sociedades periféricas por meio da assim chamada “teologia da prosperidade”. Por outro lado, a religião se funde com a política nos movimentos identitários e nacionalistas que crescem nos países desenvolvidos.
Johnston detecta agora, na sociedade contemporânea, uma amplificação dos sinais ainda fracos, mas que já se manifestavam em meados do século XIX. Se, por um lado, a religião tradicional perdeu cada vez mais a condição de totalidade normativa que envolve a sociedade como um todo e determina os comportamentos em geral, a própria esfera que produz essa mudança e engendra a dominância das relações utilitárias e, assim, materialistas no sentido vulgar, ou seja, o crescimento da importância da esfera econômica na vida social, vai se tornar cada vez mais sacralizada. A sua normatividade é secretamente imperativa. Segundo o filósofo freudo-marxista que aqui se estuda, “esta ‘desteologização’ da religião e a ‘teologização’ relacionada da economia foi já muito longe”.
Eis o que ele diz: “No início do século XXI, a religião está completamente presente tanto na infraestrutura quanto na superestrutura. Um Deus obsceno e profano habita a terra vestindo as duas faces do culturalismo beligerante e do neoliberalismo arrogante. Em uma inversão – do tipo “virar de cabeça para baixo” (verkehrtes) – entre o deste mundo e o do outro mundo, a humanidade contemporânea agora é secular onde acredita ser religiosa e religiosa onde acredita ser secular. O encantado e o desencantado trocaram de lugar; o aparentemente encantado agora se tornou desencantado e vice-versa”.
Em consequência, acredita que a crítica da economia política tem também de sofre uma reversão em sua orientação. Se ela nasceu, como se sabe, da rejeição da crítica da religião, mantida na Alemanha pelos jovens hegelianos, agora essa rejeição tem de ser rejeitada. Ela não pode mais se cingir à crítica da política econômica, da má compreensão das tendências do capitalismo ou da ideologia em prol do mercado, pois tem de alcançar também a sacralização do econômico; não só da dupla produção/circulação, mas também e em especial do Estado. “Ainda não somos, mas precisamos nos tornar ateus econômicos”.
*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Complexidade e práxis (Plêiade).