Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
A defesa de um argumento contrário à opinião da maioria apenas com o intuito de testar a qualidade da hipótese
“Advogado do diabo” era a expressão utilizada pela Igreja Católica para designar o advogado com missão de apresentar provas impeditivas da admissão de um candidato a santo ou beato. Sua função era averiguar todos os fatos apresentados em favor do candidato, procurando falhas nas provas de milagres do candidato a santo. Em contraposição, nesses processos de canonização e beatificação, também havia o promotor da fé, encarregado de argumentar a favor do candidato.
A expressão pode designar o cientista em busca de objeções a uma determinada hipótese, testando-a com dados e fatos, para verificar se sua defesa a sustenta como uma tese. Esse advogado do diabo tem de defender um argumento contrário à opinião da maioria apenas com o intuito de testar a qualidade da hipótese.
Por mais pessoas acharem uma ideia correta, não basta para tornar correta essa ideia. Não necessariamente se pronuncia de modo correto quando apenas se pronuncia como os outros. Essa “prova social” é usada e abusada no debate público, mas é falsa.
Em recente pesquisa sobre moeda e bancos, cujo relatório sob forma de um livro digital para download encontra-se no fim deste artigo, atuei como advogado do diabo ao defender uma causa abjeta para muitos leigos. Segundo muitos autores, cujo único propósito é “denunciar o capitalismo”, não haveria moralidade na defesa da hipótese de a “financeirização” ser uma conquista social, ou seja, lamentavelmente, no Brasil, ocorreu um capitalismo financeiro tardio – o título do livro.
Em minha justificativa para atuar como um advogado do diabo digo: os trabalhadores explorados no Brasil, desde sua colonização, “comeram o pão amassado pelo diabo”, mas não pela presença de moeda e banco, mas sim ao contrário, por não terem acesso à gestão do dinheiro e crédito. Essa expressão popular significa passar por um grande sofrimento ou por grandes dificuldades.
Pode ser usada para descrever o grau de desespero ao qual os nativos e os escravos foram submetidos. Por exemplo, o cortador de cana sofreu, em seu trabalho, “o pão amassado pelo diabo”, isto é, por uma entidade sobrenatural da maldade. Todos os explorados sofreram as consequências malignas passadas por quem só tinha para sua sobrevivência esse “pão” – e não dinheiro.
Nessa minha pesquisa levantei não só um ovo de Colombo, mas sim um cesto deles. Esta é uma expressão popular com significado de algo difícil de se realizar enquanto inédito, parece muito fácil, depois de concretizado. Afinal, qualquer um poderia realizar o feito.
Alguns invejosos menosprezam o feito, inclusive o de Cristóvão Colombo ao navegar até a América, e afirmam: qualquer navegador poderia realizá-lo. Então, Colombo desafiou-os a colocar um ovo em pé. Como ninguém conseguiu, ele bateu o ovo sobre a mesa, amassando uma das extremidades, e colocou o ovo ficar em pé. Depois, ironizou: “Qualquer um poderia fazer isso, mas antes era necessário alguém ter a ideia…”.
Enumero em seguida alguns ovos de Colombo, óbvios depois de todos serem “botados no cesto” (livro) em vez de os espalhar para diversificar risco… Os achados estão no livro digital acessível a todos os leitores para comprovarem ou discordarem.
O primeiro ovo de Colombo é “pior em lugar do capitalismo é não alcançar o pleno capitalismo financeiro”. Apesar de todos seus males, a mudança sistêmica do regime de escravidão, sendo o Brasil o último país a extingui-lo nas Américas, e do regime de servidão feudal, para os despossuídos de terra, até o regime de assalariamento foi um avanço histórico.
Os trabalhadores “livres de (ser e arrendar) propriedade” passam a ter chances de se educar e vender sua força de trabalho por maiores salários com apoio sindical. Obtêm uma mobilidade social ao acumular em bancos certo dinheiro como reserva de valor, para sua futura aposentadoria, e antes tomar financiamento para compra de moradia.
O segundo ovo de Colombo é, em uma amostra representativa de dez obras clássicas da historiografia brasileira, “a ausência de dois personagens-chave nas narrativas a respeito da história do Brasil: moeda e banco”. Como já existiam na Europa, durante a colonização, não é anacronismo a cobrança dessa informação aos historiadores brasileiros.
A historiografia clássica brasileira pouco cita, por exemplo, o debate entre “metalistas” (defensores de uma moeda nacional em ouro com aceitação internacional) e “papelistas” (necessitados de papel-moeda e empréstimos para capital de giro). Na história do Brasil colonial, o tipo de relações estabelecidas entre portugueses e nativos foi o escambo, quando não era a violência sobre os escravos.
Para não cometer injustiça, saliento Gilberto Freyre, em Casa Grande & Senzala, ter afirmado “a casa-grande patriarcal desempenhou outra função importante na economia brasileira: foi também banco”. Assim como conventos de frades também guardaram dinheiro. Eram escassas e controladas as moedas metálicas circulantes na Colônia.
O terceiro ovo de Colombo é “Recife poderia ser New York!” [risos]. Vinte e três judeus-brasileiros, expulsos do Brasil, foram os pioneiros da primeira comunidade judaica da América do Norte, em Manhattan, sob domínio da Companhia das Índias Ocidentais de Amsterdã, primeira companhia por ações no mundo. Em 1792, entre os fundadores da Bolsa de Valores de Nova York encontravam-se três judeus, um de origem portuguesa.
Imagine em lugar de o Brasil ser uma economia de endividamento público ter sido uma economia de mercado de capitais à América! “O sonho americano” é um ethos nacional dos Estados Unidos, cujo mito-fundador é todos terem chances para a prosperidade, ou seja, mobilidade social alcançada através de “trabalho duro em uma sociedade meritocrática” ou “sorte em apostas especulativas na bolsa de valores ao se associar com grandes corporações por ações”.
Poucos ganham na alta, muitos perdem na baixa… A agência InfoMoney informa: “no Brasil, 0,3% das pessoas estão na cadeia, enquanto 0,29% investem na bolsa. Nos Estados Unidos, 65% investem em ações e 0,73% estão presas”. Não há nenhuma correlação, mas é engraçado ter gente a buscar essa falsa causalidade.
O quarto ovo de Colombo é Ignácio Rangel e Maria da Conceição Tavares terem sido os autores pioneiros em anunciar, nos anos 1960s, “o Brasil entra em novo estágio, no qual o desenvolvimento não será mais comandado pelo capital industrial, mas pelo capital financeiro”. Se a esquerda quisesse entender o que se passava com o capitalismo brasileiro, teria de estudar o capital financeiro.
Muitos discípulos, formados na “Escola de Campinas” (UNICAMP), entre os quais eu me incluo, o estudaram. Muitas teses adotaram o método lógico-dedutivo, baseadas em leitura da literatura teórico-conceitual, inspiradas em Karl Marx e Rudolf Hilferding. São importantes os esforços de baixar do plano dessa teoria abstrata para a aplicada às novas instituições financeiras. Divulgaram inclusive o conceito de “financeirização”.
Meu livro Brasil dos bancos (EDUSP, 2012) foi escrito a partir de pesquisas de campo com base em fontes primárias com o método histórico-indutivo. Parti de algo particular – bancos e crédito – para uma questão mais ampla: a evolução tardia do capitalismo financeiro no Brasil.
O quinto ovo de Colombo se refere à análise comparativa entre a economia argentina e a economia brasileira. A “financeirização” possibilita a diminuição da pobreza, mais em termos de aumento do estoque de reservas financeiras em vez de gasto dos fluxos de rendimentos em juros. Ela não tem, porém, o dom de diminuir a desigualdade social. A “desfinanceirização”, como mostrei no estudo do caso da Argentina, devido à desintermediação bancária, dolarização e hiperinflação, aumenta ambas: a pobreza e a desigualdade.
Ambas economias são muito fechadas ao comércio internacional – e a única conexão em termos de cadeias globais de valor é uma com a outra. Na média de 2010 a 2019, a importação mais a exportação do Brasil foi pouco acima de 20% do PIB, a menor entre os países comparados, abaixo até dos Estados Unidos e Argentina com menos de 30% do PIB. Recentemente, aumentaram o grau de abertura comercial para acima dos 30%.
O sexto ovo de Colombo é, no Brasil, haver possibilidade de um desenvolvimento sustentável, com base na circulação monetário-financeira entre o agronegócio exportador e os serviços urbano-industriais não-exportáveis. O primeiro, em conjunto com a indústria extrativa exportadora, providencia um superávit no balanço comercial na tentativa de cobrir o déficit na conta de serviços, principalmente, por conta da remessa de lucros e juros pelas multinacionais aqui instaladas.
Elas são indispensáveis pela carência de autonomia tecnológica, devido ao atraso educacional e científico no Brasil. A grande maioria da população sobrevive ocupada em atividades de serviços urbanos, onde por definição – um produtor diretamente em contato com o consumidor de seu serviço – a produtividade é baixa.
Por isso, e por ter a sétima maior população no mundo, dedutivamente, tem uma baixa renda per capita. Para melhorar o bem-estar, seu povo necessita sim dos serviços financeiros: financiamentos, pagamentos e gestão do dinheiro.
Sem Educação Financeira, seu povo se divide entre endividados (26%) – dinheiro é para pagar –, batalhadores (26%) – dinheiro é para ganhar –, céticos (21%) – dinheiro é para evitar –, materialistas (15%) – dinheiro é para gastar –, poupadores (5%) – dinheiro é para guardar – e planejadores (6%) – dinheiro é para multiplicar. Para este segmento, dinheiro investido é o dinheiro com juros compostos para ele obter mais dinheiro.
Baixe o livro clicando no link: Fernando Nogueira da Costa – Capitalismo Financeiro Tardio.
*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP).
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