WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*
Comentário sobre a vida e a obra artística do ativista recém-falecido, acrescida de uma Seleta de Poemas.
A militância multiforme de Alípio Freire mostrou-se incansável. Preso e torturado aos 23 anos, quando terminava sua formação em jornalismo pela Casper Libero, era membro da Ala Vermelha. Seu viés peculiar de humor, bem conhecido dos amigos, determinou que escolhesse como endereço eletrônico <[email protected]>. É o melhor que já tive o prazer de ver: incomparável na agudeza, “sem ideologia”, ou seja, dizendo ao que vinha logo nas preliminares. Alípio nunca o trocou. E persistiria até a morte, em sua trajetória exemplar.
Na linha da resistência, tem cunho único no país a coleção que Alípio veio constituindo desde os cinco anos que passou no presídio Tiradentes. Os presos políticos ocupavam-se com atividades manuais: um desenhava, o outro recortava, ainda outro escrevia, mais um tecia, outro mais pintava. Também poeta e desenhista, Alípio Freire apegou-se aos desenhos, recortes, versos, pinturas canhestras, frases inscritas, modelagens, tecidos entrançados, objets trouvés … E percebeu o alcance do que tinha nas mãos.
Ao deixar a prisão, empenhou-se em seguir os rastros dos artefatos dispersos. E assim, agora numa empreitada maior, passou a colecioná-los sistematicamente, produzindo fichas que historiavam cada peça.
Um passo avante, e começaria a realizar, já transformado em curador consciente, várias exposições itinerantes pelo território brasileiro, como contribuição às “memórias do cárcere”. Duas delas foram no Memorial da Resistência, instalado no prédio da Estação Pinacoteca: “A Luta pela Anistia: 1964 – ? “ (2009) e “Insurreições: expressões plásticas nos presídios políticos de São Paulo” (2013).
Entabularia tratativas para doar seu acervo a uma instituição universitária capaz de aquilatar seu valor e garantir cuidado adequado, pois a preservação de materiais como esses é custosa, constante e demorada. Contatou o Instituto Edgar Leuenroth da Unicamp e o Instituto de Estudos Brasileiros da USP, mas a certa altura foi desistindo. As negociações não foram avante: ele hesitava entre o apego a seus tesouros e o propósito de garantir-lhes sobrevivência.
Zombava de si mesmo, em movimento familiar aos próximos, dizendo que sentia afinidades com a Sinhá Vitória de Vidas Secas. Cismada com a cama de Seu Tomás da Bolandeira, para ela o móvel simbolizava um status elevado, enquanto para Alípio correspondia à enorme mapoteca que comprou para acomodar a coleção: segundo ele, era sua sina equilibrá-la no cocuruto para o resto de seus dias.
Ao sair da prisão, Alípio passou a participar do PT, de que foi fundador, e do MST. Fez filmes de curta metragem sobre vários aspectos da luta, colaborou na redação de panfletos, de jornais e revistas. Pertencia ao comitê de redação da revista Teoria e Debate, da Fundação Perseu Abramo, tendo sido o editor de 1993 a 1995. No MST, onde foi membro ativo da editora Expressão Popular, seria também um dos criadores do jornal Brasil De Fato e da revista Sem Terra.
Mas seu ativismo não parava aí. Juntamente com os companheiros Izaías Almada e J. A. Granville Ponce, organizou o volume Tiradentes, um presídio da ditadura (1997), com depoimentos de ex-presos políticos da negregada instituição, aonde iam parar depois do tirocínio nos infernos da OBAN (futuramente DOI-CODI). Com esta sigla, o sinistro senso de humor da ditadura esmerava-se em enfatizar a função do órgão, que era infligir dor.
Ali se forjaram amizades para o resto da vida. Quem fez o prefácio foi Antonio Candido, que lhe conferiu um título bem adequado: O Purgatório. O livro constituiu uma contribuição magistral, de quem enxergava longe, para manter acesa a chama da resistência à tirania. São vívidas as lembranças dos 35 calejados batalhadores.
Viriam ainda os livros de poesia, Estação Paraíso e Nas brumas de Alcácer-Quibir, que permanece inédito.
Nessa militância sem descanso, ainda faltava um belo filme de longa metragem, o documentário 1964: um golpe contra o Brasil. Jorrando luz sobre o que veio antes, esmiúça com pertinácia a vasta conspiração entre industriais, latifundiários e os Estados Unidos, que culminaria no golpe militar.
E isto é apenas uma rápida síntese, que se desculpa pela falta de fôlego para contemplar todas as facetas de uma vida extraordinária.
*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Senac/Ouro sobre azul).
Seleta de Poemas
31 de março de 1992
Com a memória em 64
os pés em 22
a cabeça em 68
e o coração sem tempo
………………..
(Estação Paraíso – fragmento)
Pour Marx
O romantismo socialista
Propõe suas premissas
O bon-ouvrier
A colheita de batatas
O pastoreio de porcos
Ressabiada
A poesia declina qualquer parceria
(Estação Paraíso)
Juventude
Conheci Rita
na cadeia
ela cruzava pátios
para receber visita
junto com o irmão
e o então marido
que estávamos no Recolhimento de Presos Tiradentes.
Depois casei com Rita
(Estação Paraíso)
Recomeço de século
S E L E T A D E P O E M A S
31 DE MARÇO DE 1992
Com a memória em 64
os pés em 22
a cabeça em 68
e o coração sem tempo
………………..
(Estação Paraíso – fragmento)
POUR MARX
O romantismo socialista
Propõe suas premissas
O bon-ouvrier
A colheita de batatas
O pastoreio de porcos
Ressabiada
A poesia declina qualquer parceria
(Estação Paraíso)
JUVENTUDE
Conheci Rita
na cadeia
ela cruzava pátios
para receber visita
junto com o irmão
e o então marido
que estávamos no Recolhimento de Presos Tiradentes.
Depois casei com Rita
(Estação Paraíso)
Recomeço de século
[Dos diálogos com Oswald de Andrade]
O poeta pede vênia
e como bacharel
absolve todas as culpas.
O poeta sente-se deus
E o povo – ateu
– apupa o poeta.
Na gare (do metrô)
as demoiselles prosseguem
passeando suas inocências
e acenam para os conquistadores
com quinhentos anos de atraso.
(Das brumas de Alcácer-Quibir)
Mourarias da Nau Catarineta
O sheik rende-se
ao shakehands
O xeque ao cheque
Chiang Kai-shek
Cinc à sec
Os franceses fazem
du désert son dessert
Os ianques
saboreiam seu milkshake
shaking camel’s milk
Em Rabat
mesmo quem não planta
dá.
Bagdá
café e chá.
Alcali, Alcalá,
este é o nosso
chachachá.
Irã, Teerã
Saudi-Arábia, El Riad
Iraque, Bagdá
Colômbia, Bogotá
Funiculi, Funiculá
O sheik em Agadir
Greta Garbo no Irajá
Alá é grande
e Maomé seu profeta!
Fatah, Fatal
Ele se chama Ben
Ela se chama Gal
Alá, haxixe, axé
Minarete, narguille e candomblé
Alá é grande
e Maomé seu profeta!
Piuí-pi-piu
piuí-pi-piu
é a nau Catarineta
que aporta no Brasil:
Bebe vinho, pequena imunda,
bebe vinho
Pois não há outra metafísica no mundo
senão beber vinho
– se não beber vinho.
Omar, Osmar, Osman
Khaled, Kadija e Kayan.
Tâmaras, figos, passas
pistache, gergelim, alcaçuz
Beirutes
Americanos
Baurus.
Qu’est-ce que c’est?
C’est Sebas
le dernier exilé
que revient d’Alcacer-là bas.
Qu’est-ce que c’est?
C’est Sebas
le dernier exilé
que revient de Marienbad.
Das brumas de Alcácer-Quibir (fragmento)
O poeta pede vênia
e como bacharel
absolve todas as culpas.
O poeta sente-se deus
E o povo – ateu
– apupa o poeta.
Na gare (do metrô)
as demoiselles prosseguem
passeando suas inocências
e acenam para os conquistadores
com quinhentos anos de atraso.
(Das brumas de Alcácer-Quibir)