Por ADAM TOOZE*
Se os EUA ainda estão interessados na ordem econômica e política mundial, e certamente deveriam estar, devem estar abertos à negociação para uma mudança pacífica
1.
Até que ponto a crescente tensão com a China afetará a política econômica dos EUA? Depois de uma série de sanções e leis abertamente discriminatórias, enquanto medidas estão sendo aplicadas sobre investimentos americanos na China e discursos sobre guerra são cada vez mais comuns nos EUA (confira o artigo de Michael Klare), o governo Biden sabe que precisa esclarecer suas relações econômicas com o país que é o maior parceiro comercial dos EUA além da América do Norte.
Após as reuniões de primavera do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, ocorridas entre 10 e 16 de abril, a secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, fez sua primeira grande declaração sobre as relações econômicas com a China desde 2021. A julgar pelo tom, sua mensagem visa esclarecer e acalmar especulações e debates sobre as motivações e intenções da Casa Branca. No entanto, na situação atual, está longe de ser óbvio que esse esclarecimento realmente contribua para o apaziguamento.
O cenário que Janet Yellen rejeita é o da chamada armadilha de Tucídides,[1] mas as razões pelas quais ela o faz são reveladoras. A ideia de que um “conflito entre os Estados Unidos e a China” é “cada vez mais inevitável” baseia-se, insiste, numa hipótese falsa. Essa perspectiva é “motivada pelo medo, compartilhado por alguns americanos, de que a América estaria em declínio. E que a China estaria prestes a nos superar como a principal potência econômica do mundo, causando um embate entre os dois Estados.”
Nesse caso, os Estados Unidos buscariam o confronto militar para evitar a mudança desfavorável no equilíbrio de poder relacionada ao fenomenal crescimento econômico da China. Isso não faz sentido, garante Janet Yellen, porque a economia dos EUA, graças às suas instituições liberais, à sua cultura de inovação e à sábia governança do governo Biden, está com boa saúde.
“Os Estados Unidos continuam sendo a economia mais dinâmica e próspera do mundo.” É por isso que, insiste Janet Yellen, os Estados Unidos não têm razão para tentar “sufocar a modernização econômica e tecnológica da China” ou continuar com a grande dissociação em andamento, mas ainda no início. O poder económico dos Estados Unidos, continua o secretário do Tesouro, “é aumentado” pelas suas relações com “amigos e parceiros próximos em todas as regiões do mundo, incluindo o Indo-Pacífico”. Assim, os Estados Unidos “não têm motivos para temer uma competição econômica saudável com qualquer país”. E Janet Yellen conclui: “O crescimento econômico da China não é incompatível com a liderança econômica dos EUA”.
2.
Vale a pena se debruçar sobre o que isso implica. O conflito não é inevitável porque os Estados Unidos estão indo bem. Isso significa que a China pode se desenvolver sem ameaçar a liderança econômica americana. Mas e se não for assim? Janet Yellen não especifica o que isso implicaria. No entanto, nessa eventualidade, embora Janet Yellen deixe pouca margem para dúvidas, todas as possibilidades permaneceriam em aberto. Ainda hoje, embora o governo Biden diga estar confiante nas perspectivas econômicas dos EUA, Janet Yellen insiste: “Como em todas as nossas relações exteriores, a segurança nacional é de suma importância em nossas relações com a China”.
De um certo ponto de vista, é óbvio. Nenhum responsável dirá o contrário. A segurança é a função básica dos Estados. Mas tudo depende da extensão de sua abordagem à segurança nacional e de seu grau de confiança. E se a prioridade da segurança nacional nas relações exteriores deve ser afirmada em voz alta, é porque há um problema.
Para Janet Yellen, é óbvio que os Estados Unidos têm o direito de definir sua segurança nacional globalmente. Afirma, por exemplo, que a defesa da Ucrânia contra a agressão russa está entre as “preocupações de segurança nacional mais urgentes” dos Estados Unidos. Qualquer um que opte por ignorar suas sanções contra a Rússia e se enquadrar sob jurisdição dos EUA está exposto a sérias consequências. Além disso, como os Estados Unidos decidiram negar certas tecnologias aos militares chineses, impõem sanções e restrições comerciais em conformidade.
Assim, os Estados Unidos fortes e autoconfiantes não têm motivos para se opor à modernização econômica e tecnológica da China, exceto em todas as áreas que o establishment de segurança nacional americano, o mais gigantesco do mundo, define como sendo de determinante interesse nacional. Para que isso não passe de hipocrisia, é preciso imaginar que vivemos em um mundo ideal em que a tecnologia, a capacidade industrial e o comércio que são determinantes da segurança nacional são secundários à modernização econômica e tecnológica em geral.
Janet Yellen só reforça essa concepção ao insistir que as medidas tomadas pelos Estados Unidos contra a China serão muito direcionadas. Mas, como todos sabem, essas medidas específicas incluíram até agora: esforços maciços para impedir a líder mundial em tecnologia 5G, a Huawei; sanções contra toda a cadeia de fornecimento de chips eletrônicos (circuitos integrados); e a inclusão da maioria das principais universidades de pesquisa da China na lista de instituições com as quais as agências dos EUA devem limitar estritamente suas relações.
3.
Além disso, para aumentar a perplexidade, enquanto Janet Yellen insiste que as sanções de segurança nacional não nos dizem nada sobre as intenções dos EUA em relação ao crescimento chinês, ela elogia a legislação adotada durante o governo Biden, particularmente a Lei de Redução de Chips e a Lei de Redução da Inflação, que incluem elementos fortemente anti-chineses, como altamente benéficos para a prosperidade futura dos Estados Unidos.
Como resultado, os Estados Unidos saúdam a modernização econômica da China e se recusariam a cair na armadilha de Tucídides, desde que o desenvolvimento da China continue seguindo diretrizes que não afetem a liderança e a segurança nacional dos EUA. A atitude dos Estados Unidos será tanto mais benevolente quanto conseguir assegurar a sua própria prosperidade nacional e, precisamente, a sua preeminência nestas áreas.
O que parece ser uma afirmação razoável e acomodada é, de fato, muito intrigante. A China deve aceitar a delimitação do status quo estabelecida pelos Estados Unidos. Se não respeitar as fronteiras traçadas por Washington entre a prosperidade inofensiva e o desenvolvimento tecnológico historicamente importante, deve esperar sanções maciças.[2]
Deve-se agradecer a Janet Yellen por ter deixado este ponto tão claro. Mas como Washington espera que Pequim reaja? A China não é nem o Japão nem a Alemanha depois de 1945. Em comparação com os Estados Unidos, se a questão da “liderança” for colocada, a paridade é o mínimo que Pequim pode almejar. O status quo que a secretária do Tesouro Janet Yellen dá como certo obviamente não pode ser legítimo a longo prazo. Como Pequim declarou, aspira a uma reorganização fundamental das relações internacionais, para que o discurso americano sobre liderança não permaneça relevante. A China também não é a única grande potência asiática a compartilhar dessa visão. O ponto de vista da Índia não é diferente.
Em Washington, essa posição é recebida com total incompreensão, até mesmo um sentimento de orgulho ferido. Será que a China não entende que deve seu crescimento a uma ordem liderada pelos EUA? Rebelar-se contra essa ordem, diz Janet Yellen, sem rodeios, não é do interesse da China. Janet Yellen tem razão quando diz que um conflito entre a China e os Estados Unidos não é inevitável. Depende das medidas tomadas por ambos os lados.
Mas é difícil ver como sua visão, na qual os Estados Unidos se arrogam o direito de definir qual trajetória de crescimento econômico chinês é aceitável ou não, pode constituir uma base para a paz. Se os Estados Unidos ainda estão interessados na ordem econômica e política mundial, e certamente deveriam estar, devem estar abertos à negociação para uma mudança pacífica. Caso contrário, busca apenas o conflito.
*Adam Tooze é professor de história na Columbia University (EUA). Autor, entre outros livros, de O preço da destruição (Record).
Tradução: Eleutério F. S. Prado
Publicado originalmente no portal Foreign Policy.
Notas do tradutor
[1] Conceito utilizado nas relações internacionais para designar uma situação em que uma potência dominante entra em guerra contra uma potência emergente. O primeiro é movido pelo medo da ascensão do segundo como potência.
[2] No Financial Times de 24 de abril de 2023, Gideon Rachman observa durante uma viagem a Washington que “foi surpreendente como as discussões sobre uma guerra EUA-China se tornaram comuns. Essa discussão é alimentada por declarações frouxas de generais dos EUA ponderando possíveis datas para o início das hostilidades.
Posteriormente, Gideon Rachman insiste na política de dissuasão do Indo-Pacífico dos Estados Unidos: “O governo Biden acredita que isso está indo bem. Ele destaca o aumento substancial dos gastos militares do Japão, a assinatura do Tratado de Aukus entre Austrália, Reino Unido e Estados Unidos, a crescente proximidade nas relações entre Washington e Delhi, o fortalecimento do Quad, que conecta América, Índia, Japão e Austrália, e a decisão das Filipinas de permitir aos Estados Unidos acesso mais fácil a bases perto de Taiwan. Como diz com satisfação tranquila um funcionário dos EUA: “Marcamos muitos pontos”.
Segundo Rachman, o destacamento militar tem a função de “mudar os cálculos de Xi sobre os custos e benefícios de recorrer à força militar”. Mas, ao mesmo tempo, “os americanos estão tentando apaziguar os temores de que buscam prejudicar a economia chinesa. Os profundos laços econômicos que unem os Estados Unidos e a China são uma das diferenças óbvias entre as rivalidades atuais e a Guerra Fria”.
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