Por AFRÂNIO CATANI*
Comentário sobre o livro de Elena Ferrante
1.
Falar de Elena Ferrante é sempre, ou quase sempre, um mistério. Isso porque seu nome é um pseudônimo de uma escritora (ou escritor?) italiana(o) cuja identidade se mantém em segredo. As respostas a seu respeito não passam de divertidas especulações. Pode-se afirmar com algum grau de confiabilidade que nasceu em Nápoles – ou ao menos viveu ou vive lá –, cenário de quase todos os seus livros.
Em raras entrevistas concedidas à imprensa, sempre por escrito e intermediadas pelas suas editoras italianas, revelou ser filha de uma costureira e ter três irmãs, tendo escrito cerca de dez romances e vários livros de não ficção e recebido vários prêmios literários.
Conhece bem Nápoles e dispõe de sólida familiaridade com autores gregos e latinos; dizem que Elena Ferrante é, na verdade, Domenico Starnone (1943), excelente escritor, romancista, jornalista, autor de roteiros e detentor de prêmios literários relevantes – ele nega que tenha escrito as obras assinadas por Elena Ferrante. Outros afirmam ser ela a escritora Marcella Memmo, enquanto não poucos concluíram que se trata da tradutora romana Anita Raja, filha de um alemão que imigrou para a Itália após o Holocausto, e casada com Domenico Starnone. Enfim, muitas hipóteses e nenhuma conclusão.
2.
O fato é que esse mistério passa longe de ser desvendado em As margens e o ditado: sobre os prazeres de ler e escrever, editado originalmente em 2021; ao contrário.
Explico: em “Nota da Editora Italiana”, assinada por Sandra Ozzola, informa-se que dos quatro textos que compõem o livro, três foram lidos no Centro Internazionale di Studi Umanistici “Umberto Eco”, da Universidade de Bolonha. Elena foi antecedida, dentre outros, por Elie Wiesel e Orhan Pamuk. No convite que lhe foi formulado por Constantino Marmo, diretor do Centro, sugeria-se que as falas a serem apresentadas em dias seguidos poderiam se referir a “assuntos relacionados à sua atividade como escritora, à sua poética, à sua técnica narrativa ou qualquer outro tema de seu agrado que possam ser de interesse de um grande público não especializado” (p. 7).
Bem, mas se ninguém sabe ao certo quem é Elena Ferrante, como ela faria para manter sua identidade oculta nas falas ocorridas em novembro de 2021? Simples: “a atriz Manuela Mandracchia encenou os três textos, nas vestes de Elena Ferrante, no Teatro Arena del Sole de Bolonha, em colaboração com o ERT – Emilia Romagna Teatro” (p. 8). O quarto trabalho, a conferência “A costela de Dante”, escrita a convite da Associazione degli Italianisti, foi lida pela estudiosa e crítica Tiziana de Rogatis em 29 de abril de 2021 (p. 9). Portanto, o mistério sobre a identidade da escritora permanece.
3.
Em “A caneta e a pena” ela fala de seus primeiros contatos com o alfabeto, das dificuldades para escrever seu nome numa folha de papel, em especial quando tinha que se haver com cadernos da escola primária, que tinham as linhas pretas horizontais e também duas linhas vermelhas verticais, uma à esquerda e outra à direita. “Escrever era movimentar-se dentro daquelas linhas, e aquelas linhas (…) foram a minha cruz” (p. 16). Fala que se distraía com facilidade e, embora sempre respeitasse a margem esquerda, “muitas vezes ultrapassava a direita, fosse para completar uma palavra, fosse porque havia chegado a um ponto em que era difícil dividir em sílabas e passar para a linha seguinte sem ultrapassar a margem. Fui punida com tanta frequência que a noção de limite se tornou parte de mim e, quando escrevo à mão, sinto a ameaça daquele fio vermelho vertical, embora há muito tempo ele não exista mais nas folhas que uso” (p. 16).
Mesmo escrevendo no computador, depois de poucas linhas Elena Ferrante conta que vai logo ao ícone de alinhamento e clica na opção que deixa todas as linhas do mesmo comprimento.
“De modo mais geral, acho que a minha ideia de escrita – e também todas as dificuldades que arrasto comigo – está relacionada à satisfação de ficar plenamente dentro das margens e, ao mesmo tempo, à impressão de uma perda, de um desperdício, por ter conseguido” (p. 17-18). Esse aprisionamento exercido pelas linhas horizontais e verticais será retomado nas páginas seguintes desta primeira conferência, bem como nas demais.
Elena Ferrante trabalha com maestria trechos e/ou poemas contidos em obras de Italo Svevo (1861-1928), Gaspara Stampa (1523-1554), Lytton Strachey (1880-1932), Virginia Woolf (1882-1941), para concordar com a autora britânica, segundo a qual “é um erro pensar que é possível produzir literatura a partir de matéria bruta. Precisamos sair da vida (…), precisamos nos tornar estranhos a tudo: concentradíssimos, em um único ponto; sem ter de recorrer às partes dispersas da nossa personalidade, construir moradias estáveis no cérebro” (p. 30). Para Elena, a ideia de Virginia é bastante clara: “escrever é acampar dentro do próprio cérebro, sem mais se dispersar nas tão numerosas, variadas, subalternas modalidades com as quais, como Virginia, se vive uma vida bruta” (p. 30).
Define seu trabalho como fundado “na paciência” (p. 33). Os cadernos da escola primária, com as linhas horizontais pretas e verticais vermelhas “sem dúvida foram uma jaula”, pois foi ali que Elena Ferrante começou a escrever historinhas que eram, inicialmente, bem comportadas, numa narrativa limpa e ordenada (p. 28). Entretanto, com o passar do tempo, o ato de escrever passou a ser “…dar forma a um equilibrar-me/desequilibrar-me permanentemente, dispor fragmentos em um molde e esperar para desenformá-lo”. Assim, “o romance de amor começa a me satisfazer quando se transforma em romance de desamor. O romance policial começa a me prender quando sei que ninguém descobrirá quem é o assassino. O romance de formação me parece estar no caminho certo quando fica claro que ninguém vai se formar. A bela escrita se torna bela quando perde harmonia e tem a força desesperada do feio” (p. 39).
“Água-Marinha”, a segunda conferência, fala que em três de seus livros, Um amor incômodo, Dias de abandono e A filha perdida, os inicia com uma escrita agregadora, alimentada por coerências, “que constrói um mundo com todos os seus andaimes no lugar certo. É uma jaula sólida e a construo com os efeitos de realidade necessários, com citações cifradas de mitografias antigas e modernas, com a minha bagagem de leituras” (p. 56-57). Depois é o momento de transformar tudo isso numa “escrita convulsa, desagregadora, geradora de oxímoros, feia-bonita, bonita-feia, que espelha incoerências e contradições” (p. 57).
Esse conjunto de operações, segundo Elena Ferrante, faz com que o passado seja levado para o presente e o presente para o passado; “confunde os corpos de mãe e filha, subverte os papéis preestabelecidos, transforma o veneno da dor feminina em um veneno verdadeiro que envolve os animais, confunde-se com os humanos e os mata, transforma uma porta que funciona normalmente em uma que não se abre mais e depois se abre, torna ameaçadores ou sofredores ou letais ou salvíficos as árvores, as cigarras, o mar agitado, os alfinetes de chapéu, as bonecas, os vermes da areia” (p. 57).
Ao se referir às suas personagens Délia, Olga e Leda, dos três livros citados, assim se manifesta: “Eu diria que sou a autobiografia delas assim como elas são a minha” (p. 58).
Em “Histórias, Eu”, a terceira das conferências, são invocadas obras de Emily Dickinson (1830-1886), Gertrude Stein (1874-1946), Ingeborg Bachmann (1926-1973), Fiódor Dostoiévski (1821-1881) e María Guerra (1939-2019) para estruturar sua fala, que se inicia com um conhecido poema de Emily Dickinson:
Na História, as bruxas foram enforcadas
porém eu e a História
temos toda a bruxaria de que precisamos
todo dia entre nós.
Diz que a imagem de tais versos, em especial em sua Tetralogia Napolitana, lhe invocaram “uma mulher que se senta à mesa e escreve como um desafio, quase um acerto de contas: ‘eu e a História’, uma aproximação que dá início, com ímpeto, a um fio de palavras que extrai, da escrita inimiga da arte das bruxas, uma história que recorre àquela arte…” (p. 74).
Elena acrescenta que estava digitando em um apartamento em Turim, “enquanto tentava inventar outras mulheres, mães, irmãs, amigas – uma amiga-bruxa – e lugares de Nápoles, e pequenas vicissitudes e sofrimentos de parentes e conhecidos e os últimos sessenta anos de história, extraindo-os de muitos textos em que já se encontravam escritos. Eu a sentia verdadeira, de uma verdade que me dizia respeito” (p. 74).
Defende a tese que é da “vida viva”, para quem tem ambição literária, “que vêm os grandes e pequenos motivos que impulsionam a mão a escrever: a ânsia de contar a pena de amor, a pena de viver, a angústia da morte; a necessidade de alinhar o mundo todo torto; a busca de um novo ethos que nos remodele; a urgência de dar voz aos últimos, de desnudar o poder e suas atrocidades; a necessidade de profetizar desventuras, mas também de arquitetar mundos talvez por vir” (p. 80). Esse conjunto de motivos a leva a escrever as linhas iniciais de uma história, “Logo se aglomera à minha volta uma longa tradição de narrativas alheias que me comoveram ou indignaram e que se parecem com a minha, isso sem falar na língua de livros, jornais, filmes, televisão, canções, bem como um monte de truques bons para empurrar a ‘vida viva’ para a escrita, todas as coisas que aprendi quase sem me dar conta” (p. 80).
A partir daí, segundo Elena Ferrante, escrever é como “entrar em um cemitério infinito no qual cada tumba espera para ser profanada (…) Escrever é apoderar-se de tudo o que já foi escrito e aprender aos poucos a gastar aquela enorme fortuna (…) Na escrita, tudo tem uma longa história atrás de si (p. 81-82). Resumindo, “a escrita é uma jaula na qual entramos logo, já com nossa primeira linha. É um problema que foi enfrentado com sofrimento, diria até com angústia, justamente por quem nele trabalhou com mais empenho e envolvimento” (p. 83).
Ela achava que escrever poderia sair melhor no dialeto triestino, não imaginando ser possível narrar Nápoles sem a sua língua. Entretanto, após escrever longos trechos de alguns de seus livros, como por exemplo Um amor incômodo e a Tetralogia Napolitana, em dialeto, acabou apagando-os e transformando-os em um italiano com “cadência napolitana”, pois uma vez escrito, “o dialeto napolitano parece esterilizado. Perde paixão, perde afetos, perde a sensação de perigo que muitas vezes me comunicou. Na minha experiência como criança e adolescente, foi a língua da grosseira vulgaridade masculina, a língua da violência com a qual eu era insultada na rua ou, ao contrário, a língua açucarada usada para enganar as mulheres” (p. 90-91).
O desafio da escrita é aprender a usar com liberdade a jaula na qual estamos presos. “É uma contradição dolorosa”, mas é necessário prosseguir “adaptando-se e, ao mesmo tempo, deformando (…) Enfim, habitar [todas] as formas [convencionais] e depois deformar tudo o que não nos contém por inteiro, que não pode de modo algum nos conter” (p. 92). Reitera que assim fez em A vida mentirosa dos adultos e na Tetralogia Napolitana.
Em “A costela de Dante”, o último texto do livro, Elena Ferrante esboça as formas através das quais se apropriou da obra do escritor italiano, cujo contato iniciou-se aos dezesseis anos, época em que, mais do que qualquer outra coisa, ela queria escrever.
Podemos não saber quem é Elena Ferrante, mas dá para estimarmos sua idade, pois ela diz que estudou Dante pela primeira vez “há cinquenta anos” (p. 105). Sua análise é erudita e minuciosa e, nesse momento, eu teria dificuldade em apreender todas as dimensões analíticas que a escritora mobiliza. Todavia, Elena Ferrante destaca que “Dante narrava obsessivamente o ato de escrever, em sentido literal e figurado, representando continuamente sua potência e sua inadequação, a transitoriedade do bom resultado e o fracasso” (p. 106).
Dante, para ela, conhecia, temia e combatia a insuficiência da escrita, considerando-a “parte da limitação e da transitoriedade do humano” (p. 110). Recuperando a ideia de limitação da escrita, afirma que “quanto mais disciplinada fosse a caneta, mais nos tornamos velozes (…) e [de conseguir] captar aquilo que, invariavelmente, havia escapado à tradição escrita: de que, em suma, toda forma era uma jaula não duradoura, mas necessária, se almejamos escrever como ninguém havia jamais escrito” (p. 110-111).
Mas talvez a maior influência de Dante sobre a escrita de Elena Ferrante seja o fato de Dante deixar para trás “não apenas a sua noção de beleza, mas também a nossa; estamos acostumados a ler e escrever com excessiva prudência, somos vis; ele não, ele tenta fazer poesia até com a negação da poesia” (p. 114).
Em suma, As margens e o ditado: sobre os prazeres de ler e escrever mostra aos leitores alguns aspectos que envolvem o modo como a escrita da enigmática Elena Ferrante foi se constituindo, assim como as formas bem sucedidas que construiu para escapulir das jaulas sólidas que aprisionam quem escreve – e, não é exagero afirmar, Elena Ferrante o fez, e continua fazendo, com maestria.
*AFRÂNIO CATANI é professor titular aposentado da Faculdade de Educação da USP e, atualmente, professor sênior na mesma instituição. Professor visitante na Faculdade de Educação da UERJ (campus de Duque de Caxias).
Referência
Elena Ferrante. As margens e o ditado: sobre o prazer de ler e escrever. Tradução: Marcello Lino. Rio de Janeiro, Intrínseca, 2023, 128 págs. [https://amzn.to/40zf4c6]
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